quarta-feira, 30 de março de 2016

A solidão nas telas de Edward Hopper

EDWARD HOPPER E A SOLIDÃO (adaptado)
Victor Oliveira - em 'Obvious - Do Ser'

Um dos marcos do modernismo, Edward Hopper foi um pintor paisagista que conseguiu captar de forma singular espaços urbanos contrastados com a individualidade de seus personagens, passando para o observador uma sensação melodramática.

Edward Hopper foi um pintor e artista gráfico norte-americano, nascido na capital financeira do mundo – Nova York – em 1882.
Ficou mundialmente conhecido por retratar a solidão contemporânea em suas obras, principalmente em ambientes urbanos, evidenciando assim que a individualidade do capitalismo nos traz a solidão.

As obras de Hopper retratam a vida moderna americana, focalizando a subjetividade e a solidão urbana, causando no observador um impacto psicológico.
Suas obras sofreram influência de psicólogos, como Freud e Bergson.

O ambiente nas obras do pintor americano, são paisagens urbanas, porém desertas, com um certo ar melancólico e iluminadas por uma luz “dramática”.
Automat.jpg
Automat (1927)
Evidenciando a solidão urbana, em “Automat” é retratada a cena de uma mulher sozinha em uma cafeteria, tarde da noite olhando para uma xícara de café.
As feições da moça revelam uma mistura de melancolia e exaustão, como quem retorna de um dia exaustivo em um trabalho  realizado sem gosto, algo comum nas grandes cidades.

Hotel room.jpg
Hotel room (1931)
Em “Hotel room”, uma mulher senta-se na cama fingindo ler um livro.
O quarto possui  mobiliário básico.
As malas estão fechadas, seus ombros curvados sugerem renúncia ou desespero.
Segundo Hopper, ela foi abandonada por um amante e esse  é o momento em que ela navega dentro de si mesma,

Room in NY.jpg
Room in New York (1932)
A inspiração dessa tela, segundo Hopper, foi um conjunto de impressões que o artista tivera dos vislumbres iluminados das casas e prédios que ele reparava durante suas caminhadas.
Essa obra retrata bem o individualismo dos casais que ao invés de estarem fazendo algo juntos estão cada um realizando suas próprias atividades, ele lendo um jornal e ela tentando se distrair com um piano, mas claramente sem qualquer resultado.

Nightawks.jpg
Nighthawks (1942)
Mais famosa obra de Edward Hopper que serviu de inspiração para outras linguagens artísticas  - o cinema, outros trabalhos em artes plásticas  etc.
A tela retrata pessoas em um restaurante no fim da noite.
Esta tela não retrata  a solidão dessas pessoas,  todas no mesmo ambiente.  O foco é a ausência de movimento na rua que não reflete a efervescência de uma cidade grande.

Excursion in filosofia.jpg
Excursion in filosofia (1959)

Obra impactante do artista norte-americano, “Excursion in filosofia” mostra um homem de meia idade tendo um conflito existencial :  aparentemente insatisfeito com o trabalho, está sentado na cama, pronto para sair, mas com uma postura desanimada.

*            *            *


terça-feira, 22 de março de 2016

Rubem - Ana Luísa Escorel

Rubem Braga (1913-1990)

RUBEM
Ana Luisa Escorel - Blog 'de tudo um pouco' - 18 de janeiro de 2016

Para quem o conheceu na beira dos sessenta fica a imagem do homem de rosto e corpo largos, estatura mediana, cabelos fartos, bigodes bastos: um ursão grisalho. 
Olhar quase sempre mirando de baixo para cima, ariscos como os dos matutos. 
Na progressão da conversa passavam a espantados, diferentes das fotografias, em moço. Aí era magro, mais moreno – queimado de sol, talvez –, olhos tendendo a inquisidores. Devem ter ido se espantando com o correr da vida.

A fala – travada, pouco audível, entre fanha e ciciosa – não era a melhor forma de contato:  Rubem parecia estar sempre pedindo desculpas por não poder se passar do aparelho fonador. O som lhe escapava aos solavancos, pedaços de frases que se ligavam uns aos outros pela atenção de quem ouvia, não por mérito seu. 
Franco, muito franco, frequentemente ranzinza, dava a impressão de estar mais à vontade na escrita que na lida com a inelutável sucessão dos dias. 
E era de forma brusca que sabia ser gentil, quase empurrando para cima do objeto de seus afetos um presente ou um agrado escondidos dos quais, num dado momento, precisava como que imperiosamente se livrar.

Por bom tempo gostou da convivência em bares onde a conversa solta, o cigarro e a zonzeira da bebida ajudam a atiçar a curiosidade sobre o comportamento alheio. 
Mas isso ele não punha nas crônicas, limitava à vida. Razão pela qual seu texto continua soberbo oferecendo uma textura transparente como só as manhãs de maio no leste do Brasil. 
Nele reinam as lembranças de Cachoeiro – Cachoeiro do Itapemirim – onde ficaram avós e tios em suas fazendas; pais e irmãos no casarão protegido pelo cajueiro monumental; vizinhos de maus e bons bofes; a escola; os primeiros escritos e os alumbramentos fundamentais.

Cachoeiro. Diagrama que dá nexo sustentando, até o fim, a visão fresca do cronista. 
Vem provavelmente de lá o cuidado de frear o comentário mais direto sobre esse ou aquele personagem, dos inúmeros que povoaram as impressões cotidianas com as quais, por volta de seis décadas, registrou as ansiedades de um país sempre crisálida. 
Deve vir também de Cachoeiro – e da ética estrita da classe média provinciana – a discrição com que dosava as reações sem atingir ninguém, a não ser a si mesmo, com o travo ácido de uma lucidez cortante. 
No texto de Rubem a observação se inclina para o abstrato. 
O compromisso não parece repousar no enredo, mas no esforço de compreender a dinâmica na qual se debatem homens e mulheres na massa física de que é feito o mundo.

Mar. Infância. Namoradas. Temas recorrentes repetidos à exaustão. Quase pretextos para justificar o exer­cício de uma escrita impecável onde, com domínio da forma e profundo senso da língua Rubem Braga induz, quem o lê, a achar que escrever  é  fácil.

*            *            *

Lembranças da Farmácia Piauí

 DE TUDO UM POUCO BLOG por Ana Luisa Escorel 

 Capa_Farmacia

UMA FARMÁCIA EM 3 TEMPOS
21 de março de 2016

O Leblon é um bairro empenhado em oferecer ilhas de sofisticação em meio à feiura crescente do espaço construído do Rio de Janeiro, onde a exploração do solo urbano tem se imposto da pior forma possível. 
O efeito disso está impresso nas calçadas imundas, cheias de falhas, frestas, lixo, buracos, desníveis; nos muros pichados – do subúrbio à mais cara das vizinhanças –; nos prédios de péssima arquitetura excessivamente próximos uns dos outros, paredões de concreto vencendo a altura das montanhas e aviltando a extraordinária topografia do Rio. Nas pistas de velocidade que destroem bairros inteiros; em postes de tudo quanto é jeito e tamanho entrelaçados a cipoais de fios conduzindo serviços de utilidade pública pouco eficientes; nas centenas de coletivos rodando ao mesmo tempo em perfeita sintonia com nuvens de gás carbônico que entopem vias de acesso indispensáveis, com alto risco para a segurança de quem ousa resistir a eles. 
Sem falar nas aceleradas em coro contínuo, código com que tornam clara a disposição permanentemente agressiva. 
E tudo isso coroado pelas favelas, encarapitadas em todos os morros disponíveis, solapando encostas e pondo abaixo extensões e mais extensões de florestas.

Nesse quadro, alguns pontos da zona sul do Rio, como o Leblon, justamente, tentam construir um mundo à parte voltado para as camadas privilegiadas, com bons restaurantes, ótimas livrarias, ­muitas delas contando com cafés agradabilíssimos e patisserie de primeira; lojas que vendem produtos finos de qualquer natureza – nacionais e importados –; bancas de jornais e revistas onde se pode comprar notícias de todos os cantos do mundo.

Pois numa esquina do Leblon ficava a farmácia Piauí, aberta de sol a sol, sempre atenta ao bairro e a todos aqueles que, mesmo vindos de longe, precisassem de socorro em horários improváveis. 
Durante anos seguidos a Piauí acudiu em seus balcões os achacados por dor física ou moral oferecendo, de quebra, a possibilidade do encontro entre amigos e conhecidos que se esbarravam neles de manhã, de tarde, de noite ou de madrugada.

Um dia a Piauí fechou para tristeza de todos os horários, dando lugar a mais um elo da portentosa cadeia Raia, que há alguns anos vem cravando pelo Brasil afora suas incontáveis franquias: não houve choradeira que segurasse a marcha dos negócios.

Nesse novo cenário, uma paulista perdida no Rio há tempos, na habitual visita de fins de semana ao Leblon, deu com a novidade afixada do lado de fora da Droga Raia – antiga Piauí – na face que dá para a rua lateral, a Rita Ludolf. 
Ao lançar pela undécima vez o olhar sobre a esquina da velha farmácia, buscando pretexto para alimentar a saudade, deu com motivo mais consistente de nostalgia: a ampliação em preto e branco de uma foto mostrando certo espaço comercial, cortado pela frase “Há mais de cinquenta anos servindo com qualidade”. 
No registro da fotografia, armários escuros, caixilhos de madeira lavrada, portas de vidro, frascos transparentes misturados a embalagens de papel enfileirados com ordem nas prateleiras, mais um cheiro acre-doce de cânfora que varava os limites da memória. 
O farmaceutico, avental branco muito limpo atrás do balcão, óculos de aros fortes, cabelos rentes, bigodes escuros cuidadosamente aparados acusava, como todo o resto, as maneiras, os arranjos, o espírito, enfim, do atendimento comercial do final dos anos 1940, meados dos anos 1950.

O coração da moça começou a bater depressa. Não!… Seria possível?…Afinal, a disposição interna das farmácias daquele tempo era muito parecida… 
Então fincou bem o olho na imagem e, examinando os detalhes, teve a confirmação na figura elegante de um rapaz de olhos gateados, entrevisto na portinhola atrás de um dos balcões, em frente ao quartinho em que se aplicavam as injeções. Era ele! Era ele, sim! O moço da farmácia Internacional! 
Filho do dono ou do gerente, talvez, com quem, anos a fio, nossa paulista, ainda criança, cruzava pela cidade nas férias passadas em Araraquara! No clube, jogando tênis, impecável, roupa toda branca; nas matinês de carnaval, vendo o baile em pé, muito composto na beira do salão; e, claro, todos os dias dentro da farmácia, ajudando. 
Sempre comedido, impressionando a menina com quem jamais trocou palavra e que, mesmo assim, não apagou da lembrança a expresão doce, a figura sempre de claro que, por conta dos olhos azuis, da pele rosada, do cabelo louro, ela associava às representações dos arcanjos renascentistas, folheando os livros de arte da mãe. 
O que terá sido feito do moço? Terá alguma coisa a ver com o formidável crescimento da rede de drogarias Raia? O negócio ainda estará com a família? Seria ele da família? Estará vivo? 
Dúvidas sem volta nem resposta.

De qualquer forma, agora, no Leblon, mais precisamente na esquina de Ataulfo de Paiva com Rita Ludolf, a moça passará a ter, a cada fim de semana, um diálogo mudo com a fotografia, deixando a memória levar o coração para um tempo bom, até o dia em que a farmácia mudar outra vez de mãos, ou os donos resolverem tirar a fotografia da parede por achar que já terá cumprido a função.

A partir daí, para a moça, a esquina voltará a ser apenas o entroncamento de ruas barulhentas, sujas e malcuidadas, num bairro comprometido em escamotear as próprias limitações com expedientes frágeis, repetindo, em menor grau, a dinâmica que se amplia dele para toda a cidade e da cidade para o país, levando o Brasil a ser um repositório inexcedível no campo da contrafação, da injustiça social, da violência e da falta de planejamento urbano.

*            *            *

segunda-feira, 21 de março de 2016

Moda - YOSKHAZ



Ser gente nunca sai de moda
YOSKHAZ,  O Caçador de estrelas

A necessidade de andar na moda, a aflição inconsciente de estar em sintonia com o que se imagina ser moderno, revela uma busca por identificação e aceitação, uma vontade, em geral não percebida, de encontrar um lugar para se viver em paz. 
A moda nasce da necessidade cultural das pessoas de entender quem são e aonde caminham. 
Roupas, acessórios, carros, ideias enlatadas, maneiras de agir e falar tentam desesperadamente rotular o ser na tentativa de fazê-lo acreditar que pela casca se reconhece o valor da fruta. 
Em vão.

Perde-se a beleza de inventar a si próprio e a força de ser único. 
A moda traz consigo o perigo de projetar um suposto ideal que com certeza não somos.

O limite da forma estabelece fronteiras. 
Qualquer modelo pronto a ser usado rouba a originalidade do indivíduo, a beleza dos voos solos em altitudes inimagináveis, onde, só então, se defrontará com mundos e possibilidades apenas acessíveis a quem ousa ir além da normalidade e das permissões mundanas. 
O exercício da criatividade desenvolve as asas da liberdade.

Nada contra a indústria de consumo, como roupas, carros ou entretenimento que precisa produzir e vender para gerar riqueza e empregos que movimentam o planeta. 
Beleza e conforto, quando atingidos e usufruídos de maneira digna, são bem-vindos. 
Para ser feliz não é preciso ser um asceta no sentido original da palavra. Porém, há que se entender o limite de todas as coisas e o sentido da busca de cada um.

A moda costuma servir de referência para o sujeito se situar em determinado grupo social seja atrás de aceitação ou destaque. Um jeito ingênuo de imaginar quem é ou gostaria de ser, um lugar na tribo que admira, na tentativa de se impor e encontrar o seu canto no mundo. 
Em suma, a moda tenta acomodar nos porões da mente as mitológicas indagações de quem somos e para aonde vamos. 
Mas de que adianta um espelho se não se quer ver? 
De que serve mapa e bússola se não se sabe para aonde ir? 
Pode a forma ganhar mais importância do que a essência?

Inconscientemente a moda ilude o consciente, vendendo o que não pode entregar.

Ainda que não esteja claramente decodificado no entendimento de cada indivíduo, caminhamos, invariavelmente, em busca da plenitude do ser, onde, só então, conseguiremos encontrar toda a paz que precisamos e, em análise honesta, é o que importa. Entretanto, chegar até esse paraíso é a pergunta que não se cala.

Por ainda não terem decodificado o processo, muitos ainda procuram desesperadamente na moda signos de identificação, na ilusão de não se sentirem perdidos, como se a felicidade estivesse disponível na vitrine ou na prateleira das lojas ao alcance do cartão de crédito. 
É bem mais simples e confortável trabalhar a forma do que a essência. Porém, o resultado nunca será o mesmo. 
Trocar de vestido não cicatriza as feridas do coração; o brilho de uma jóia não ilumina os vãos escuros da tristeza; um belo e caro carro pode despertar admiração dos outros e te levar a um confortável passeio, mas as angústias mal resolvidas te acompanharão por toda a parte; o acesso às modernas tecnologias não te dão resposta às questões profundas da alma.

Adiar o mergulho no autoconhecimento é ficar sentado na estação vendo passar o trem da plenitude. É necessário coragem de se ver e entender quem realmente é, encarar as próprias dores e frustrações, assumir as responsabilidades, lamber as feridas para curá-las. E, então, se transformar. 
A busca é árdua, mas o encontro é mágico. 
Extrair e vivenciar o que há de melhor em si, como diamante que precisa lapidar o cascalho até refletir perfeita luz, define a sua roupa.

Na medida que vamos nos conhecendo e transmutando sombras em luz, trocamos o paletó da inteligência, o vestido do coração, o guarda-roupa da alma. 
Saber quem somos é fundamental para entender os outros e o mundo. 
Se a vida oferece andrajos ou prêt-à-porter, lembre-se que somos os nossos próprios alfaiates. Cabe a cada um escolher os tecidos do amor, costurar com as linhas da compaixão, abotoar com sabedoria, vestir com a paciência da eternidade. 
Depois basta distribuir os lenços da alegria por onde passar, a qualquer um, sem distinção.

Encontrar brilho na trajetória de todas as pessoas revela a luz que há em ti. 
A beleza das novas vestes vai encantar inimagináveis passarelas e todos desejarão estar por perto, desfilar ao teu lado, independente da cor da calça, do modelo do carro ou da marca do sapato. 
A elegância não está na grife, porém no estilo.

Não é o que se usa, mas um jeito de ser.

Ser gente nunca sai de moda.


*            *            *

domingo, 20 de março de 2016

Outonal - Florbela Espanca

Outonal
Florblea Espanca

Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio… Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago…

Veludos a ondear… Mistério mago…
Encantamento… A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago…

Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor…

 *            *            *

(Florbela Espanca, «Charneca em Flor», in «Poesia Completa»)


quinta-feira, 17 de março de 2016

Eu não gosto... - Eberth Vêncio em "Revista Bula"


EU NÃO GOSTO DE NADA QUE O MUNDO GOSTA
Eberth Vêncio - colunista de "Revista Bula"

Eu não gosto de sonhar dormindo mais do que eu sonho ao permanecer acordado.
Eu não gosto do altruísmo narcisista das redes sociais.
Eu não gosto de carinho quando estou nervoso. Eu não sou um cãozinho faminto que rola e late.
Ainda que seja amargo como eu, eu não gosto de chocolate.
Eu não gosto de esconder os ovos de Páscoa das crianças nos arbustos do jardim.
Eu não gosto de brincar com os sentimentos dos outros.
Eu não gosto de ficar bêbado até dizer a verdade.
Eu não gosto de revelar os meus deslizes sexuais a um padre.
Eu não gosto das farras animais.
Eu não gosto de rodeio, de meter as esporas.
(...)
Eu não gosto de puteiros, de igrejas e da maçonaria.
Eu não gosto de tanto mistério acerca da vida e da morte.
Eu não gosto da incompreensível euforia do carnaval.
Eu não gosto do réveillon.
Por mais estranho que possa parecer, eu não gosto de me confraternizar com estranhos.
Eu não gosto de feriados prolongados.
Eu não gosto de enforcar sextas-feiras.
Eu não gosto de mendigar atestado médico para salvar um dia.
Eu não gosto de entrar num elevador sem dizer “bom dia”.
Eu não gosto de seguir a onda.
Eu não gosto de fazer a ola no estádio.
Eu não gosto de estagiárias burras e desinibidas.
Eu não gosto de jogar na loteria.
Eu não gosto de sonhar em ficar rico.
Eu não quero uma Ferrari, uma ilha só pra mim ou um novo par de tetas.
Eu não gosto das mutretas.
Eu não gosto de operar milagres no SUS.
Eu não gosto de assistir a uma sessão de espancamento do MMA.
Eu não gosto de sangue no tatame.
Eu não gosto de ketchup no salame.
Eu não gosto dos filmes do Cobra e do Jean-Claude Van Damme.
Eu não gosto da ditadura do silicone.
Eu não gosto das cicatrizes que, de tão perfeitas, nem parecem cicatrizes.
Eu não gosto das caras recauchutadas das atrizes e das madames.
Eu não gosto da farsa de uma toxina botulínica sobre o sorriso.
Eu não gosto de dizer “eu te amo”, da boca pra fora, como se fosse “me passa a margarina”.
Eu não gosto de rissoles frios e de festa infantil.
(...)
Eu não gosto do bife bem passado.
Eu não gosto daquele tempo em que eu era feliz e não sabia.
Eu não gosto de enaltecer o futebol como se ele fosse arte.
Eu não gosto do tira-teima da TV.
Eu não gosto de enaltecer o erro, esmiuçá-lo: o beiço de pulga, a pontinha da chuteira, o passinho-a-mais-à-frente… Eu acho deplorável massacrar um trio de arbitragem.
Eu não gosto de ler as bulas dos remédios.
Mesmo me sentindo — às vezes — um vendido, eu não gosto de ler os livros mais vendidos.
Eu não gosto das dinâmicas em grupo, do esforço concentrado, de rezar o terço, de fazer suruba.
Eu não gosto de novena, de novela e da dança da manivela.
Eu não gosto de assistir às retrospectivas de final de ano.
Eu não gosto da santa hipocrisia que reina em dezembro.
Eu não gosto de fazer planos em janeiro.
Eu não gosto do show da virada do Roberto Carlos.
Neste quesito, em particular, eu sou, sim, um cão que abomina foguetório.
Eu não gosto de negociar partilhas durante um velório.
Eu não gosto de dar esmolas no semáforo.
Eu não gosto de me sentir só no meio da multidão animada.
Por fim, de tudo o que o mundo gosta, eu gosto de quase nada.

*            *            *

sexta-feira, 11 de março de 2016

Se você engolir tudo o que sente... - Ruth Borges


‘SE VOCÊ ENGOLIR TUDO QUE SENTE, NO FINAL VOCÊ SE AFOGA’
Ruth Borges - em "Revista Bula"

Engole o choro. Engole sapo. Não diga, não quero saber. Cala a boca, cala o peito, cale-se!
Mas o corpo fala, e como fala.
Fala a ponta dos dedos batendo na mesa, fala o dente acirrado, rangendo estridente.
Falam os pés inquietos na cama. Falam os olhos caindo tristonhos.
Fala dor de cabeça, dor na alma. Fala gastrite, psoríase, fala ansiedade, fala memória perdida.
Fala o corpo curvado, fala o nó na garganta atravessado.
Fala angústia, fala ruga. Fala insônia, fala sono demasiado.
Falador.

É impossível entrar no tatame da vida sem levar uns tapas dela.
Mágoa, tristeza, dor, raiva, são sentimentos que nos atravessam sem pedir licença.
A verdade é que enquanto estamos sentados na pedra fitando o abismo em dor, mastigamos as emoções, mas nem sempre as digerimos bem.
Emoções engolidas e não digeridas corroem feito ácido. É bicho morando no estômago, mordente, cáustico. É soda!
Emoções indigestas são como bruxas trancafiadas no corpo. Medonhas, a carregar sensações malditas e mal ditas.
Ninguém quer saber de falar de sentimentos mal cheirosos. Então a gente engole, e esse mal entendido vira coisa que entra no estômago, percorre a garganta, o peito, e se deixarmos, calará nossa boca e nossa paz por uma vida inteira.

E aí, cedo ou tarde, todas as dores do mundo hão de querer vomitar, regurgitar o mal resolvido, e nos contorcer novamente as entranhas.
É preciso um pouco de coragem para se fazer falar. Emoção amordaçada nos faz refém dela.
Dor tapada, cala necessidade. Mágoa não entendida, enfarta a fé nas pessoas. Raiva carregada, pesada, transita ardente pelas costas.
Não dá pra engolir tudo e dizer amém! Eu sei.
Também não dá pra cometer sincericídios por aí.
Mas dá para expressar. O que se sente cabe tradução.

Freud disse certa vez: “a ciência moderna ainda não produziu um medicamento tranquilizador tão eficaz como são umas poucas palavras boas”.
É isso, tem hora que o sentimento pede pra ser dito, entendido, descodificado, traduzido. Tudo que ele quer é ser exorcizado pela palavra ou pela via que lhe cabe melhor. Expressar tranquiliza-a-dor. Dor não é pra sentir pra sempre. Dor é vírgula.

Então diz! Diz logo o que quer dizer sua bruxa.
Coloca a dor no caldeirão e faz sopa de letrinhas.
Faz uma carta, um poema, um livro. Faz uma orquestra tocar. Pega as sapatilhas, sapateia.
Faz uma aquarela. Faz uma vida. Faz lá, sol, manda a dó se catar.
Faz piada, faz texto, faz quadro, faz encontro com amigo.
Faz corrida no parque. Fala pro seu analista, discute com Deus, se pinta de artista.
Conversa sozinho, papeia com seu gato, berra aos céus, mas não te cales.
Fala, vai. Pois “se você engolir tudo que sente, no final você se afoga”.
É que emoções indigestas e encarceradas mergulham no coração mais tarde para explodi-lo.

E aí, me diz, quem será capaz de nos juntar?
Jamais a mágoa e toda a lama que ela carrega será melhor do que a nossa paz.

*            *            *