sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CARLOS VOGT - A Bela e a Fera

A Bela e a Fera
Carlos Vogt  
Linguista e poeta, nasceu em Sales Oliveira (SP) no dia 6 de fevereiro de 1943.


Quando o pobre pai - que era rico e ficou pobre -
arrancou a rosa do jardim daquele misterioso palácio,
rosa vermelha encarnada para a filha mais nova e querida,
a gota de sangue que há em cada poema
tingiu-lhe a mão, os espinhos que espetavam a mão,
e a mão que agarrada aos espinhos
transformava aos poucos seu braço-membro em braço-rosa.

Nesse instante, sem que soubesse de onde, nem como, nem por quê,
surgiu-lhe no peito a dor habitual dos grandes abandonos:
tinha diante de si a rosa de sangue transtornada em fera,
e a fera em solidão.
Era uma fera terrível, lamentosa de queixumes quase humanos,
que, às vezes, numa voz de bicho,
outras, numa voz de homem,
prometia promessas de quem tem a propriedade de ser bicho-homem,
e ameaçava castigos só imagináveis na imaginação de um homem-bicho.

O monstro-bicho, o bicho-homem, o homem-monstro e o monstro-fixo
trouxeram para a fera a filha mais nova e querida que era Bela;
as irmãs também bonitas, mas ciumentas e feias só pelos ciúmes,
gostaram, como muitas outras de outras histórias de irmãs novas e velhas,
que a delicada menina preferida dos zelos e dos cuidados de seu velho pai,
- antigo mercador falido por ganância no antigo deserto das sombras imperiais -,
gostaram, pois, como dizia, que a doce, terna e meiga humanidade da criança
fosse entregue à sanha e ao apetite - assim pensavam -
da fera bruta, da feroz brutalidade do ódio cego da estranha criatura.
Contudo, a menina que rapidamente na viagem se tornava em moça,
e a moça que empurrava o corpo para ser mulher
logo aprenderam que a ferocidade do monstro e a monstruosidade da fera
eram muito menos do que algo em si - uma essência ou uma substância -,
e muito mais o termo de uma relação, um ser não-ser, uma carência,
alguém - se dizê-lo não for contraditório -
feito não da monstruosidade da fera que de fato mostra,
mas da triste humanidade ausente do homem que não era.

A menina-moça, à força de querer-lhe a natureza fazê-la outra,
primeiro veio-lhe o reconhecimento, depois, a compreensão
de que o destino a pusera não só no fluxo de sua própria vida,
mas na vida dos símbolos que sempre andam solidários na alheia solidão.

No dia em que sentiu vontade de voltar à sua velha casa,
deixou-lhe a fera consentida em dramas de grandes perdas e sofrimentos;
as irmãs invejosas também sofreram o desalento de ver a bela irmã mais nova
viva, livre - assim pensavam, sem perceber-lhe a alma cheia de tormentos.
O pai envelhecido mais que antes pediu-lhe que ficasse,
mas ela decidida ouviu ao longe a voz com que de hábito a fera a chama,
a chama que da vida, da triste vida ambígua, da fera se acabava.
Abalada em sustos, por muito pouco não ficou em casa, cheia de saudades da mãe,
que não conhecera;
se ali ficasse aninhada nos segredos do pai e no ódio das outras filhas,
suas irmãs,
dizem que seu destino seria sempre ficar entre:
não ser menina, ser quase moça, não ser mulher.

Porém, decidida e corajosa, como dizia, e como de fato era feito seu caráter,
espantou-se do torpor e célere correu por serras, fantasias, vales e desterros:
foi sendo atriz da própria personagem,
fugiu do instante oco em que o acerto se confunde em erros,
fez-se narrador de seu próprio texto.

Quando chegou à terra em que seu pai quase sem querer desatou-lhe o nó da vida,
ao apanhar a rosa para dedicá-la à delicada filha dona de seus zelos,
viu, num canto do jardim, junto aos roseirais, que a fera, exaurida em suspiros,
soluçava fundo:
era uma figura imponente como um fero monte de plagas tormentosas,
era grotesco o choro deste homem-monstro sucumbindo em rosas.
Entre a repulsa, a piedade, o horror, o amor e o medo,
beijou-lhe a fronte que desfalecia em suores frios,
o que foi bastante para o desencanto:
tinha diante de si um belo príncipe vulgar qualquer.

Assim, acabou-se a história:
do intervalo de ser quase uma e não ser nunca outra,
a menina-moça, pela fera dúbia, pelo pai querido, pela mãe ausente, pelas irmãs cruéis,
transformou-se em rosa, rosa de sangue, que se fez mulher.


*            *            *

Nenhum comentário:

Postar um comentário