sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

ALBERT EINSTEIN - Como vejo o mundo (trecho)




"O que podemos experimentar de mais belo é o mistério.
Ele é a fonte de toda a arte e ciência verdadeira.
Aquele que for alheio a essa emoção, aquele que não se detém a admirar as colinas, sentindo-se cheio de surpresa, esse já está, por assim dizer, morto e tem os olhos extintos.

O que fez nascer a religião foi essa vivência do misterioso - embora mesclado de terror.

Saber que existe algo insondável, sentir a presença de algo profundamente racional e radiantemente belo, algo que compreenderemos apenas em forma muito rudimentar - é esta experiência que constitui a atitude genuinamente religiosa.

Neste sentido, e unicamente neste sentido pertenço aos homens profundamente religiosos."



ALBERT EINSTEIN  in 'Como vejo o mundo'

*            *            *

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

ANO NOVO


Rumo a um Ano Novo

Rumo a um Ano Novo

Adilia Belotti



O novo está bem longe de ser uma unanimidade. Para alguns, ele chega como um frio na barriga, um medo de não sei o que, uma vontade de sair correndo pela primeira porta que aparecer. Outros, porém, conseguem ficar mais à vontade com as surpresas do futuro e acolher as novidades com alguma tranqüilidade. Mas, de modo assim bem geral, o novo assusta. No limite o Grande Novo, aquele para o qual evitamos sempre olhar e de quem pouco ou nada sabemos é a Morte, este mergulho no absolutamente. novo!

E por conta desta semelhança, paira uma suspeita sobre tudo que é novo. Sim, porque é preciso não confundir o novo com a novidade. As novidades são ligeiras e frívolas. Chegam alegrinhas, tristonhas ou alvoroçadas, mas sem dramas nem mistérios. O novo, ao contrário, tem a solenidade do desconhecido, e chega no compasso das grandes aventuras e dos chamados mais misteriosos.

Ao longo dos tempos, o novo foi a floresta, o abismo, imensos oceanos azuis, abóbadas celestiais. Mais recentemente, descobrimos que ele habitava em nós. Do outro lado do espelho um universo de estranhezas desconhecidas nos olhava e nos convidava a entrar. O Admirável Mundo Novo, de que falava o escritor Aldous Huxley nos anos 60, nós começamos a construir todos os dias, dentro de nós.

Ah, o novo e seu inevitável parceiro: o começo. Quer coisa mais difícil do que começar algo novo? Dar a partida no motor do futuro, assim sem mapa, sem rumo, sem garantias. Arrancar a gravata, soltar as amarras, levantar âncoras, remover os entulhos e entulhos de velharias e partir. Próxima parada? Quem sabe? Onde o destino mandar talvez, que o novo não obedece a ninguém.

Não senhor, temos muito medo do novo, de seu compromisso com a liberdade e de seu comando para a mudança. Confiamos que o jeito de sempre, se não nos traz felicidade, pelo menos nos deixa entorpecidos de cotidiano e.assim vamos ficando. Ano que vem paro de fumar, ano que vem mudo de emprego, ano que vem emagreço, ano que vem saio desta relação que me faz sofrer, ano que vem.

E se este ano, só para variar, a gente desejasse de coração um Ano Novo bem novo. Faremos assim todos juntos, à meia-noite, vamos olhar para algum ponto bem longe à nossa frente - o mar, o mato ou a casa do vizinho - e desejar que o ano que se aproxima nos traga nossa cota de novo e prometer, obedientes, que vamos recebê-lo com coragem, que seremos, afinal, merecedores deste presente. Vamos então fechar os olhos. E neste instante, bom, ninguém sabe com certeza, mas uns hão de sentir um arrepio na espinha, alguns dirão depois que foram abraçados por uma onda de 'calor', outros virarão as costas dizendo, 'ora, que bobagem'! Mas pode ser que desta vez, os anjos digam sim e a gente consiga montar na garupa das mudanças que vão nos levar aos nossos sonhos.

Minha amiga Ceres mandou para os amigos a imagem que inicia este post. Neste próximo ano, espero ver você na estação da alma de onde partem os pássaros a caminho do desconhecido.



*            *            *

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

DRUMMOND - Como um presente

 
Como um presente
Carlos Drummond de Andrade
 
Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.

Escusa de levar-te esta gravata.
Já não tens roupa, nem precisas.
Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.

Não mais te peço a mão enrugada
para beijar-lhe as veias grossas.
Nem procuro nos olhos estriados
aquela interrogação: está chegando?

Em verdade paraste de fazer anos.
Não envelheces. O último retrato
vale para sempre. És um homem cansado
mas fiel: carteira de identidade.

Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o desconforto deste chão. Mas sempre amaste
o duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em mim que te visito. Em ti, a calma.

Como compraste calma? Não a tinhas.
Como aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora
de tua bota, um grito de teus lábios,
sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,
tua pressa, teu estrondo… encadeados.

Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste.
No casarão azul
vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo
noturno, teu pigarro, e sinto os bois
e sinto as tropas que levavas pela Mata
e sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmara
e passos na escada, que sobem,
e soldados que sobem, vermelhos,
e armas que te vão talvez matar,
mas que não ousam.
Vejo, no rio, uma canoa,
nela três homens.
“Inda que mal pergunte, o Coronel sabe nadar?
Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,
e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar.”
Tua mão saca do bolso uma coisa. Tua voz vai à frente.
“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”
Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno.
Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.
Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,
da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.
És bem frágil e a escola te engole.
Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.
Para começar: uma dúzia de bolos!
Quem disse?
Entraste pela porta, saíste pela janela
- conheceu, seu mestre? – quem quiser que conte outra,
mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,
a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,
o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e clara ciência,
mas não descubro teu segredo.

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A identidade do sangue age como cadeia,
fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,
onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.
Por que ficar neste município, neste sobrenome?
Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.
Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,
passando por baixo de seus problemas e lavouras, de eterna agência do correio,
e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.
Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te, mas curioso:
já não estás, e te sinto,
não me falas, e te converso.
E tanto nos entendemos, no escuro,
no pó, no sono.

E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,
de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho,
expulsar assombrações apenas com teu passo duro,
o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as fazendas,
o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas, caixeiros, fiscais do governo, beatas,
[padres, médicos, mendigos, loucos mansos, loucos agitados, animais, coisas:
então não era segredo?

E tu que me dizes tanto
disso não me contas nada.

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.
Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
Já não precisas guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.
 
*        *        *

VINÍCIUS DE MORAES - Para viver um grande amor

 
Para Viver Um Grande Amor
Vinicius de Moraes


Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.


*            *            *

Texto extraído do livro "Para Viver Um Grande Amor", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1984, pág. 130.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

VINICIUS, TOQUINHO e ADRIANA CALCANHOTO - O Poeta Aprendiz


Post de 'A louca da biblioteca', no Facebook





O Poeta Aprendiz
Vinicius de Moraes

Ele era um menino 
Valente e caprino 
Um pequeno infante 
Sadio e grimpante 
Anos tinha dez 
E asas nos pés 
Com chumbo e bodoque 
Era plic e ploc 
O olhar verde gaio 
Parecia um raio 
Para tangerina 
Pião ou menina 
Seu corpo moreno 
Vivia correndo 
Pulava no escuro 
Não importa que muro 
Saltava de anjo 
Melhor que marmanjo 
E dava o mergulho 
Sem fazer barulho 
Em bola de meia 
Jogando de meia-direita ou de ponta 
Passava da conta 
De tanto driblar

Amava era amar
Amava Leonor
Menina de cor
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Com beijos e rimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita
Por isso sofria
De melancolia
Sonhando o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser

*        *        *

FERNANDO PESSOA - "Em meus momentos escuros..."

Fresta
Fernando Pessoa

Em meus momentos escuros
em que em mim não há ninguém,
e tudo é névoas e muros
quanto a vida dá ou tem;
se, um instante, erguendo a fronte
de onde em mim sou aterrado,
vejo o longínquo horizonte
cheio de sol posto ou nado;
revivo, existo, conheço,
e, ainda que seja ilusão
o exterior em que me esqueço;
nada mais quero nem peço.

Entrego-lhe o coração.

*            *            *

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

RUBEM ALVES - "Ostra feliz não faz pérola"



"A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si mesma:
'Preciso envolver essa areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas…'
Ostras felizes não fazem pérolas… 
Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor, Não é preciso que seja uma dor doída…Por vezes a dor aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade. 
Este livro está cheio de areias pontudas que me machucaram. 
Para me livrar da dor, escrevi"

(Texto na contracapa do livro “Ostra feliz não faz pérola”)



Um dia Rubem estava ouvindo uma sonata para violino e piano e se emocionou. Perguntou a si mesmo: Porque é que você está chorando?. A resposta veio fácil: choro por causa da beleza. 
Mas o que é a experiencia da beleza? 
Sem uma resposta pronta lembrou de algo que aprendeu com Platão.

"Platão, quando não conseguia dar respostas racionais, inventava mitos. 
Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as coisas belas do universo. 
Esta experiência é tão forte que todas as infinitas formas de beleza do universo ficam eternamente gravadas em nós. Ao nascer, esquecemo-nos delas. Mas não as perdemos. 
A beleza fica em nós adormecida como um feto. 
Assim, todos nós estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós mesmos e experimentamos a alegria."


*            *            *

MAYSA - Un jour tu verras




Un Jour Tu Verras
Composição: Raymond Berthiaume
Interpretação: Maysa

Un jour tu verras
On se rencontrera
Quelque part, n'importe où
Guidés par le hasard
Nous nous regarderons
Et nous nous sourirons
Et la main dans la main
Par les rues nous irons

Le temps passe si vite
Le soir cachera bien
Nos coeurs, ces deux voleurs
Qui gardent leurs bonheurs
Et nous arriverons
Sur une place grise
Où les pavés seront doux
A nos âmes grises

Il y aura un bal
Très pauvre et très banal
Sous un ciel plein de brume
Et de mélancolie
Un aveugle jouera
De l'orgue de barbarie
Cet air pour nous sera
Le plus beau, le plus joli

Puis je t'inviterai
Ta taille je prendrai
Nous danserons tranquille
Loin des gens de la ville
Nous danserons l'amour
Les yeux au fond des yeux
Vers une nuit profonde
Vers une fin du monde

Un jour tu verras
On se rencontrera
Quelque part, n'importe où
Guidés par le hasard
Nous nous regarderons
Et nous nous sourirons
Et la main dans la main
Par les rues nous irons

*        *        *

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

BANDEIRA e DRUMMOND para LISPECTOR


  
De:     Manuel Bandeira 
Para: Clarice Lispector

Rio, 13 de agosto de 1946 

Clarice querida,

Muito obrigado pelo seu cartão-postal de Berna. 
Espero que vocês se tenham dado bem aí: que não lhes aconteça o mesmo que ao Ribeiro Couto, de quem acabo de receber uma carta melancólica – tão melancólica e desanimada que me espantou. 
Parece que o poeta anda abafado com as sombras do Jura. Até voltou a poetar no estilo adolescente do Jardim das confidências.
Não me venha denegrir aquela viagem de ônibus para Copacabana. Você falou de si mesma e de literatura, mas fui eu que provoquei, porque me interessava conhecer o mecanismo de suas criações. 
Seu nome aparece freqüentemente nas críticas e crônicas literárias, citado a propósito de outros autores.
O mês passado tive que funcionar na Academia para fazer o discurso de saudação ao Peregrino Júnior. O imprudente falou durante uma hora e quarenta minutos, entregando-me um auditório sovado e sonolento. 
Mas o meu discurso foi uma brincadeira do princípio ao fim. 
A propósito dos trabalhos de biotipologia do Peregrino lancei em plena Academia a Nova – Gnomonia com seus parás, mozarlescos, quernianos, onésimos e dantas. 
Zombei do fardão e do lema “Ad immortalitatem”, com tanto jeito que fui depois sorridentemente felicitado até pelos acadêmicos mais enfatuados da glória acadêmica.
Escreva-me Clarice. Escreva carta. Um cartãozinho seu já é uma delícia. 
Mas eu quero a delícia maior das cartas. E fale de você. Fale muito de você. Nunca tenha medo de falar de você para mim.
Receba um abraço e as saudades de

Manuel


***

Clarice Lispector
Óleo de Giorgio de Chirico - Roma


Visão de Clarice Lispector
Carlos Drummond de Andrade


Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.

*            *           *



sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

MARINA SILVA - Curvas do Tempo



07/12/2012
Curvas do tempo
Marina Silva


Quero juntar minha voz às milhões de outras que entoam uma canção de despedida para Oscar Niemeyer. 

Com ele aprendemos a ser modernos sem deixarmos de ser antigos; agora, aprenderemos a ser eternos. 


Arquiteto de novos mundos possíveis e improváveis, um dos autores do fantástico século 20, Niemeyer acentuou as formas femininas do planeta Terra. 

Seu coração é o círculo, sua linguagem é a curva.

O homem atravessa o tempo e é por ele atravessado, vive seus conflitos e contradições. 
Entre as guerras, produz uma paz provisória e tensa. 
Assume posição, afirma seu comunismo simples, conservador, soviético. 
Transmite às gerações que o seguem uma mensagem mais que política, uma ética humanista de solidariedade entre pessoas e povos.

O arquiteto, porém, é artista sofisticado. 
Vai aos limites da matéria mais dura, cimento e aço, e desenha sinuosidades. 
Quer marcar a natureza, torná-la moldura de seus monumentos, dela isolar-se numa caixa racional, mas a arte e o tempo o conduzem ao seu destino de suavidade e harmonia. 

A arquitetura é grande, a vida é maior.

A vida de Niemeyer é exemplarmente grande. Vida de um homem idealista, amante de seu país, artista admirador da variada cultura dos povos, cidadão de todos os tempos. 

Vida compartilhada com todos, na intimidade de outras grandes vidas: Drummond, Prestes, Darcy, Juscelino, Tom...

Niemeyer nos faz pensar no Brasil e perguntar o que temos para o mundo. 

A renovação do sonho humano, um paraíso na Terra, a genialidade mestiça, a igualdade nas diferenças, um novo convívio com a natureza, novas conjugações do verbo amar? 
Já demos à luz uma arquitetura universal, que expressa esses ideais. 
O mundo é outro depois do Brasil e de Niemeyer.

Para o futuro, necessitamos de ideias simples e monumentais que nos façam superar a mesquinhez da corrupção, da política rasteira, da violência. 

Um ideal que não nos deixe esquecer nossa grandeza. 

O Brasil tem muita genialidade oculta, aguardando a chance de dar-se ao mundo. 

O que mostramos até hoje foi possível quando o país deixou-se levar por um espírito generoso, que produz as riquezas da civilização, mas sabe que a vida não se reduz ao acúmulo de coisas.
As coisas podem ser expressão desse espírito. 

Nossa arte canta o valor da natureza, da montanha, do mar, da floresta. 

Nossa cultura tem nas comunidades simples, de campos e cidades, sua fonte de inspiração e força. 

Se o século 20 pôs a obra humana na tela e a natureza como moldura, porque não dirigimos as curvas persistentes de Niemeyer para além da rigidez do aço e do cimento, na volta ao caminho natural do cuidado com a vida?


Que em nós, num novo mundo possível, Niemeyer seja ainda mais vivo.
Marina Silva
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente no governo Lula e candidata ao Planalto em 2010. 

L.F.VERÍSSIMO - CÊGÓSDIVIN?



Degustação de vinho em Minas Gerais
Luís Fernando Veríssimo


- Hummm...

- Hummm...

- Eca!!!

- Eca?! Quem falou Eca?

- Fui eu, sô! O senhor num acha que esse vinho tá com um gostim estranho?

- Que é isso?! Ele lembra frutas secas adamascadas, com leve toque de
trufas brancas, revelando um retrogosto persistente, mas sutil, que enevoa as papilas de lembranças tropicais atávicas...

- Putaquepariu sô! E o senhor cheirou isso tudo aí no copo ?!

- Claro! Sou um enólogo laureado. E o senhor?

- Cebesta, eu não! Sou isso não senhor !! Mas que isso aqui tá me cheirando iguarzinho à minha egüinha Gertrudes depois da chuva, lá isso tá!

- Ai, que heresia! Valei-me São Mouton Rothschild!

- O senhor me desculpe, mas eu vi o senhor sacudindo o copo e enfiando o narigão lá dentro. O senhor tá gripado, é ?

- Não, meu amigo, são técnicas internacionais de degustação entende? Caso queira, posso ser seu mestre na arte enológica. O senhor aprenderá como  segurar a garrafa, sacar a rolha, escolher a taça, deitar o vinho e, então...

- E intão moiá o biscoito, né? Tô fora, seu frutinha adamascada!

- O querido não entendeu. O que eu quero é introduzi-lo no...

- Mais num vai introduzi mais é nunca! Desafasta, coisa ruim!

- Calma! O senhor precisa conhecer nosso grupo de degustação. Hoje, por exemplo, vamos apreciar uns franceses jovens...

- Hã-hã... Eu sabia que tinha francês nessa história lazarenta...

- O senhor poderia começar com um Beaujolais!

- Num beijo lê, nem beijo lá! Eu sô é home, safardana!

- Então, que tal um mais encorpado?

- Óia lá, ocê tá brincano com fogo...

- Ou, então, um suave fresco!

- Seu moço, tome tento, que a minha mão já tá coçando de vontade de meter um tapa na sua cara desavergonhada!

- Já sei: iniciemos com um brut, curto e duro. O senhor vai gostar!

- Num vô não, fio de um cão! Mas num vô, messs! Num é questão de tamanho e firmeza, não, seu fióte de brabuleta. Meu negócio é outro, qui inté rima  com brabuleta...

- Então, vejamos, que tal um aveludado e escorregadio?

- E que tal a mão no pédovido, hein, seu fióte de Belzebu?

- Pra que esse nervosismo todo? Já sei, o senhor prefere um duro e macio, acertei?

- Eu é qui vô acertá um tapão nas suas venta, cão sarnento! Engulidô de rôia!

- Mole e redondo, com bouquet forte?

- Agora, ocê pulô o corguim! E é um... e é dois... e é treis! Num corre, não, fiodaputa! Vorta aqui que eu te arrebento, sua bicha fedorenta!... 


*            *            *

OSCAR NIEMEYER (2)






quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

OSCAR NIEMEYER


Oscar Niemeyer
Rio de Janeiro, 15/12/1907 - Rio de Janeiro, 05/12/2012 

Poema das Curvas
Oscar Niemeyer

Não é o ângulo reto que me atrai,
nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem
O que me atrai é a curva livre e sensual,
a curva que encontro nas montanhas do meu país,
no curso sinuoso dos seus rios,
nas ondas do mar,
no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
o universo curvo de Einstein.

**



*            *            * 


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

DRUMMOND - A flor e seu nome


A flor e seu nome
Carlos Drummond de Andrade

Mas o que impressiona mesmo no amor-perfeito é o nome. Que responsabilidade, meu filho!

Há por aí uma planta chamada de amor-de-um-dia, que não carece muito esforço para ser e acontecer, como doidivanas.

Outra atende por amor-das-onze-horas e presume-se como sua vida é folgada.

Há também amor-de-vaqueiro, amor-de-hortelão, amor-de-moça, amor-de-negro... muitos amores vegetais que desempenham função limitada.

Mas este aqui não tem área específica, não se dirige a grupo, ocasião, profissão. É absoluto, resume um ideal que vai além do poder das flores e dos seres humanos.

Que sentirá o amor-perfeito, sabendo-se assim nomeado?

Que tristeza lhe transfixará o veludo das pétalas , ao sentir que os homens que tal apelação lhe dera não são absolutamente perfeitos em seus amores?

Que aquele substantivo, casado a este adjetivo, sugere mais aspiração infrutífera da alma do que modelo identificável no cotidiano?

A tais perguntas o sóbrio amor-perfeito não responde.


O outono tampouco.

Talvez seja melhor não haver resposta.


*            *            *

Se eu gosto de poesia? Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor. Acho que a poesia está contida nisso tudo. (Carlos Drummond de Andrade)


domingo, 2 de dezembro de 2012

ELIZABETH BISHOP - A arte de perder



A arte de perder
Elizabeth Bishop


A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério. ”

Tradução de Paulo Henriques Britto



Original:


One Art
Elizabeth Bishop


The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.


*            *            *

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CARLOS VOGT - A Bela e a Fera

A Bela e a Fera
Carlos Vogt  
Linguista e poeta, nasceu em Sales Oliveira (SP) no dia 6 de fevereiro de 1943.


Quando o pobre pai - que era rico e ficou pobre -
arrancou a rosa do jardim daquele misterioso palácio,
rosa vermelha encarnada para a filha mais nova e querida,
a gota de sangue que há em cada poema
tingiu-lhe a mão, os espinhos que espetavam a mão,
e a mão que agarrada aos espinhos
transformava aos poucos seu braço-membro em braço-rosa.

Nesse instante, sem que soubesse de onde, nem como, nem por quê,
surgiu-lhe no peito a dor habitual dos grandes abandonos:
tinha diante de si a rosa de sangue transtornada em fera,
e a fera em solidão.
Era uma fera terrível, lamentosa de queixumes quase humanos,
que, às vezes, numa voz de bicho,
outras, numa voz de homem,
prometia promessas de quem tem a propriedade de ser bicho-homem,
e ameaçava castigos só imagináveis na imaginação de um homem-bicho.

O monstro-bicho, o bicho-homem, o homem-monstro e o monstro-fixo
trouxeram para a fera a filha mais nova e querida que era Bela;
as irmãs também bonitas, mas ciumentas e feias só pelos ciúmes,
gostaram, como muitas outras de outras histórias de irmãs novas e velhas,
que a delicada menina preferida dos zelos e dos cuidados de seu velho pai,
- antigo mercador falido por ganância no antigo deserto das sombras imperiais -,
gostaram, pois, como dizia, que a doce, terna e meiga humanidade da criança
fosse entregue à sanha e ao apetite - assim pensavam -
da fera bruta, da feroz brutalidade do ódio cego da estranha criatura.
Contudo, a menina que rapidamente na viagem se tornava em moça,
e a moça que empurrava o corpo para ser mulher
logo aprenderam que a ferocidade do monstro e a monstruosidade da fera
eram muito menos do que algo em si - uma essência ou uma substância -,
e muito mais o termo de uma relação, um ser não-ser, uma carência,
alguém - se dizê-lo não for contraditório -
feito não da monstruosidade da fera que de fato mostra,
mas da triste humanidade ausente do homem que não era.

A menina-moça, à força de querer-lhe a natureza fazê-la outra,
primeiro veio-lhe o reconhecimento, depois, a compreensão
de que o destino a pusera não só no fluxo de sua própria vida,
mas na vida dos símbolos que sempre andam solidários na alheia solidão.

No dia em que sentiu vontade de voltar à sua velha casa,
deixou-lhe a fera consentida em dramas de grandes perdas e sofrimentos;
as irmãs invejosas também sofreram o desalento de ver a bela irmã mais nova
viva, livre - assim pensavam, sem perceber-lhe a alma cheia de tormentos.
O pai envelhecido mais que antes pediu-lhe que ficasse,
mas ela decidida ouviu ao longe a voz com que de hábito a fera a chama,
a chama que da vida, da triste vida ambígua, da fera se acabava.
Abalada em sustos, por muito pouco não ficou em casa, cheia de saudades da mãe,
que não conhecera;
se ali ficasse aninhada nos segredos do pai e no ódio das outras filhas,
suas irmãs,
dizem que seu destino seria sempre ficar entre:
não ser menina, ser quase moça, não ser mulher.

Porém, decidida e corajosa, como dizia, e como de fato era feito seu caráter,
espantou-se do torpor e célere correu por serras, fantasias, vales e desterros:
foi sendo atriz da própria personagem,
fugiu do instante oco em que o acerto se confunde em erros,
fez-se narrador de seu próprio texto.

Quando chegou à terra em que seu pai quase sem querer desatou-lhe o nó da vida,
ao apanhar a rosa para dedicá-la à delicada filha dona de seus zelos,
viu, num canto do jardim, junto aos roseirais, que a fera, exaurida em suspiros,
soluçava fundo:
era uma figura imponente como um fero monte de plagas tormentosas,
era grotesco o choro deste homem-monstro sucumbindo em rosas.
Entre a repulsa, a piedade, o horror, o amor e o medo,
beijou-lhe a fronte que desfalecia em suores frios,
o que foi bastante para o desencanto:
tinha diante de si um belo príncipe vulgar qualquer.

Assim, acabou-se a história:
do intervalo de ser quase uma e não ser nunca outra,
a menina-moça, pela fera dúbia, pelo pai querido, pela mãe ausente, pelas irmãs cruéis,
transformou-se em rosa, rosa de sangue, que se fez mulher.


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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

NELSON MORAES - Um advérbio na madrugada



Nelson Moraes - do interessantíssimo blog 'Ao mirante, Nelson".

(Publiquei esse continho em 2004 e, sei lá, achei que era o caso de um replay)


UM ADVÉRBIO NA MADRUGADA

Vanderley apresentava um programa de entrevistas "culturais" no horário da madrugada, que dava traço de audiência – mais uma consideração da emissora à sua condição de repórter social decadente. Vanderley mantinha...também o hábito de utilizar "literalmente" fora do contexto. "Estou literalmente cansado". "O cabelo de nossa entrevistada está literalmente mais curto". Isso inclusive sempre foi motivo de secreta chacota por parte da equipe do programa, dos técnicos à produção.

Ontem à noite, ao entrevistar um professor de português aposentado, Vanderley teve – na conversa em off que antecedia a entrevista – a atenção chamada pelo intelectual, que em voz baixa lhe corrigiu o uso do advérbio: "Significa ao pé da letra. Não é sinônimo de 'realmente'. Serve para tirar de algum termo sua condição de metáfora. Se a palavra tem duplo sentido, o 'literalmente' vem demonstrar que o termo está sendo usado em seu conceito original, denotativo." "Sei, sei", disse Vanderley entre lacônico e constrangido, passando os dedos pelos cabelos avermelhados de henna.

A entrevista seguinte foi com um cientista maluco que tinha inventado um eletrodo a partir de água mineral. Uma faísca da engenhoca escapuliu, pegou na cortina do cenário, alastrou-se até o papel manteiga que cobria um dos refletores e que já estava superaquecido; o pequeno foco não pôde ser controlado e logo o estúdio estava em chamas. A porta por algum motivo não quis destrancar e o pânico irradiou-se tão rápido quanto as labaredas. Sem lembrar-se do número dos bombeiros, Vanderley só teve tempo de ligar de seu celular para a casa do produtor do programa – e, em meio ao caos, um instante de autorrealização: utilizar corretamente o advérbio. A bateria do celular já acabando e ele só pôde gritar: "O programa está literalmente pegando fogo!"

A ligação caiu e o produtor voltou a dormir, satisfeito, imaginando que a audiência deveria estar reagindo.

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Post da amiga Claudia Lyra no Facebook

SAUDADE DE MINAS

Trem mineiro
André Felipe Souza Cecílio (*)

Um mineiro só é autêntico depois que viaja de trem. Mesmo que seja uma viagenzinha de Monlevade a Fabriciano.
O trem é uma parte essencial da personalidade de toda pessoa que nasce nos domínios de Minas. Por isso, o mineiro que nunca viajou puxado por uma locomotiva, seja das antigas Marias-Fumaça ou das modernas e tecnológicas máquinas atuais, não é e nunca será um mineiro completo até que sinta o leve sacolejar de um vagão em movimento.
O mineiro que nunca se deixou levar pelos trilhos convive sempre com a perpétua agonia de quem tem a alma incompleta.

"Maria-Fumaça não canta mais..."

É que o trem carrega em si mais do que apenas passageiros.
Em cada vagão, em cada poltrona, tem um pequeno pedaço da história de um povo que nasceu, cresceu e amadureceu convivendo com as idas e vindas da majestosa serpente de ferro por entre as cidadezinhas que se formavam aqui e ali.
E, a cada manhã, a locomotiva foi se acostumando a receber e desejar um simpático “bom dia!” em toda estação.
E se acostumou, também, a ver gerações de crianças que corriam aos risos e gargalhadas ao seu lado e que, depois, se tornavam jovens a embarcar-lhe em busca de estudos na capital até o dia em que faziam o caminho de volta, já doutores e não tornavam a aparecer até chegada a vez de embarcar os seus filhos, que, há pouco, eram as novas crianças correndo, para completar e reiniciar o ciclo.
A vida mineira se vê repetindo e recomeçando em cada estação.
Por isso, só um mineiro é capaz de compreender a mistura de tristeza e alegria cantada pelo apito de um trem.

A vida passa como um trem vagaroso.

De certa forma, entrar em um trem – não importa em que lugar do mundo – é, também, fazer uma breve viagem por Minas.
A confortável monotonia e o passar lento e distante das paisagens do outro lado da janela remetem à própria vida mineira, que passeia igualmente vagarosa pela rua que leva à praça da matriz de uma cidadezinha qualquer; os sorrisos que se abrem nas chegadas às plataformas carregam o mesmo afeto que se encontra nas cozinhas, enquanto se toma um cafezinho à espera da fornada de pão de queijo caseiro; até o “só-não-diga-que-eu-te-disse” feito pelas rodas sobre o trilho também é o mesmo do que aquele que permeia as conversas das comadres às janelas e aos portões.
É como se cada trecho de todas as estradas de ferro se passasse em território mineiro.

E todo mineiro, por menos mineiro que se sinta, também carrega todo um trem em si.
Assim como um trem, o mineiro entende que não consegue alçar vôos como os aviões, contudo, sabe-se grande como nenhuma aeronave – apesar de nem sempre saber ao certo quanto.
Afinal, é a mesma suntuosidade simplória de uma locomotiva em movimento que sustenta o orgulho de um filho de Minas.
E, tal qual um bom trem, cada mineiro carrega os seus próprios vagões com suas respectivas cargas e passageiros sem dividi-los ou abandonar um ou outro mais de trás.
Um mineiro jamais abandona um vagão, não importa seu tamanho ou seu peso, pois é o mesmo motor que puxa os vagões de um trem que impulsiona o coração de um mineiro (entretanto, talvez seja mais fácil parar um trem inteiro do que um único mineiro determinado).

O trem é a metáfora do mineiro, e vice-versa

Mas, assim como o mineiro não se completa sem o trem, uma viagem de trem só é autêntica se for em solo mineiro.
Sobre os trilhos de Minas, fica evidente a cumplicidade entre as existências do trem e do mineiro, de Minas e da viagem.
A equivalência é tamanha que fica difícil decidir se o trem é a parte do todo que é Minas ou se é o contrário. Talvez o trem seja a metáfora do mineiro, e vice-versa.
De qualquer forma, essa é uma percepção à qual se deve chegar sozinho, viajando pelo interior da alma mineira – caminho pelo qual, aliás, só se vagueia de trem. Pois é apenas ao passar entre matas, rios, morros e serras sobre uma estrada de ferro que se têm consciência do universo que é Minas.
Só nessa hora é que se sente a consistência da alma mineira, que é a consistência do ferro sobre o qual corre o trem, do ferro suado pelas montanhas e recolhido pelos vagões; do ferro que alimentou tantos sonhos de ouro, mas que tornou possível um outro sonho que, hoje, chamamos realidade.
Esse ferro é o ferro que, acima de tudo, corre nas veias de todo mineiro, mas que só se pode sentir no sacolejar de um trem. E é tão poderosa a força desse ferro que, ao se acomodar em um vagão, até quem nasceu em outros estados ou países se sente um pouco mineiro e suspira, sem querer, “Oh, Minas Gerais!”.

“O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão”     

(Carlos Drummond de Andrade)

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(*) André Felipe Souza Cecílio é poeta, escritor, músico, compositor e ator mineiro de 20 anos. Já caminha para o segundo livro e carrega, no currículo, a classificação do poema "Versete Rosa" entre os dez melhores poemas do Concurso Guimarães Rosa 2011.