domingo, 30 de novembro de 2014

OLAVO BILAC - Defesa


Defesa
Olavo Bilac

Cada alma é um mundo à parte em cada peito...
Nem se conhecem, no auge do transporte,
os jungidos do vínculo mais forte,
almas e corpos num casal perfeito:

Dormindo no calor do mesmo leito,
votando os corações à mesma sorte,
consigo levam à velhice e à morte
um recato de orgulho e de respeito...

Ficam, por toda a vida, as duas vidas
na mais profunda comunhão estranhas,
no mais completo amor desconhecidas.

E os dois seres, sentindo-se tão perto,
até num beijo, são duas montanhas
separadas por léguas de deserto.

*        *        *

LUCIANA SADDI - Lembranças

Arte: Loui Jover

Lembranças
Luciana Saddi (*) - 09/04/2014 

O Poeta e humanista romano, Sêneca, que viveu no primeiro século, dizia que o recurso que temos para diminuir os efeitos das perdas é guardar a lembrança das coisas perdidas e, por esse meio, não deixar desvanecer o proveito que tivemos. 
Vai-se a posse, fica para sempre a vantagem de ter possuído. 
Segundo ele o destino nos retira a coisa, mas deixa seu fruto. 
As reclamações e queixas sempre nos fazem perder a boa lembrança, ou seja, a vantagem de ter vivido algo bom.

Segundo Sêneca, a lembrança fixa a experiência, diminui o efeito da perda sobre nós. Mas a lembrança aumenta a dor da perda quando se torna lamento pelo objeto perdido, adverte ele.

O que são as lembranças? Truques para superar a finitude. 
O que se foi se faz presente e perdido ao mesmo tempo. 
Lembrança é uma estranha mistura do que perdemos com o que ganhamos ao viver.  Marca da passagem do tempo, do passado irreversível, da falta e testemunho da nossa existência.

Transformar a dor da perda em lembrança é uma arte. 
A escrita, a literatura e as artes podem ser entendidas como produto e expressão da luta contra o esquecimento e a morte,  transformam lembranças em experiência compartilhada para que não se percam no tempo como lágrimas na chuva. 

A recordação estende a corda da vida além dela mesma.

*            *            *

(*) Luciana Saddi atua como psicanalista em São Paulo e é mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. 
Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na Revista da Folha. 
Integra a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e é autora de artigos científicos em revistas especializadas de Psicanálise. 
Tem dois livros publicados como autora de textos de ficção: “O Amor Leva a um Liquidificador”, editora Casa do Psicólogo, e o romance “Perpétuo-Socorro”, editora Jaboticaba.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sobre Narcisismo

Trechos de um artigo da Revista Cult, novembro 2014 


Imagem morta de uma coisa viva

A expressão “imagem viva”, de Barthes, refere-se à pulsação contida na foto, à sua possibilidade de ferir o olhar e convocar o outro.

Renato Tardivo – Revista Cult, novembro 2014


Neste ano celebra-se o centenário da publicação de um dos textos mais importantes escritos por Sigmund Freud, o criador da psicanálise. 
Trata-se de “Introdução ao Narcisismo”, originalmente publicado em 1914; para muitos psicanalistas, o texto mais difícil de Freud. 
De fato, suas proposições foram cruciais para o desenvolvimento da teoria psicanalítica e ainda hoje nos ajudam a pensar o contexto em que vivemos.

Como sabemos, o termo narcisismo provém da mitologia grega. 
Narciso só teria vida longa se jamais olhasse para a própria imagem, tão belo ele era. 
Ocorre que, ao se ver refletido nas águas límpidas de uma fonte, ele se apaixona. 
Em busca desse amor impossível, Narciso funde-se consigo mesmo e afoga-se na própria imagem.
(...)

Recentemente, fotografias que se tornaram uma febre nas redes sociais trazem elementos para pensarmos a hipervalorização da própria imagem: as selfies (substantivo originado de self, “eu” em inglês). 
Nesses retratos, em que a pessoa se autofotografa, o investimento na própria imagem chega a ser didático: o que importa é “sair bem na foto”. Se o cenário for um ponto turístico cobiçado, um restaurante sofisticado, ou um belo dia de sol, tanto melhor.

Para encaminhar a discussão, não nos esqueçamos de que as selfies são fotografias. 
Roland Barthes escreveu em “A câmara clara” (1980) que a fotografia provoca um sentimento doloroso e enigmático justamente porque revela o que já não é: “imagem viva de uma coisa morta”, um “isso foi”. 
O instante fugidio, eternizado no retrato enquanto algo que já não é, pode provocar no espectador as mais diversas reações. 
Contudo, talvez se passe o oposto com a selfie: imagem morta de uma coisa viva. Explico.

A expressão “imagem viva”, de Barthes, refere-se à pulsação contida na foto, à sua possibilidade de ferir o olhar e convocar o outro. Mas sendo a selfie um retrato voltado à própria imagem e, portanto, fechado em si mesmo, ela não convoca o outro: ela busca se autoafirmar. 
Não importa quem irá curti-la nas redes sociais, senão quantos irão curti-la, e, dessa perspectiva, não há pulsação, não há abertura à alteridade. 
Em vez disso, tal qual Narciso, essas imagens tendem a sufocar em si mesmas, configurando-se como imagens mortas.

Mas por que imagem morta de uma coisa viva? Voltemos a Barthes. 
Para o autor, a foto é “imagem viva de uma coisa morta” porque, como vimos, há no retrato algo que já passou: um “isso foi”. 

No caso das selfies, por outro lado, não podemos falar em algo morto, algo que já viveu, pelo simples fato de que a coisa fotografada, narcisicamente regredida, sequer pôde viver a própria vida. 
Não se trata de um “isso foi”; trata-se de um isso (ainda) não é, o que se potencializa pela instantaneidade com que as selfies são postadas.

Invertendo a máxima do linguista francês, as selfies são imagens mortas; a coisa fotografada nelas, não.
Isso não quer dizer que todos os que façam selfies sofram de narcisismo patológico. 
Antes, revela um sintoma da sociedade contemporânea, cada vez menos interessada nas relações interpessoais à medida que investe na profusão de imagens mortas, no refúgio do artifício. 
Há exceções, contudo.
Por exemplo, há selfies que podem propor uma crítica a seu próprio mecanismo e há aquelas cujo autor tenciona revelar a sua humanidade no que ela pode conter, inclusive, de traços narcísicos. 
Mas, infelizmente, essa não parece ser a tendência. 
Em todo caso, é bom não esquecer: vai depender sempre de quem olha – de um lado e do outro.


*            *            *

terça-feira, 18 de novembro de 2014

FLORBELA ESPANCA - ?


?
Florbela Espanca

Quem fez ao sapo o leito carmesim 
De rosas desfolhadas à noitinha? 
E quem vestiu de monja a andorinha, 
E perfumou as sombras do jardim? 

Quem cinzelou estrelas no jasmim? 
Quem deu esses cabelos de rainha 
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha 
Alma a sangrar? Quem me criou a mim? 

Quem fez os homens e deu vida aos lobos? 
Santa Teresa em místicos arroubos? 
Os monstros? E os profetas? E o luar? 

Quem nos deu asas para andar de rastros? 
Quem nos deu olhos para ver os astros 
— Sem nos dar braços para os alcançar?

*        *        *

In: " Charneca em flor", 1931 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Drummond - Fala, amendoeira

Fala, amendoeira
Carlos Drummond de Andrade

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. 
Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. 
Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. 
Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. 
Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. 
Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. 
Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho.
E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

-  Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

-  E vais outoneando sozinha?

-  Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

-  Somos todos assim.

-  Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. 
Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

-  Não me entristeças.

-  Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. 
Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. 
O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. 
As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... 
Outoniza-te com dignidade, meu velho.

*            *            *

Crônica publicada, originalmente, no antigo jornal Correio da Manhã (1957)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ANDRÉ J. GOMES - Um passarinho novo...


Um passarinho novo no céu das pequenas coisas
André J. Gomes - "Revista Bula", 13 de novembro 2014

E lá estavam todos eles. As formigas e os sapos, as cobras e os grilos, os ciscos e os pequenos universos que pulsam dentro das gotas d´água. Todas as criaturas pequenas que vivem debaixo das pedras e as borboletas e os pássaros, todos os pássaros trabalhando acima das árvores e brincando de andar no chão.

As rãs e os rios, as folhas pesadas de orvalho caindo dos galhos. Ficaram todos ali, à espera: um anjo simples, sem tempo nem jeito anunciara a chegada de passarinho novo ao céu das pequenas coisas.

Fez-se então no céu que é um imenso e eterno chão a maior expectativa de simplicidades. Todas as coisas e os seres desimportantes da vida estavam ali. As tartarugas caminhando no avesso dos mísseis, os insetos voando alheios aos aviões, os atrasos e os silêncios, as insignificâncias do tempo costurando suas esperanças em linhas invisíveis de quando.

O passarinho chegou ali em sua manhã quase tardinha, quase de noite. Olhou a todos com olhos de infância. Reencontrou o amigo Bernardo como na primeira vez que o reconhecera, quase árvore. Reviu os filhos João e Pedro de novo crianças, brincando de fazer nada na sombra com palavras de sol. Chegou agora e sempre.

Foi ser feliz de novo, transbordar as peneiras de água, afanar o vento e mostrar correndo aos irmãos, escrever a Gramática Expositiva do Céu. Vivo como a vida inventada por ele.

Porque no céu das pequenas coisas, morrer é só um despropósito como tantos mais, e o voo do passarinho não morre. Finda seu corpo físico, parte seu canto infinito. Ele foi adiante.

Foi-se tornar inútil e belo como sempre. Para sempre. Com os seus, vai viver de apanhar desperdícios em um quintal maior que o mundo. E o mundo, esse nosso cá aquém, fica para antes e depois. Fica para quando.

Para Manoel de Barros.


*            *            *

MANOEL DE BARROS - Brincadeiras

Que coisa... ontem, publiquei um texto de Mia Couto homenageando Manoel de Barros. 
Eu não poderia imaginar  que hoje o poeta das coisas simples voaria de volta pra casa...

Fica registrada também a marca da milésima postagem no blog, que eu desejara mais alegre...



A Infância - Brincadeiras
Manoel de Barros (1916-2014)

No quintal a gente gostava de brincar com as palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:
O céu tem três letras
O sol tem três letras
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três
logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n'água. Entendemos tudo.

Depois Cipriano falou:
Mais alto do que eu só Deus e os passarinhos.
A dúvida era saber se Deus também avoava
Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.

Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.

Outro dia a gente destampamos a cabeça do Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
Nenhuma idéia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.

Isso era.


*            *            *

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

MIA COUTO - "Miudádivas, pensatempos"


“Miudádivas, pensatempos 
Mia Couto

(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. 
Entendo só de raízes, vésperas de flor. 
Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. 
No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. 

Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. 
Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. 
Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.

Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.

Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.

Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?

Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.

Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.


Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.


Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos, 
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa á margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.

Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras, me habilito a chão, o desfuturo.”

*            *            *

Do livro "Contos do nascer da terra"


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

TEL MONT - 'Tabacaria' ainda aberta...

Da página "A louca da biblioteca" - facebook


Imagem: Arte de Quint Bucholz.
Pervaga um sentimento de arrasamento total dentro de mim. 
Destroços boiam por sobre minhas águas, e eu me sinto medíocre, numa noite igualmente medíocre,
porque não me oferece as respostas que não faço, mas penso, e procuro. 
Instalou-se, sem minha permissão expressa, uma Tabacaria dentro aqui desde há dias. 
Já são outras manhãs, e ela não fechou ainda. 
Não há mais ninguém e ela continua aberta. 
Estou só, à espera... Do quê? De simples verdades, 
tão simples quanto essas flores silvestres que brotam delicadamente à beira da estrada 
e só o vento ao passar brinca com elas. 
Ninguém mais as percebe.
Clarice, Clarice, o que faço com o meu personagem? 
Não quero fantasmas camaradas. 
Quero que eles arrastem correntes e soltem labaredas pelos olhos 
e não sintam remorsos bobos por seus desejos de vingança. 
Quero-nos poderosos e indestrutíveis. 
E quando ninguém estiver vendo, 
que eles sentem a um canto e chorem melancolicamente
sob a luz do luar. 
E faz lua agora, uma lua imensa e prateada. Clariceana.
(Há lua aí também?)

Afastei uma telha no teto do meu quarto, que não tem forro, 
e um facho de luar desce. 
Fosse uma ponte, eu nem estaria mais aqui agora. 
Talvez já estivesse em casa outra vez... 
Meu coração está tão pequenino hoje, assim uma joaninha parada sobre uma folha, 
ou um desses besourinhos que surgem do nada, 
parece que brotam do ar para uma realidade exaustivamente cotidiana. 
E isso é um momento que sempre me deixa perplexa - "como se soubesse a verdade". 
Meu coração hoje está frágil como uma gota de orvalho pendurada num galho pequeno e solitário, 
num jardim pequeno e solitário e que também ninguém repara. 
Se essa gota ao menos caísse, 
para que se espatifasse em minúsculas transparências. 
A beleza efêmera de um instante que nunca será igual a outro instante. Isso é liberdade. 

(TEL MONT)

*            *            *

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

INCÓGNITA INSTIGANTE - sobre Clarice Lispector




Incógnita Instigante
Thaís Folgosi- "Obvious - Lounge"

Pelo direito de não se definir: como o conto "O ovo e a galinha" traduz sua autora, Clarice Lispector


Quem é Clarice Lispector? E quem vem primeiro? A Clarice mulher? A Clarice escritora? A estrangeira? A mãe? Ou, porque não uma faceta desconhecida do público? 
Este enigma que é uma das maiores autoras do Brasil (apesar de ter nascido na Ucrânia) defendeu o direito de não se definir ou nomear cada sentimento, objeto, ou qualquer outra coisa de que se trata. Esta carência de sentido encontrada em suas histórias fisga o leitor, que ao ler não compreende, e fica instigado.
Suas obras compreendem as pessoas de modo geral, sendo a escritora que melhor explorou o âmago de suas personagens, que ao viver devaneios e epifanias vivenciam momentos extremos de lucidez. Sem contar que as personagens de Clarice são humanas, isto é, são ambíguas, ao mesmo tempo são uma coisa e o seu oposto. Assim como qualquer indivíduo que é complexo, e não raso e maniqueísta.

Entre tantas histórias que causam estranheza e incômodo, nenhum conto melhor do que "O ovo e a galinha", que parece inassimilável, para ilustrar essa característica de não definir exatamente sobre aquilo que fala. 
A própria Clarice, durante a última entrevista de sua vida, concedida a TV Cultura, em 1977, disse gostar deste conto em especial, por ser um trabalho que continua a ser um mistério para ela.

A escritora inicia o conto divagando livremente sobre um ovo para finalmente adentrar na vida de sua narradora, num diálogo interior profundo e reflexivo.
Ao falar da superfície do ovo, pode-se perceber que o que se conhece de Clarice é mais seu exterior, na figura de escritora, do que seu interior. 
E mesmo das pessoas que estão ao nosso redor diariamente, se formos pensar sabemos pouco, de nós mesmos, e de nosso colega de trabalho também. E nos limitamos a ser apenas uma "casca" que pode esconder muitas facetas.

Assim como o mal que da galinha é desconhecido, pelo qual a narradora se lamenta, tantas vezes passamos por tal situação. 
Sofremos sem saber o porquê, mas desconfiados de que ele se encontra dentro de nós. 
Além disso, assim como a galinha, contradizemo-nos e constantemente nos remodelamos. E é com tantas indagações, banais e filosóficas, que vivemos.

Após um longo devaneio sobre o ovo que se direciona a uma epifania sobre o significado do amor. 
É então, após o momento de conscientização, que a narradora coloca em dúvida a própria clareza. Será que tal epifania de fato ocorreu? Será que sou mais lúcida a ponto de perceber que tudo não passa de um disfarce?

Quando Clarice escreve "Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando", a autora permite essa incógnita. Pois nem tudo tem uma explicação, por mais incabível que isto seja num mundo cartesiano que exige afirmativas a todo momento.
Mas lembremos que, por ser um mistério, tudo que foi dito não passa de especulação. 
A verdade é que nem todos os mistérios são desvendados.

O conto "O ovo e a galinha", tanto quanto sua autora, continuará nas mentes especulativas de cada leitor que, instigado, vai acreditar ter finalmente encontrado o real significado da história.
Essa eterna especulação é positiva, porque, ao se definir tudo, perde-se a essência e tudo aquilo que poderia ser, mas por ter sido definido, delimitado e enquadrado, já não se pode ser mais. 
As palavras e o pensamento nos afasta do objeto. 
A busca incessante por definirmos as coisas limita-nos.

Assim como sua escrita, Clarice também é um mistério. Pode-se constatar isso na última entrevista, de 1977. 
A sisudez presente nas respostas curtas, a seriedade presente no tempo que leva para responder às perguntas, a introspecção notada no silêncio quando nada tem a declarar, a rispidez que pode ser interpretada como uma falta de interesse, ou, como prefiro, o cansaço causado por uma doença que se descobriria depois daquela entrevista, fazem dela tímida e ousada, assim como sua obra.

*        *        *

terça-feira, 4 de novembro de 2014

MURILO MENDES - Poema dialético

"Presságios favoráveis", de René Magritte

Poema Dialético
Murilo Mendes

I
Todas as coisas ainda se encontram em esboço
Tudo vive em transformação
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga.
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

II
Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em plenos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

III
A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Senão um desespero sem nobreza, e a peste da alma?
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror.
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos.
Comeram o pó e beberam o próprio suor.
Não se banharam no regato livre...

Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve realiza-la na sua carne e no seu espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

IV
É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir incessantemente o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída um dia à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita.
A aurora é coletiva.

*        *        *

MÁRIO QUINTANA - Olho as minhas mãos


Olho as minhas mãos
Mário Quintana

Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo
do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras!
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável
do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o
pensamento
Como tecem as teias as aranhas.

A que mundo
Pertenço?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar,
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...

Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela-do-mar
Foi este o fim da Criação!

Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos?
Quem faz em mim - esta interrogação?

*            *            *