domingo, 17 de setembro de 2017

Pequenos atos de amor... - Eberth Vêncio

Pequenos atos de amor são fundamentais para tornar o mundo um lugar melhor para se viver

Eberth Vêncio -  em 'Revista Bula'


Qualquer coisa serve. Qualquer coisa de mais simples já serve. 
Qualquer pequeno ato impagável, de alguém por outro alguém, como pagar um almoço para quem tem fome, já servirá. 
Qualquer mínima atitude que releve a tradicional má fama do ser humano terá valia. 
Recaídas de ternura; como eu, por exemplo, aqui e agora. 
Apagar um foco de incêndio. 
Acender o brilho no olhar de um ser desencantado. 
Fazer palhaçada numa enfermaria. 
Demover um suicida. 
Ouvir. Ouvir. Ouvir e mais ouvir. 
Transmutar-se em árvore, ser todo ouvidos, ter a devida paciência para florescer e escutar a dramática história de vida de quem fazia planos para se matar em breve. 
Abreviar o sofrimento de um ser vivo em estado terminal. Concorrer com Deus mesmo querendo não ser Deus. Aliviar o sofrimento de alguém com o simples toque das mãos. 
Reduzir a velocidade nos atos cotidianos. 
Ir e vir. Sim. A garantia constitucional de ir e vir, porém, com mais calma, em ritmo baiano, se é que me entendem. 
Doar xícaras de sangue. 
Gastar o próprio tempo em prol do crescimento interior de terceiros. 
Tratar bem um desconhecido, como se vocês já se conhecessem de vidas pregressas. 
Rezar com a avó, no seu leito de morte, mesmo sendo um ateu. 
Ajudar um animal a parir. 
Ajudar uma mulher a parir. 
Trocar as roupas de um defunto, deixá-lo com a aparência impecável para o último adeus. 
Consolar um desafeto que perdeu a mãe. 
Adotar uma criança. 
Adotar um cachorro. 
Adotar um padrão de vida mais simples. 
Questionar as premissas existenciais desse mundo-cão. 
Servir na Cruz Vermelha. Atuar pelo Green Peace. 
Vestir azul e declamar poemas de Paulo Leminski na ala dos loucos varridos. 
Visitar os velhos de um asilo. 
Resgatar refugiados no mar do exílio. Pescar homens. 
Derribar muros. Cancelar cancelas. 
Abarcar, abarcar, abarcar. Arreganhar os braços e mais abarcar, abarcar, abarcar. 
Oferecer um emprego. 
Ceder um dos quartos. 
Vender um dos carros. 
Ir a pé ao trabalho. 
Barbear mendigos. Drenar furúnculos. 
Ensinar uma orquídea a brotar. 
Botar o bloco na rua. Organizar passeata. 
Desarrumar o quarto, partir. 
Ensandecer com flores o paladar dos colibris. 
Ler para crianças. Alfabetizar homens crescidos, de graça. 
Engrossar o coro dos descontentes que defendem a todo custo a preservação do meio ambiente. 
Ser meio diferente, circular por aí, completamente na sua, livre e fora do quadrado. 
Gastar todo amor que ainda resta em prol de quem está do seu lado.


*            *            *

domingo, 10 de setembro de 2017

Marina Colasanti - 'Lá fora, a noite'

Lá fora, a noite
Marina Colasanti

Arte:  P. Mitkov

É quando a família dorme
– inertes as mãos nas dobras dos lençóis
pesados os corpos sob a viva mortalha –
que a mulher se exerce.
Na casa quieta
onde ninguém lhe cobra
ninguém lhe exige
ninguém lhe pede
nada
caminha enfim rainha
nos cômodos vazios
demora-se no escuro.
E descalços os pés
aberta a blusa
pode entregar-se
plácida
ao silêncio.

*        *        *

No livro “Rota de colisão”. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.

sábado, 9 de setembro de 2017

Aos que vierem... - Bertolt Brecht

Aos que vierem depois de nós
Bertolt Brecht (Tradução Manuel Bandeira)

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I
Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
(...)

III
(...)
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

*            *            *

Rubem Braga - 'Homem ao mar'

Homem ao mar
Rubem Braga

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De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.

Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.

Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem. 
É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".

Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.

Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.
*            *            *

- Rubem Braga, in "A Cidade e a Roça", 1953.