quinta-feira, 30 de junho de 2016

Sozinho e feliz - Revista Bula

A DELICIOSA SENSAÇÃO DE ESTAR SOZINHO E SENTIR-SE
 VERDADEIRAMENTE FELIZ
Laura Brenner - em "Revista Bula"



Solidão: estado de quem se encontra ou vive só, isolamento (Aurélio).

Enquanto enchia minha farta taça de vinho pela segunda vez, já com os dentes e lábios roxos, dei-me conta de que a mesa a que me sentava estava vazia, exceto por mim. Na cozinha também havia ninguém, assim como em todo o apartamento. Sequer música se podia ouvir. Eu estava só e engolida pelo silêncio.

Por um segundo, incomodou-me um pouco que a ideia de que alguém, vendo aquilo, pudesse concluir ser um momento de solidão abandonada. 
O ato de beber sozinho carrega a história de escritores decadentes e amores de insucesso, conferindo ao álcool um comportamento ambíguo: consumido em grupo, serve para brindar a vida; já em isolamento, serve para afogar as mágoas.

Entre um gole e outro de vinho, a verdade me caiu como um estalo: entre mim e aquele líquido, havia nada além de glória. 
Não existia ânsia por companhia, tampouco sofrimento por sua ausência. 
Pareceu-me injusto que não houvesse na Língua uma palavra que expressasse a glória de estar só, mas felizmente o sociólogo Paul Tillich teve a cortesia de me apresentá-la. Solitude. As quatro sílabas dançavam em minha língua já meio dormente. “O idioma criou a palavra solidão para expressar a dor de estar sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar sozinho.” A Língua quase nunca desaponta.

Jobim inventou que é impossível ser feliz sozinho. Terceirizando a responsabilidade pela plenitude do espírito, criou-se o estigma do hedonismo acompanhado, de que a felicidade só é boa quando dividida. 
As redes sociais estão aí para perpetuar o sentimento: haja sorrisos, brindes, porres e bossa. Haja viagens, selfies em grupo, bares lotados e músicas entoadas em coro. 
Ficar sozinho parece coisa de gente humilhada e infeliz, mas talvez não suportar a própria companhia por um instante seja o autêntico sinal de infelicidade. 
Pessoas que têm hábitos como ir a cinema, beber, dançar e fazer compras sem companhia causam grande furor às demais, ainda que ninguém tenha a curiosidade de indagar se aquilo é ato intencional. Só que a balbúrdia costuma causar ilusão de felicidade e a verdadeira fuga pode residir aí.

É bem provável que uma vida inteira de solitude se transforme em solidão, mas é curioso como viver apenas em grupo cansa e chega uma hora em que tudo o que se quer fazer é correr dali para a calmaria do mar, que só é alcançada quando se nada para dentro. 
Solitude é uma opção, um deleite, uma vontade. Talvez sua graça seja saber que é facultativa e que, quando a alma pedir por compartilhamento, haverá pessoas queridas que ficarão felizes em oferecê-lo.

Necessário, portanto, ser forte e seguro para curtir a solitude, sendo a recompensa tanto simbólica quanto aproveitável. Basta perceber que grandes decisões e guinadas na vida costumam ser precedidas por momentos de recolhimento. 

Bastar-se não se restringe à negação das pessoas e do mundo, e, sim, saber que existir não depende necessariamente de alguém além de si.

*            *            *

quinta-feira, 23 de junho de 2016

60 anos de "Grande Sertão: Veredas"


Em comemoração aos 60 anos de “Grande Sertão: Veredas”
Elenízia Bernardes -  junho 19, 2016 - Revista Pazes


Grande Sertão: Veredas
Origem: Brasil
Safra: 1956

Características: Denso, intenso. Arrebatador! Sua força – ora brutal ora suave – vulnerabiliza-nos, quase lírica. Encorpada. Frutada. Harmônica. Plena. Rubra… Nua! 
Não por acaso, alguns críticos consideram-na uma das mais belas obras já produzidas pela literatura lusófona. 
Rosa destila-nos nas veias a fantástica saga de Riobaldo, jagunço que, em meio às pelejas do sertão, apaixona-se por um dos cangaceiros de seu bando. 
Diadorim tem “a cintura fina, as pestanas compridas, os olhos moços, a boca melhor bem feita”.

Neste cenário de lutas e amores, quer pela habilidade do autor em descrever minúcias quer por sua impressionante capacidade de síntese, o livro nos traga de um só gole. Transporta-nos para os sertões que nos habitam, a despeito da memória, em áridos rastros da vida que ali se insinua. Trôpega de violenta espera. Vítima de amor e poesia.

Recomendações: Como todo bom vinho, “Grande Sertão: Veredas” foi feito para ser sorvido lentamente, em locais calmos, sob luz suave e afetuosa.

Abaixo delicadas doses. Evoé!



Sobre Deus e o Diabo:
“Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo.”

“(…) o diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro. Ah, uma beleza de traiçoeiro– dá gosto! A força dele, quando quer –moço! –me dá o medo pavor. Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho –assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.”

“Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja.”

“Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele.”

“O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem.”

“Olhe, o que devia de haver era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições grandes, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!”

Sobre o Sertão:
“Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”
“O sertão é do tamanho do mundo”.

“Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo”.
“O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa…”

Sobre o Amor:
“Mas, pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira d’água, esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de correr.”

“O amor só mente para dizer maior verdade.”

“Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou…”

“E amor é isso: o que bem-quer e mal faz?”

“(…) mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.”

“Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade…”

“(…)o ódio – é a gente querendo lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente.”
“Acho que, às vezes, é até com a ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. (…) Coração mistura amores. Tudo cabe.”

“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

“Amor vem de amor.”

“E digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: que foi que, em hora nenhuma, vez nenhum eu nunca tive vontade de rir dele.”

Sobre a Vida:
“Vivendo, se aprende: mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”

“A primeira coisa, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes…”

“Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente.”

“Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente. Esta vida é grande.”

“’Vida’ é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma ideia falsa. Cada dia é um dia.”

“A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação –porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.”

“Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e daí desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

“Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado…”

Sobre o Destino
“Quem muito se evita, muito se convive.”

“Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais –a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!”

“O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!”




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domingo, 12 de junho de 2016

Fernando Pessoa - Jornal "Folha de S.Paulo"

Bibliófilo encontra versão inédita de poema de Fernando Pessoa
Mauricio Meireles - "Ilustrada - Folha de S.Paulo" 11junho de 2016

Do livro 'Fernando Pessoa. Uma Fotobiografia', de Maria José de Lancastre - foto de 1929
A crise econômica em Portugal, que começou em 2008, fez surgir nos alfarrabistas –os sebos lusitanos– raridades de um tempo perdido.
Documentos e livros raros de colecionadores, quase sempre anônimos e precisando de dinheiro, brotaram da poeira dos séculos.

Quem pode faz a festa nessas horas. Foi o caso do bibliófilo e advogado brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho.
No ano passado, ele recebeu a ligação de um alfarrabista português, que queria vender um "livro de autógrafos" com um manuscrito de Fernando Pessoa na última página.

Alfarrabista é bicho esperto, mas às vezes se engana. É verdade que nem Cavalcanti se deu conta, mas a poesia no caderno, que começa com "Cada palavra dita é a voz de um morto" –aparentemente conhecida–, é uma versão inédita de texto do qual até hoje só se conheciam rascunhos.



Acima, um dos rascunhos do poema no acervo de Pessoa; abaixo,  o poema inédito encontrado agora.


Também é a única versão íntegra e clara do poema.
Para se ter ideia, mesmo quem não é especialista na caligrafia de Pessoa –que escrevia garranchos, às vezes bêbado– consegue lê-la. Conclui-se, do documento, que o escritor registrou ali a versão final do texto. Nem o acervo do autor, guardado na Biblioteca Nacional de Portugal, tem a poesia.

O caderno ainda guarda uma história inusitada. Ele pertenceu a o intelectual português José Osório de Castro e Oliveira.
Aos 13 anos, em 1913, viajando do Rio a Lisboa, ele pedia para os passageiros escreverem o que quisessem.

O navio König Wilhelm 2º, no qual estava Osório, era o mesmo em que Fernando Pessoa foi da África do Sul para Lisboa em 1901.

Jeca, como sua mãe lhe chamava, cresceu e continuou a usar o caderno. Em 1918, pediu a Pessoa para escrever algo –e ganhou o poema.

"Nem o dono do caderno nem o alfarrabista sabiam que o poema era inédito. Senão, teria custado três vezes mais", conta Cavalcanti, que não revela o valor pago. Antes disso, ele –que tem uma das maiores coleções privadas de Pessoa do mundo – já havia comprado a mesa e a escrivaninha do poeta por 95 mil euros (hoje R$ 365 mil).

Nem o bibliófilo se deu conta do que tinha em mãos. Ele diz que foi depois de uma conversa com Richard Zenith, um dos principais estudiosos da obra pessoana no mundo, que resolveu checar.

A fonte de consulta nessas horas são as edições críticas com a obra de Pessoa que a Casa da Moeda lusitana tem publicado nas últimas décadas.
Quem olha o volume organizado por João Dionísio, em 2005, com poemas de 1915 a 1920, pode atestar que a versão no documento é inédita –e sem lacunas, como as conhecidas até hoje.

Por via das dúvidas, a Folha pediu a Jerónimo Pizarro, pesquisador da Universidade de Los Andes, na Colômbia, e líder de uma nova geração de estudiosos da obra do poeta, para avaliar uma imagem do documento.

"É a caligrafia de Pessoa sim. Ele devia ter dois ou três rascunhos e, como tinha que deixar uma lembrança nesse caderno, pegou os papéis e registrou uma versão mais limpa. A descoberta esclarece muito a situação do poema", afirma Pizarro.
*
O poema

Cada palavra dita é a voz de um morto.
Aniquilou-se quem se não velou
Quem na voz, não em si, viveu absorto.
Se ser Homem é pouco, e grande só
Em dar voz ao valor das nossas penas
E ao que de sonho e nosso fica em nós
Do universo que por nós roçou
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
**
A primeira página do caderno de autógrafos do colecionador José Paulo Cavalcanti

*            *            *

quinta-feira, 9 de junho de 2016

HISTORINHA DA VÓ (atualização)

Texto escrito em outubro de 2011, atualizado hoje com a inserção de outro vídeo da música 'Imagine'.


HÁ 50 ANOS...
O que vou lhes contar é fato e aconteceu há uns três dias. Faço questão de registrar aqui, no blog, ferramenta moderna, do seu tempo, que eu - atrevida, como sempre - insisto em utilizar, talvez para que possamos eliminar a tal barreira entre as gerações.
Temos uma relação de amor e carinho muito grande, por isso sempre que estou com vocês adoro quando me perguntam sobre "o seu tempo".
Quantas vezes fico maravilhada com o seu espanto quando falo das brincadeiras das crianças numa época em que não havia tantos recursos tecnológicos. Aos olhos dos netos - ávidos de histórias antigas - , vovó já 'nasceu' vovó.
Sei que é mesmo espantoso, para vocês, o fato de que a vovó também já foi criança, brincou com os amigos, foi adolescente, namorou, curtiu os artistas da época.
Ri muito, também, certa vez em que um de vocês viu minha máquina de escrever - aquela Lettera pequenininha - e achou extraordinário não precisar ligar na tomada nem ter impressora.
Pois bem, aqui vai mais uma historinha, esta, recente:
Ao abrir os e-mail (estou vivendo o tempo de vocês), reparei, em um deles, um endereço lá no fim da página, com um nome que despertou a minha memória.
Resolvi, então, entrar em contato com a pessoa para saber se o nome correspondia ao de uma colega do tempo do Ginasial (!), relacionado hoje à segunda fase do Ensino Fundamental.
Enviei o e-mail, desculpando-me pela invasão, mas querendo satisfazer minha curiosidade.
E não é que se tratava da mesma pessoa? Respondeu com outro e-mail muito gentil, dizendo-se agradavelmente surpresa pelo reencontro.
Dali, foi possível reiniciar uma amizade de 50 anos atrás! Temos a mesma idade e falamos, em linhas gerais, sobre o que aconteceu conosco nesses 50 anos, como tem sido nossa vida e como estamos hoje. Graças a Deus, a vida tem sido generosa conosco - com ela e comigo - alternando as dificuldades normais com alegrias e recompensas, como a presença de vocês.
O que eu gostaria que vocês percebessem é que a tecnologia está aí para facilitar a nossa vida, para reatar laços interrompidos por circunstâncias várias, para aproximar as pessoas e não para pretensamente congregar milhões de 'amigos' em redes sociais efêmeras. Não deve servir também para que as pessoas se isolem na ilusão de que não precisam do outro.
Digo sempre que a Internet é uma ferramenta fantástica, mas é fer-ra-men-ta. A amizade, a solidariedade, o amor são sen-ti-men-tos valiosíssimos e permanentes, privilégio das almas abençoadas.
Enfim, é só mais uma historinha da vovó.
O beijo e o amor de sempre.
* * *
Comemorando o acontecimento, um vídeo dos Beatles, ídolos na época de nossa juventude - minha e da minha amiga.
Ah, assistam também à música "Imagine", com John Lenon. Linda...linda. A letra fala do sonho da época, que, infelizmente, não se realizou.




quarta-feira, 8 de junho de 2016

Sobre 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'


BRÁS CUBAS: O ETERNO HERÓI BRASILEIRO 
NUNCA FOI TÃO ATUAL
Julian Barg -  em  'Obvious - literatura'


Brás Cubas, motivo de orgulho na literatura, de vergonha no caráter do brasileiro


Machado de Assis

Seria o personagem mais emblemático da literatura brasileira mais um caso daqueles em que amamos um herói cheio de defeitos, dentre eles o de ser consciente de todas as suas falhas de caráter, fraquezas humanas e ainda por cima, que faz chacota delas para que possamos conhecê-lo melhor? 

Brás Cubas, narrador morto de um romance póstumo, só por isso já seria um inovador no campo literário do fim do século XIX. 
A questão se torna ainda mais complexa se formos analisar e verificar que o tempo “presente” da narrativa é a pós-vida do narrador, que de forma inexplicável escreve um romance mesmo morto e transforma o nosso agora no seu depois.

Vejamos: a narrativa está no tempo presente, mas esse presente já passou, pois o livro (que Brás Cubas deixa claro ser uma obra escrita por ele para nós) já terminou de ser escrito, então é, ao mesmo tempo, passado. E é passado pela segunda vez ao ser o romance sobre a vida que ele viveu antes de morrer (óbvio? Não, afinal ele também vive (ou viveu) uma vida depois de morto, que foi quando nos escreveu o romance).

O prefácio já nos prepara para o que vem pela frente ao revelar, em uma página, a personalidade do personagem que nos conta sua vida. E a pergunta que se pode fazer (e seria uma pergunta muito comum muito tempo depois na literatura) é se de fato podemos acreditar nesse narrador. 
Sim, porque suas intenções ao revelar detalhes de sua vida e pensamento não são claras. 
Ao mesmo tempo em que ficamos sabendo de seus amores, percebemos que as bases de seus sentimentos são questionáveis e muito rapidamente a direção de sua vida se modifica. 
Mesmo quando Brás Cubas nos confessa um profundo pesar por algo, não tarda mais de algumas linhas para que, com uma boa dose de sarcasmo, a vida real seja reconsiderada, colocando em dúvida sua sinceridade.

Seu modo de lidar com o pai, com Marcela, com os amigos, com tudo que o cerca é sempre duvidoso. Ao mesmo tempo, sua sinceridade é gritante, como, por exemplo, quando deixa claro que não tem um mínimo de pesar por Quincas Borba, e inclusive lhe tem nojo e desdém.

Essa sinceridade sobre sua falsidade é o que pode confundir o leitor. Afinal, se Brás Cubas não tem vergonha de sua falta de caráter, por que mentiria sobre seus bons sentimentos? Qual é a verdade? Se o personagem é mentiroso, podemos partir do princípio que tudo pode ser mentira, e, lembrando que o romance foi escrito para o leitor, e que a narrativa não passa de um livro (o que Cubas sempre nos relembra, colocando-nos no papel de leitores e não de testemunhas de sua vida), bem... 
Então toda a arquitetura do livro de Machado de Assis se torna uma construção da qual não podemos nos esquecer.

O que estamos lendo não é apenas a vida de Brás Cubas, é um livro escrito por Brás Cubas sobre sua vida. É a sua autobiografia, é só o que ele quer que saibamos. E toda a chacota e o sarcasmo empregados por ele são parte de seu plano para escrever um livro (quantas vezes ele se dirige ao leitor, e só por chamá-lo assim já se isenta da responsabilidade de ser “real”?). 
Inúmeros capítulos são dedicados exclusivamente a falar sobre o próprio livro. E se temos um livro que fala sobre si mesmo, então temos metaliteratura. 
A tendência que o leitor normalmente tem é a de prestar atenção na história, querer saber o que houve, como, quando por quê. 
Aqui, a verdadeira história está escondida: é um morto escrevendo um livro.

O ritmo da escrita permanece semelhante e em um tom sem grandes reviravoltas até o fim. 
Mas podemos nos perguntar de que vale a vida de Brás Cubas, quando ele mesmo parece não dar valor a sua vida. 
A frase final da obra define o espírito do herói brasileiro. Um herói que nem ao menos a si mesmo admira e que confessa que sua vida é miserável, incluindo na afirmação uma miséria geral, coletiva e que faz parte de um povo e uma cultura que, mais de um século depois, continua a se reconhecer em seus defeitos e falta de caráter.

A atemporalidade, neste caso, nem sempre é benéfica.


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terça-feira, 7 de junho de 2016

Foucault - Saber e Poder

FOUCAULT E AS RELAÇÕES ENTRE SABER E PODER
Eduardo Silva Ruano - em 'Obvious -literatura'

No livro "Vigiar e Punir", o filósofo francês Foucault faz apontamentos sobre como conhecimento e poder estão intimamente ligados, e apresenta o conceito de panóptico como exemplo para sua dissertação.


Paul-Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926 em Poitiers, cidade localizada 300 quilômetros ao sul de Paris. Sua família era de burgueses ricos. O pai foi um cirurgião bem-sucedido; a mãe, uma dona de casa determinada a administrar as finanças do marido.
Durante a infância, Foucault morou com a irmã mais velha e o irmão caçula em uma casa luxuosa e espaçosa, a qual oferecia plena capacidade para muito mais do que cinco pessoas morassem ali.

Na escola, diziam que Foucault era frágil e míope. Seus amigos zombavam de sua constituição corcunda e de seu jeito "estranho" de ser.
Embora Foucault fosse notavelmente brilhante, ele nunca se destacou nos estudos. Sabe-se que sua matéria predileta era História, a única pela qual ele se interessava e dedicava.
Foucault costumava dizer que o passado estava vivo no presente. Na realidade, a História não estava registrando a verdade do passado, mas revelando a verdade do presente. Assim era a orientação do pensamento de Foucault.

Ao longo de suas experiências na escola, Foucault foi percebendo que, de fato, era gay. Isso não apenas era ilegal naquela época, mas impensável. Por esses e outros motivos, ele começou a ter sérias desavenças com seu pai.
Naquela época, com 15 anos de idade, o jovem Foucault passava por diversas crises de identidade. Como relata Paul Strathern no livro Foucault em 90 Minutos (2003):
"Por temperamento, Foucault era avesso a ficar muito tempo na sombra de alguém. Não só tinha ambição, mas também obstinação por se tornar independente, embora seu impulso reativo muitas vezes deixasse suas ideias para trás."

O francês passou pela fase de puberdade com alguma dificuldade.
Na adolescência, Foucault vivia perturbado. Sofria de delírios persecutórios e, em mais de uma oportunidade, tentou o suicídio.
Em certas ocasiões, desaparecia por noites a fio, entrando em colapso, pálido e com olheiras profundas, para depois retornar de manhã, deprimido, ao seu quarto.
É sabido que, em suas jornadas noturnas, Foucault procurava por aventuras sexuais, inclusive, ele passou a se envolver em práticas sadomasoquistas com frequência.

Na época de escola, Foucault ainda era incapaz de se aceitar e viver consigo mesmo, e nenhum dos estudantes em seu dormitório queria conviver com ele. Viam-no como louco e instável.
Deveras agressivo na forma de falar, Foucault argumentava e defendia suas ideias sempre na base da violência, talvez motivado por uma necessidade de reafirmar a validez de seus próprios pensamentos.
Logo ele passou a desenvolver doenças psicossomáticas e distúrbios psiquiátricos. Chegou a ficar dois anos internado em um manicômio e, solitário naquele lugar, passava o tempo imerso em introspecções filosóficas.


Ao retornar à sociedade, ele começou a ler Hegel, filósofo alemão do século XIX, e depois progrediu para Heidegger, pensador que exerceu a maior influência sobre ele. Segundo o próprio Foucault:
"Todo o meu desenvolvimento filosófico foi determinado por minhas leituras de Heidegger."

Em agosto de 1955, Foucault ingressou em uma faculdade na Suécia, e lá encontrou uma certa paz, já com seus 30 e poucos anos de idade.
Nos anos seguintes, ele estudou filosofia e psicologia, tendo se especializado nesta última, tornando-se professor, profissão que exerceu por um considerado período.
Munido financeiramente de pequenos salários conquistados e principalmente da gorda herança do pai (que morrera mais ou menos nesta época), Foucault foi morar, sozinho, num apartamento grande e ricamente mobiliado.
Comprou um Jaguar. Saia com seu carro à procura de homens. Continuou a beber de forma compulsiva. No entanto, essa rotina começou a perder a graça. Foucault logo percebeu que a liberdade pode ser tão repressora quanto a repressão direta.

Aos 33 anos de idade, Foucault retornou a Paris, e foi daí em diante que começou a escrever seus livros mais famosos, como, por exemplo, A História da Loucura, As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas, e Vigiar e Punir. Esta última obra será o tema da discussão a seguir, sobre as relações entre saber e poder, e o conceito de "panóptico".

Foucault e as relações entre saber e poder
Foucault interessava-se, acima de tudo, pelo sujeito, suas verdades e relações entre o saber e o poder. No livro Vigiar e Punir, Foucault argumenta que conhecimento e poder estão tão intrinsecamente ligados que, no final, acabam sendo a mesma coisa.
Suas investigações levaram a abordagens inovadoras sobre o tema. Foucault analisou, em especial, os processos disciplinares adotados em instituições sociais, como escolas, prisões, fábricas, quartéis e hospícios, por exemplo, e identificou como elas controlavam aqueles que eram levados a estes lugares por meio de imposições de padrões ditos normais de conduta.

Foucault tinha uma noção de homem não como sujeito (que transforma o ambiente em que vive), mas como objeto (que é controlado pelas instituições de poder).
Por mais que escolas, hospitais, prisões, fábricas, quartéis e hospícios visassem proteger os cidadãos, de certa forma, também os controlavam através de um mecanismo de vigilância e punição. Foucault chamou esses mecanismos de "tecnologias políticas", as quais administravam o tempo e espaço das pessoas, e que tinham como elemento unificador a hierarquia.
Nesse sentido, Foucault abordou que, numa sociedade, existem certas "instituições de sequestro", onde os indivíduos são retirados de seu meio social e internados durante um longo período para moldar sua conduta e disciplinar suas ações.
Segundo o filósofo, a disciplina seria um instrumento de dominação e controle dedicado a excluir ou domesticar comportamentos divergentes.

O poder não é uma capacidade natural dos indivíduos, acreditava Foucault, mas algo que recebemos em determinado momento. Para ele, o poder era "enigmático, ao mesmo tempo visível e invisível, investido por toda a parte".

Para melhor entender as relações entre saber e poder, é preciso considerar o conceito de Foucault sobre liberdade.
Para ele, a liberdade é como uma arma de proteção. Arma porque constitui um instrumento natural de luta, e proteção, porque ninguém pode manipular a liberdade de ninguém. É estranha a liberdade como arma de proteção, já que a mentalidade do senso comum é de que o poder mina o potencial de liberdade.
Bem, Foucault acreditava que as pessoas não têm total consciência do potencial de sua liberdade e, por isso, elas se "desviam" de seu curso natural e, assim, acabam facilmente manipuladas pelo poder.

Para o francês, é possível lutar contra a dominação representada por certos padrões de pensamento e comportamento, só não se pode, enfim, ser imune e escapar completamente das relações de poder.
"O fato é que toda relação humana é, a um certo grau, uma relação de poder. Nós evoluímos em um mundo de relações estratégicas perpétuas."

Panóptico
Em Vigiar e Punir, Foucault cita o conceito de "panóptico", uma expressão originalmente criada pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Benthan.
A ideia de panóptico é representada visualmente por um modelo de prisão com estrutura circular, e uma plataforma de observação erguida no meio. Isso possibilita que um observador central, no papel de autoridade, espione as celas situadas abaixo, ao redor do prédio. Os prisioneiros contidos nas celas são "vistos sem ver".
Dessa forma, os prisioneiros assumem um sentimento constante de incerteza, que acarreta, cedo ou tarde, em paranoia e auto-vigilância. Segundo Foucault:
"O panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha."

No panóptico, um poder onipresente e onisciente é capaz de subjugar cada pessoa de acordo com o que lhe é apropriado. É como se fosse um processo de adestramento.
"O panóptico é um zoológico real, com o animal sendo substituído pelo homem."

Esta ideia de panóptico propagada primeiro por Bentham, e depois por Foucault, é, na verdade, uma imagem arquetípica de nossa sociedade. O ser humano moderno é criado, sem dúvida, para seguir regras, normas e regulamentos. Muitas vezes, é criado em reação a tudo isso. Como diz Foucault, "toda forma de saber produz poder".

Aplicando a ideia do panóptico à sociedade moderna, vemos que indivíduos são selecionados e categorizados rigorosamente por instituições sociais - sejam prisões, escolas, quartéis ou hospícios -, não no sentido de valorizar particularidades que caracterizam cada um, mas sim para melhor controlá-los. O saber/poder conduz tanto a um maior entendimento quanto a um controle maior. É o que quis dizer Foucault em Vigiar e Punir.

Embora Foucault apresente uma concepção negativa de poder, algumas pessoas interpretam que ele quis, na verdade, mostrar o outro lado da moeda.
Assim sendo, poder não é apenas uma forma de coerção, mas também constitui uma força necessária, produtiva e positiva na sociedade.
A disciplina pode muitas vezes ser coercitiva, mas, sem ela, não haveria como conviver harmonicamente em sociedade, visto que cada um agiria individualmente conforme a própria verdade, logo, o caos e a desorganização se instaurariam.

"Qualquer relação de poder não é má em si mesma, mas isto é um fato que sempre comporta perigos."
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Referências bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Vozes (2009).
STRATHERN, Paul. Foucault em 90 Minutos. Jorge Zahar (2003).

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Nem sempre o silêncio... Marcel Camargo


NEM SEMPRE O SILÊNCIO É ESQUECIMENTO
Marcel Camargo - em  'Obvious - recortes!

Ao contrário do que possa aparentar, muitas vezes o silêncio tem muito a dizer, carregando em seu aparente vazio uma intensidade tamanha de sentimentos e de carga emocional muito mais significativa do que enxurradas de palavras ou gestos exacerbados. O silêncio pode acalmar, ferir, amparar ou até mesmo violentar, às vezes trazendo paz, outras vezes incitando tempestades - nem sempre o silêncio é pacífico.

O silêncio pode ser revolta, rebeldia, contrariedade contida. Nem sempre estamos prontos para expressar nossos pontos de vista, no sentido de verbalizar o que queremos, o que temos aqui dentro. Assim, mesmo que estejamos discordando de algo, silenciamos, pois nos falta a coragem necessária para que nos libertemos dessa prisão que nós próprios criamos, ou mesmo porque sabemos que qualquer tentativa de diálogo será inútil e cansativa naquele momento.

O silêncio também pode corresponder à reflexão, a um turbilhão de pensamentos pulsando dentro de nós. O pensamento e a fala devem conviver harmonicamente, de forma que um não atropele o outro, colocando-nos em situações constrangedoras. Palavras, após proferidas, não voltam mais, deixando suas marcas, muitas vezes negativas, nas nossas vidas e nas dos ouvintes. Pensar sobre o que se diz é necessário, pois, caso possamos machucar alguém ou a nós mesmos, sem razão, é preferível emudecer.

Às vezes, o silêncio é solidão, é vazio, solitude doída e emudecida. Mesmo acompanhados, ainda que em meio a muitas pessoas, podemos estar solitários, sentindo-nos sem acolhida, sem partilha, sem pertencimento. Como se não fizéssemos parte da vida do outro, como se fôssemos desimportantes, dispensáveis. Perdidos nessa irrelevância emocional, ruímos por dentro, minando nossa autoestima e nossa capacidade de ser feliz.

Outras vezes, o silêncio é desistência. Há momentos em que o mais prudente a se fazer é desistir de algo, de alguém, de tentar convencer, de querer amar, de clamar por atenção e reciprocidade. Certas situações nos pedem que partamos para outra, que canalizemos nossas forças e energias em direção ao que nos trará contrapartida, retirando-nos dos apelos vazios, da mendicância afetiva, pelo bem de nossa saúde física e de nosso equilíbrio emocional.

Silêncio, da mesma forma, pode significar desapego, libertação, livramento de amarras que nos impedem o caminhar tranquilo de nossa jornada. Precisamos nos despedir de tudo aquilo que pesa em nossos ombros, emperrando a visualização serena das possibilidades que nos aguarda o futuro. Temos que serenar a celeridade que intranquiliza os nossos corações, jogando fora bagagens sem as quais conseguiremos viver melhor.

O silêncio muitas vezes é mágoa, ressentimento, lamentação acumulada. Na impossibilidade de encontrarmos coragem de vivermos nossas verdades por inteiro, de refutarmos o que não nos completa, tampouco nos define, de impormos aquilo em que acreditamos, sufocamos nossos sentimentos mais íntimos sob a infelicidade de aparências condizentes com o que todo mundo espera - exceto nós próprios. Nesses casos, o calar-se equivale ao crepúsculo moroso de nossa existência.

Felizmente, no entanto, o silêncio também pode - e sempre o deveria - implicar felicidade, certezas, convicção e força. Sabermos os momentos certos para calarmos e guardarmos para nós aquilo que pensamos nos salva de problemas dispensáveis com gente que não significa nada na nossa vida. Quando estamos seguros quanto ao que somos, quanto aos nossos sonhos e planos de vida, nenhum barulho é capaz de abalar as nossas verdades, minimamente que seja. 

Quando o silêncio guarda o que temos de mais precioso, estamos então caminhando rumo ao alcance de nossos sonhos, para que possamos dividi-los com quem compartilhamos amor de verdade, e com ninguém mais.

*        *         *

O fantástico realismo de Murilo Rubião


O centenário de Murilo Rubião
Escritor mineiro, nascido há um século, foi precursor do realismo mágico na literatura brasileira

Alexandre Rosa (*)  Revista 'Cult'


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O homem
Nasceu Murilo Eugênio Rubião a 1º de junho de 1916, na cidade de Silvestre Ferraz (atualmente Carmo de Minas).
Filho de pais também escritores, graduou-se em Direito, na Faculdade de Direito de Minas Gerais, onde se forma em 1942.
 Figura importante entre o círculo de escritores, presidiu por três vezes a Associação Brasileira dos Escritores (secção de Minas Gerais) e foi o vice-presidente do I Congresso Brasileiro de Escritores, pensado para se contrapor à falta de liberdade imposta pelas diretrizes do Estado Novo.

O escritor fez carreira no serviço público, ocupando cargos como o de diretor da rádio Inconfidência Mineira, oficial de gabinete do interventor João Beraldo, e depois do governador Juscelino Kubitschek.
 Organizou o importante suplemento literário do jornal Minas Gerais, onde atuou como diretor, até assumir a direção de publicações da Imprensa Oficial do Estado, último cargo exercido antes da aposentadoria.
Murilo Rubião aparece nas reminiscências de alguns amigos como homem reservado, tímido, de poucas palavras.

O Murilo era um homem tímido, discreto, muito reservado e sempre escondido atrás dos óculos e do bigode, parecia até o homem do poema do Drummond, que ficava atrás da piteira. Murilo fumava muito e usava uma pequena piteira. Gaguejava um pouco, ele baixava um pouco os óculos e olhava, tinha os olhos grandes, era um homem tímido e reservado, falava pouco, mas sempre o que ele dizia era inteligente, irônico, ele gostava de rir, de satirizar as situações.
(depoimento do amigo Ângelo Oswaldo)

O próprio autor traça um Autorretrato, no qual salienta a importância do pai, de quem herdou a intelectualidade, “a timidez e um certo ar cerimonioso, que tem me privado da simpatia de inúmeras pessoas. Algumas delas mulheres, o que é lamentável”; declara seu apego por Belo Horizonte, onde desejou morrer “No cemitério do Bonfim, se não for incômodo para os que me sobreviverem”.

Celibatário e sem crença religiosa. Duas graves lacunas de meu caráter. Alimento, contudo, sólida esperança de me converter ao catolicismo antes que a morte chegue. Muito poderia contar das minhas preferências, da minha solidão, do meu sincero apreço pela espécie humana, da minha persistência em usar pouco cabelo e excessivos bigodes. Mas, o meu maior tédio é ainda falar sobre minha própria pessoa.  (Murilo Rubião. Autorretrato.)

Ao lermos alguns depoimentos sobre o homem Murilo Rubião, ou relatos dele próprio sobre si e sua obra, acabamos reforçando certa impressão melancólica e triste que marca suas narrativas.
 Mas esta é apenas uma das vias de acesso às quais os leitores têm que lançar mão para adentrar nas várias camadas de significação de seus contos, muitos deles quase indevassáveis, como “A casa do girassol vermelho”, “O homem do boné cinzento” e “A noiva da casa azul”.
Faleceu no dia 16 de setembro de 1991.
Hoje, Murilo Rubião ocupa o lugar de precursor de um gênero literário até então sem precedentes em nossa literatura – o realismo mágico, ou fantástico – e há estudiosos que defendem a tese de ter sido ele quem inaugura o gênero na América Latina, antes de Borges, Cortázar e Gabriel García Márquez.

A obra
Algo que impressiona na obra de Murilo Rubião é o seu reduzido tamanho e o trabalho quase obsessivo de reescrever seus textos até a exaustão.
Sua obra completa não chega ao número de quarenta contos.
 Demorou sete anos para conseguir publicar seu primeiro livro, O ex-mágico, em 1947. Antes disso, já era conhecido por escrever “contos estranhos” em jornais e revistas.
 Numa crítica publicada no jornal Folha de Minas, em 1944, Wilson Castelo Branco já chamava atenção para prosa inovadora do escritor mineiro:

            Murilo Rubião já se firmou como contista da moderna literatura nacional. Dispõe de técnica própria, estilo pessoal e temas originais. Está sujeito a estudos de toda a natureza, pois sua obra esparsa e o livro de contos “O dono do arco-íris”, em via de publicação, constituem inegavelmente valores bem sólidos no cenário das Letras Brasileiras.

Não só o livro não saiu como jamais houve publicação de um conto com aquele título.
 Só mesmo em 1947, depois de ser recusado por muitas editoras, conseguiu lançar O ex-mágico, reunindo quinze contos.
Os contos de Murilo Rubião encantaram Mário de Andrade, com quem passou a manter uma relação por cartas.
O autor de Macunaíma se viu maravilhado com as estórias do escritor mineiro – principalmente O ex-mágico – ao mesmo tempo em que sentiu certa dificuldade para caracterizar aquele tipo de escrita, optando por chamar as narrativas de “fantasias”.
Foi Mário de Andrade quem primeiro associou os textos de Rubião com a literatura do escritor tcheco Franz Kafka.

O ex-mágico logo despertou atenção da crítica e de outros escritores.
No mesmo ano de seu lançamento, Sérgio Milliet escreve (com um pé atrás) uma resenha para 'O Estado de S. Paulo' sobre o “livro desigual de Murilo Rubião, hesitante na realização técnica e lembrando por demais as experiências de 22”, dando destaque para o conto que nomeia a obra, uma das melhores realizações do escritor.
            
Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
Murilo Rubião. “O ex-mágico da Taberna Minhota”. In: Obra Completa.
(Companhia das Letras, 2013)

Via de regra é assim que o insólito surge nos contos de Rubião e passa a tomar conta da narrativa, causando no leitor um sentimento no mínimo desconfortável. 
Como assim, retirar do bolso o dono do restaurante?

E o que dizer quando em uma pequena cidade começam a chegar alguns dragões, que rapidamente são absorvidos pelo corpo social e dele começam a participar como se fosse a coisa mais natural desse mundo.

Os primeiros dragões que chegaram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida com as absurdas discussões surgidas com a chegada deles no lugar. Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.
Murilo Rubião. “Os dragões”. In: Obra Completa. (Companhia das Letras, 2013)

Muitos leitores tentaram compreender o tipo de literatura que surgia da pena deste escritor. Novamente surge o nome de Kafka, como no artigo de Álvaro Lins, escrito para o jornal Correio da Manhã, em 1948.

"Não vamos cometer o exagero de proclamar que o sr. Murilo Rubião é o nosso Kafka, mas indicar que esse tipo de ficção, dentro do qual ele se colocou, está representado no plano universal, e de maneira mais perfeita, pela obra de Kafka."

O próprio autor diz que não conhecia Kafka até o momento em que Mário de Andrade o apresentou, além de já ter escrito a maioria dos contos que publicou em 1947, antes de ter lido o escritor tcheco. Confessa que se sentiu deslumbrado com a leitura de 'O processo', e reconheceu em Kafka como que um irmão, “E por acaso!”.

A crítica teve que recorrer a Kafka, como mostrou Davi Arrigucci Jr., principalmente em função de uma completa falta de parâmetros nacionais e latino-americanos para que os estudiosos brasileiros pudessem fundamentar suas observações. 
Até então, nada do que havia sido escrito aqui fornecia subsídios para entender os contos de O ex-mágico
Foi preciso o próprio escritor apresentar suas fontes: as histórias que sua babá lhe contava na infância, a Bíblia e Machado de Assis.

Murilo Rubião diz que em alguns contos, como “Os dragões”, por exemplo, o motivo já existia em sua memória desde a infância, guardado nas reminiscências, das histórias contadas pela babá. 
Os textos bíblicos – o Velho e o Novo Testamento – foram lidos pelo escritor desde a infância, e por toda a vida. 
Todos os seus contos são antecedidos por epígrafes retiradas da Bíblia e tem uma função orgânica junto às estórias narradas, como se fossem as próprias narrativas em miniatura. As relações entre epígrafe e conto foram analisadas por Jorge Schwartz, principal estudioso do autor, no livro Murilo Rubião: a estética do uroboro.

Quanto a Machado de Assis, considerado sua maior e mais direta influência, Murilo Rubião parece ter herdado algumas características, como a sandice existente no universo machadiano – “O delírio” de Brás Cubas e a psicopatologia generalizada da novela O alienista, por exemplo. 
Também uma espécie de ceticismo radical emanado das páginas de Rubião que, aliado a um humor meio sorumbático, meio penumbrista, o narrador muriliano envolve seus personagens. 
No plano da técnica, os dois autores apresentam uma linguagem extremamente policiada, exata, a palavra precisa, onde nada sobra ou falta. 
Existe ainda um espectro melancólico que atravessa a obra de Murilo Rubião do começo ao fim, algo presente em boa parte da obra de Machado. 
Não é demais lembrar que as Memórias Póstumas de Brás Cubas foram escritas “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Alguns personagens de Murilo Rubião são também Narradores Defuntos, como sugere o final do conto “Bárbara”, e na forma através da qual se apresenta o próprio narrador-personagem de seu conto mais famoso, “O pirotécnico Zacarias”:

Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos que crêem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente.
Murilo Rubião. “O pirotécnico Zacarias”. In: Obra Completa.
(Companhia das Letras, 2013)

Depois de O ex-mágico, o autor só volta a lançar outro livro em 1953, A estrela vermelha, mas com apenas três contos inéditos e outros doze “violentamente” reescritos. 
Em 1965, outro livro de Rubião vem a público, Os dragões e outros contos, com apenas cinco contos inéditos e o mesmo procedimento de reescrita dos contos presentes nos dois livros precedentes. 
E o mesmo procedimento volta a acontecer em O pirotécnico Zacarias, O convidado e A casa do girassol vermelho, todos lançados em 1974, reunindo contos reescritos nas coletâneas anteriores.

Este trabalho incessante de reescrever seus textos chamou atenção da crítica e se constitui como fator importante para o entendimento da obra de Rubião, especialmente de alguns contos como “A armadilha”, “A fila” e o “O edifício”, espécie de recriação moderna do mito de Sísifo.
            
Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto da incorporação, teria ilimitado número de andares. […] Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a quem incumbia a direção-geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.
            Murilo Rubião. “O edifício”. In: Obra Completa. (Companhia das Letras, 2013)

São contos extremamente aflitivos, em que a ideia de finitude da vida parece suspensa, ficando os personagens submetidos ao funcionamento opressivo de uma engrenagem social que despersonaliza o humano. 
O conto termina, mas a sensação é de que os personagens continuarão encerrados num eterno presente, movendo-se em falso dentro de uma infinita condenação à vida.

            A fúria de Alexandre chegara ao auge:
            – Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
– Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por essa.
            – Gritarei, berrarei!
– Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.
            E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
            – Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.
Murilo Rubião. “A armadilha”. In: Obra Completa. (Companhia das Letras, 2013)

Somente após o lançamento de O pirotécnico Zacarias que Murilo Rubião começa a receber o devido reconhecimento, inclusive internacional, com traduções para o alemão, espanhol e inglês. 
Tal projeção inevitavelmente remeteu seus contos ao realismo fantástico dos autores hispano-americanos, cujo boom ocorreu nas décadas de 1960 e 1970. 
O que deixou de ser levado em consideração foi o fato de Rubião já escrever este gênero narrativo no início da década de 40, inclusive publicando o conto “O ex-mágico” numa coletânea de autores brasileiros na Argentina, em 1946.
Rubião declarou em algumas entrevistas que só veio conhecer a literatura de Borges na década de 1960 e que o autor argentino não lhe agradou tanto, “muito preso às ciências ocultas, à numerologia, à cabalística”. 
Também disse não concordar quando compararam seus contos com a narrativa dos demais autores hispano-americanos. 
Para o escritor, seus contos só guardam parentesco com a obra de Kafka, de quem reconheceu a maestria, e uma certa influência posterior na maneira de construir situações insólitas, como forma de denunciar o absurdo que é a própria realidade.

O desencantado mundo mágico
Qual a graça de conhecermos um mundo mágico desencantado? E além que desencantado; triste, melancólico. 
A melancolia e a tristeza já foram pensadas como características constitutivas do povo brasileiro. Tal ideia parece coisa absurda por aqui, após termos virado a terra do carnaval, do futebol e da alegria.
Mas esta foi uma das primeiras “interpretações do Brasil”, que Paulo Prado sugeriu em seu Retratos do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”, escrito em 1928. Evidente que na época em que foi escrito, o poder desta autoimagem de um povo alegre e festivo não imperava de maneira tão hegemônica como em nossos dias.
            “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram.”
Paulo Prado. Retratos do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira.
(Companhia das Letras, 2012)

Moacyr Scliar volta a este assunto que mobilizou Paulo Prado, em Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil, de 2003. Livro incrível dentro do qual beleza, erudição e clareza caminham juntos do começo ao fim, além de atualizar e superar os pressupostos dos quais partiu o autor de Retratos do Brasil, sem, no entanto, caracterizar o brasileiro como um povo triste.
            
Havia motivos para a tristeza. Não um motivo racial ou constitucional, como pretendia Prado, mas um motivo social, histórico: o genocídio indígena, a escravidão negra, as pestilências, a pobreza.
Moacyr Scliar. 'Saturno dos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil.'
(Companhia das Letras, 2003)

Quando dirige seu olhar para a literatura, Scliar mira em Machado de Assis e Lima Barreto, além de Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Clarice Lispector, exemplos de autora e autores que mobilizaram em suas obras toda essa herança melancólica subjacente em nós, brasileiros.
Peço licença para incluir entre os autores de Moacyr Scliar o nome de Murilo Rubião, cuja obra parece ter sido escrita sob o próprio signo da melancolia, a arrastar e arrasar os personagens por um labirinto de narrativas absurdas e fantásticas, que não são outra coisa senão nossa própria realidade, transfigurada e decantada poeticamente, sob a forma de contos.

Felizmente, a crítica conseguiu superar Kafka e a latino-hispano-dependência, passando a olhar para a obra de Murilo Rubião dentro de suas características sui generis. Tal o empreendimento de Jorge Schwartz e Davi Arrigucci Jr. 
Um truísmo elementar parece ter demorado a ser evocado: a obra de Rubião é essencialmente brasileira, caracteristicamente mineira, mas que toca em temas humanos fundamentais para a civilização ocidental.
            São, em geral, pequenas cidades perdidas entre morros, onde a vida vegeta, mas se encontram os mecanismos sociais e os comportamentos do mundo moderno dos grandes centros distantes, com seu peso de alienação e a reprodução das relações reificadas.
Davi Arrigucci Jr. 'O sequestro da surpresa'. (Folha de S. Paulo, 11 de abril de 1998)

Os contos de Murilo Rubião, normalmente ambientados em cidadezinhas mineiras, são extremamente modernos, quer pela técnica da linguagem, pelos temas tratados e pelo recurso ao absurdo construído logicamente. 
A linguagem do absurdo, ou do fantástico, foi a forma escolhida pelo autor para denunciar a opressão do cotidiano, sobretudo com a chegada das instituições modernizantes.
Linguagem duma transparência jornalística onde o irreal surge espontaneamente, causando um estranhamento imediato. 
Este mundo mágico criado por Murilo Rubião é povoado de animais e metamorfoses, que nos remetem às fábulas e à mitologia grega, mas que acabam sendo ressignificadas pela técnica do escritor para desvendar a perversidade do real.

            – Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?
            Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
            – Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
            – Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
            Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
            – Você não dá é porque não tem, não é, moço?
            O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. […] Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo.
Murilo Rubião. “Teleco, o coelhinho”. In: Obra completa.
(Companhia das Letras, 2013)

A expansão da imaginação, aparentemente ilimitada no universo da narrativa fantástica, encontra nos contos de Murilo Rubião alguns bloqueios que funcionam, conforme escreveu Fábio Lucas, como “cláusulas restritivas”. 
Não há nenhum tipo de gratuidade nos devaneios murilianos, e seu mundo mágico surge despido de qualquer surpresa por parte dos personagens e do narrador, como a denunciar o contingente da vida e seu lado terrivelmente real.
A impressão é de que em muitos de seus contos existe a fundação de um mundo onírico, que surge dentro deste nosso mundo real terrivelmente administrado e burocratizado, construído pela racionalidade moderna.
Mas este outro mundo mágico que de repente surge nos contos, para dentro do qual os personagens são arrastados, é também um local sem saída, onde os pobres-diabos passam a girar em falso. 
São poucos os contos em que os personagens morrem no final, sendo mais corriqueiro, na obra de Rubião, a eterna presentificação da agonia. 
O mundo mágico, então, que poderia ser uma porta encantada para os personagens se verem livres do tédio existencial, acaba se convertendo num eterno desencanto.

            Sou visto muitas vezes procurando retirar com o dedo, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.
            Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequenas coisas.
            Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.
            Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.
Murilo Rubião. “O ex-mágico da Taberna Minhota”. In: Obra Completa.
(Companhia das Letras, 2013)

Existe uma completa falta de esperanças nos contos de Rubião, o que ele considera sintoma da perda de Deus e da crença num mundo eterno para além da vida terrena. “Essa perda da eternidade na minha literatura é uma das causas dessa falta de esperança”.

Lançados no turbilhão de um mundo onírico, mas também regulamentado e regrado, os personagens, inclusive os animais, tornam-se agentes passivos das instituições desencantadoras, num processo que remete ao fenômeno descrito por Max Weber como o “desencantamento do mundo”, oriundo da racionalidade radical que se desenvolveu nas modernas cidades ocidentais. 
As sucessivas metamorfoses pelas quais passam os personagens são vãs tentativas de fugir ao fardo da existência desencantada. 
Eis o final de “Teleco, o coelhinho”:

            Alguns dias transcorridos, perdurava o mesmo caos. Pelos cantos a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo. […] Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado da longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.

Talvez seja esta uma das denúncias que Murilo Rubião tenta fazer por intermédio de seu realismo mágico. 
Através de suas páginas, podemos entrever, para além da tristeza e melancolia, a forma como do desencantamento do mundo chega ao Brasil. 
Dentre tantos e importantes outros temas, a impossibilidade de uma transcendência, que acaba por atrelar a vida inexoravelmente ao mundo real, parece estar presente em sua obra do começo ao fim.
Se eu pudesse lançar mão duma epígrafe para encimar a obra de Rubião como um todo, talvez escolhesse as palavras do personagem dostoiéviskiano Ivan Karamázov, quando diz que “Se não existe a imortalidade da alma, então não existe tampouco a virtude, logo, tudo é permitido”, o que, trocado em miúdos, acabou se convertendo em “Se Deus está morto, então tudo é permitido”.





*            *            *

(*) Alexandre Rosa é escritor, cientista social, educador no Projeto Vocacional Literatura, da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, e mestrando no programa “Cultura e Identidades Brasileiras” do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Drummond e o 'VelhoChico'

Águas e Mágoas do Rio São Francisco
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



Está secando o velho Chico.
Está mirrando, está morrendo.
Já não quer saber de lanchas-ônibus
nem de chatas e seus empurradores.
Cansou-se de gaiolas e literatura encomiástica e mostra o leito pobre,
as pedras, as areias desoladas
onde nenhum minhocão
ou cachorrinha-d’água,
cativados a nacos de fumo forte,
restam para semente
de contos fabulosos e assustados.

Ei, velho Chico, deixas teus barqueiros
e barranqueiros na pior?
Recusas frete em Pirapora
e ir levando pro Norte as alegrias?
Negas teus surubins,
teus mitos e dourados,
teus postais alucinantes de crepúsculo
à gula dos turistas?
Ou é apenas seca de junho-julho
para descanso
e volta mais barrenta na explosão
da chuva gorda?


Já te estranham, meu Chico. Desta vez,
encolheste demais. O cemitério
de barcos encalhados se desdobra
na lama que deixaste. O fio d’água
(ou lágrimas?) escorre
entre carcaças novas: é brinquedo
de curumins, os únicos navios
que aceitas transportar com desenfado.
Mulheres quebram pedra
no pátio ressequido
que foi teu leito e esboça teu fantasma.

Não escutas, ó Chico, as rezas músicas
dos fiéis que em procissão
imploram chuva?
São amigos que te querem,
companheiros que carecem
de teu deslizar sem pressa
(tão suave que corrias, embora tão artioso
que muitas vezes tiravas
a terra de um lado e a punhas
mais adiante, de moleque).
É gente que vai murchando
em frente à lavoura morta
e ao esqueleto do gado,
por entre portos de lenha
e comercinhos decrépitos;
a dura gente sofrida
que carregas (carregavas)
no teu lombo de água turva
mas afinal água santa,
meu rio, amigo roteiro
de Pirapora a Juazeiro.
Responde, Chico, responde!


Não vem resposta de Chico,
e vai sumindo seu rastro
como rastro da viola
se esgarça no vão do vento.
E na secura da terra
e no barro que ele deixa
onde Martius viu seu reino,
na carranca dos remeiros
(memória de outras carrancas,
há muito peças de living),
nas tortas margens que o homem
não soube retificar
(não soube ou não quis? paciência),
de pontes sobre o vazio,
na negra ausência de verde,
no sacrifício das árvores
cortadas, carbonizadas,
no azul, que virou fumaça,
nas araras capturadas
que não mandam mais seus guinchos
à paisagem de seca
(onde o tapete de finas gramíneas,
dos viajantes antigos?),
no chão deserto, na fome
dos subnutridos nus,
não colho qualquer resposta,
nada fala, nada conta
das tristuras e renúncias,
dos desencantos, dos males,
das ofensas, das rapinas
que no giro de três séculos
fazem secar e morrer
a flor de água de um rio.

*      *      *

Em “Discurso de Primavera e Algumas Sombras” – 1978