quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Quando nossos filhos voam - Rubem Ales

Quando Nossos Filhos Voam
Rubem Alves


Sei que é inevitável e bom que os filhos deixem de ser crianças e abandonem a proteção do ninho.
Eu mesmo sempre os empurrei para fora. 
Sei que é inevitável que eles voem em todas as direções como andorinhas adoidadas.
Sei que é inevitável que eles construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho abandonado no alto da palmeira…

Mas, o que eu queria, mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo…

Existem muitos jeitos de voar. 
Até mesmo o vôo dos filhos ocorre por etapas. 
O desmame, os primeiros passos, o primeiro dia na escola, a primeira dormida fora de casa, a primeira viagem…

Desde o nascimento de nossos filhos temos a oportunidade de aprender sobre esse estranho movimento de ir e vir, segurar e soltar, acolher e libertar. 
Nem sempre percebemos que esses momentos tão singelos são pequenos ensinamentos sobre o exercício da liberdade.

Mas chega um momento em que a realidade bate à porta e escancara novas verdades difíceis de encarar. É o grito da independência, a força da vida em movimento, o poder do tempo que tudo transforma.
É quando nos damos conta de que nossos filhos cresceram e apesar de insistirmos em ocupar o lugar de destaque, eles sentem urgência de conquistar o mundo longe de nós.

É chegado então o tempo de recolher nossas asas. Aprender a abraçar à distância, comemorar vitórias das quais não participamos diretamente, apoiar decisões que caminham para longe. 
Isso é amor.

Muitas vezes, confundimos amor com dependência. 
Sentimos erroneamente que se nossos filhos voarem livres não nos amarão mais. 
Criamos situações desnecessárias para mostrar o quanto somos imprescindíveis. 
Fazemos questão de apontar alguma situação que demande um conselho ou uma orientação nossa, porque no fundo o que precisamos é sentir que ainda somos amados. 

Muitas vezes confundimos amor com segurança. 
Por excesso de zelo ou proteção cortamos as asas de nossos filhos. Impedimos que eles busquem respostas próprias e vivam seus sonhos em vez dos nossos. 
Temos tanta certeza de que sabemos mais do que eles, que o porto seguro vira uma âncora que impede-os de navegar nas ondas de seu próprio destino.

Muitas vezes confundimos amor com apego. Ansiamos por congelar o tempo que tudo transforma. 
Ficamos grudados no medo de perder, evitando assim o fluxo natural da vida. 
Respiramos menos, pois não cabem em nosso corpo os ventos da mudança. 

Aprendo que o amor nada tem a ver com apego, segurança ou dependência, embora tantas vezes eu me confunda. 
Não adianta querer que seja diferente: o amor é alado.
Aprendo que a vida é feita de constantes mortes cotidianas, lambuzadas de sabor doce e amargo. Cada fim venta um começo. Cada ponto final abre espaço para uma nova frase. 
Aprendo que tudo passa menos o movimento. É nele que podemos pousar nosso descanso e nossa fé, porque ele é eterno. 
Aprendo que existe uma criança em mim que ao ver meus filhos crescidos, se assustam por não saber o que fazer. Mas é muito melhor ser livre do que imprescindível. 
Aprendo que é preciso ter coragem para voar e deixar voar. 
E não há estrada mais bela do que essa."

*            *            *

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A velha amiga - crônica de Rachel de Queiroz


Cena do filme "Encontro Marcado"
A Velha Amiga
Rachel de Queiroz

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.

Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.

Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou exprimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.

E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade – mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo – e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.

Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.
*            *            *

Crônica publicada originalmente no jornal “O Estado de São Paulo” – 13/01/2001 – Extraída do livro: Melhores Crônicas -  Rachel de Queiroz

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Branca de Neve - Adélia Prado


Branca de Neve
Adélia Prado


Caibo melhor no mundo
se me dou conta do que julgava impossível:
'Nem todo alemão conhece Mozart.'
Um óbvio, pois nem é preciso, 
cada país tem seu universal
e basta um para nos entendermos.

Com os russos me sinto em casa,
não podem ver uma névoa,
uma aguinha, uma flor no capim
e param eternos minutos fazendo diminutivos.
Como o jagunço Riobaldo que sabe do mundo todo
e tem Minas Gerais na palma da sua mão.
Fico hiperbólica para chegar mais perto.

"Geração perversa, raça de víboras"
não é também um exagero do Cristo
para vazar sua raiva?
Escribas e fariseus o tiravam do sério.
Mas todos eles? Todos?

Cheiramos mal, a maioria,
e sofremos de medo, todos. O corpo quer existir,
dá alarmes constrangedores.
Me inclino aos apócrifos como quem cava tesouros.
É evangélico que trabalhem cantando
os anõezinhos da história.
No fundo todos queremos
conhecer biblicamente,
apesar de que os pés de página,
por mania de limpeza,
não é sempre que ajudam.
O verdadeiro é sujo,
destinadamente sujo.
Não são gentilezas as doçuras de Deus.

Se tivesse coragem, diria
o que em mim mesma produziria vergonha,
vários me odiariam,
feridos de constrangimento.
Graças a Deus sou medrosa,
o instinto de sobrevivência
me torna a língua gentil.
Aceito o elogio
de que demonstro 'tino escolhitivo'.
Pra quem me pede dou lista de filme bom.
Demoro a aprender
que a linha reta é puro desconforto.
Sou curva, mista e quebrada,
sou humana. Como o doido,
bato a cabeça só pra gozar a delícia
de ver a dor sumir quando sossego.

*            *            *
 Do livro "Miserere".

domingo, 14 de fevereiro de 2016

A magia das palavras - YOSKHAZ

A magia das palavras
 Yoskhaz

Todos somos feiticeiros e a palavra é o principal ingrediente do caldeirão.
Através do que é dito ou escrito podemos convidar os povos a dançar, semeando alegria e esperança ou construir muros, espalhando ódio e medo.
Este é o poder e ele é seu.
Assim, cada manifestação se torna um ato de magia e define qual tipo de feiticeiro escolhemos ser.

Desde tempos remotos ensina-se que a palavra tem poder.
Toda palavra traz em si uma ideia.
Diversas culturas ensinam valiosas lições sobre o cuidado que devemos ter com a palavra.

O cristianismo orienta que as palavras revelam o que cada um tem no coração.
Elas são a exata medida do nível de consciência de quem as emite.

Os cabalistas narram uma bela história em que um professor, para corrigir um aluno que difamou o colega, pede que escreva a ofensa em um pedaço de papel. Depois que a rasgue em muitos pedaços e os solte em lugar assolado por forte ventania. Agora recolha tudo, determina o professor. Impossível, responde o aluno faltoso que já não consegue ver para onde os pedaços restaram espalhados e perdidos.
Assim acontece com as nossas palavras, explica o bondoso professor, depois de ditas já não nos pertence mais e ignoramos qual será o seu destino.

– Preste atenção antes de falar. Escute todos os lados envolvidos; em toda discórdia há no mínimo duas versões, além da verdade.

– Pondere quais sentimentos te movem: ódio, ciúme, vingança, inveja ou amor e paz?

– Outro cuidado que devemos ter é não travestir o desejo de vingança com as vestes da justiça.
Não raro, sob a falsa e pretensa alegação do ato nobre, ocultamos e damos vazão aos nossos sentimentos mais densos e sombrios.

– Seja claro e objetivo em suas palavras. Não é não; sim é sim.
Exponha seu raciocínio serenamente e respeite o entendimento alheio contrário ao seu.
Que seu coração nunca esqueça que a boa semente não se perde e, no momento oportuno, germinará.

– As mais sábias palavras despencam no abismo se não forem o espelho das atitudes de quem as disse.

– Seja sempre sincero e nunca finja afeição, porém lembre que o amor é a força mais poderosa que existe. O amor é a matéria-prima de todos os milagres.
A palavra traz Luz aos cegos.

O budismo ensina que Universo é um ser vivo em eterna transformação e reage na exata razão das nossas ações.
A melhor maneira de comungar com Ele é espalhando alegria por toda a gente.
Para tanto, a palavra é uma sementeira poderosa e barata.

A sabedoria empresta cores à filosofia das mais diversas tradições.
Reconhecer a árvore através de seu fruto é outro belo quadro desenhado com as mesmas tintas.
Sendo você a árvore, os frutos são suas palavras (e atitudes).
Decida se vai envenenar ou alimentar a humanidade em suas ceias espirituais.
Você se define a cada ato ou palavra.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Subterrâneos - Leticia Wierzchowski

Subterraneos
"No fundo, somos todos uma Roma"

Subterrâneos
Leticia Wierzchowski  
11 de fevereiro 2016 ,  blog Editora Intrínseca

No fundo, somos todos uma Roma. (fonte)

Somos nossa própria alvenaria.

Horas e dias e anos amontoam-se dentro da gente como peças e recantos de uma casa na qual o único desenho é o destino. 
Alguns de nós conseguem delimitar um espaço aqui ou ali por vontade própria, afinal sempre existem os estoicos.

Mas a planta geral da nossa existência é aleatória.

E os desabamentos acontecem, grandes ou pequenos. Tragédias íntimas, quem não as tem?

Falências, mortes, divórcios, doenças, sonhos que morrem e afetam profundamente os alicerces da nossa vida, derrubam paredes, interditam caminhos, escondem a vista. 
Podemos colocar tábuas e construir pontes que nos ajudem a atravessar essas crateras emocionais no dia a dia. Mas o passado que ruiu seguirá em cada um de nós feito uma cicatriz, assim como — oxalá! — as boas surpresas da vida às vezes nos entregam uma inesperada varanda para o mar, um sótão iluminado ou uma escada para novos horizontes.

Com o passar dos anos, todos seremos como essas cidades antigas sobre as quais o tempo vai depositando teimosamente suas incontáveis camadas, uma coisa soterrando a outra, e assim por diante, de forma que chegamos a imaginar que conseguimos esquecer certas pessoas, algumas memórias e antigas dores. 

Mas aí, subitamente, nos vemos obrigados a cavar uma vala, abrir espaço para o futuro, construir o túnel dos nossos dias, e lá está tudo intacto no fundo da gente, como a bela cidade de Roma com suas eternas obras do metrô — seus teimosos túneis acabam sempre topando com um palácio, ou catacumbas, ou termas, ou um anfiteatro. 
E os engenheiros precisam driblar esses tesouros renascidos das entranhas do tempo, contornando judiciosamente o passado que brota do chão romano por todos os lados.

No fundo, somos todos uma Roma — o passado inexpugnável nos habitará para sempre, oculto no centro palpitante da nossa memória.

Basta cavar.

E, às vezes, nem muito.

*            *            *