domingo, 30 de junho de 2013

HAIKAI - Guilherme de Almeida

Haikai  é uma forma poética de origem japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade. Os poemas têm três linhas, contendo na primeira e na última cinco caracteres japoneses (totalizando sempre cinco sílabas), e sete caracteres na segunda linha

Segundo Goga (1988), o primeiro autor brasileiro de Haicai foi Afrânio Peixoto, em 1919, através de seu livro Trovas Populares Brasileiras, onde prefaciou suas impressões a respeito do poema japonês:
“Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haikai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão com ênfase, é o epigrama lírico.
São tercetos breves, versos de cinco, sete e cinco pés, ao todo dezessete sílabas. Nesses moldes vazam, entretanto, emoções, imagens, comparações, sugestões, suspiros, desejos, sonhos... de encanto intraduzível”

Quem o popularizou, porém, foi Guilherme de Almeida, com sua própria interpretação da rígida estrutura de métrica, rimas e título.
No esquema proposto por Almeida, o primeiro verso rima com o terceiro, e o segundo verso possui uma rima interna (A 2ª sílaba rima com a 7ª sílaba). A forma de haikai de Guilherme de Almeida ainda tem muitos praticantes no Brasil.

Outra corrente do haikai brasileiro é a tradicionalista, promovida inicialmente por imigrantes ou descendentes de imigrantes japoneses, como H. Masuda Goga e Teruko Oda.
Esta corrente define haikai como um poema escrito em linguagem simples, sem rima, estruturado em três versos que somem dezessete sílabas poéticas; cinco sílabas no primeiro verso, sete no segundo e cinco no terceiro. Além disso, o haikai tradicional deve conter sempre uma kigo. Estas são palavras ou frases, utilizadas na poesia japonesa, que têm uma associação com uma estação do ano. (Ex.: "sakura", "flor de cerejeira", é associada à Primavera).

Prefiro a forma de Guilherme de Almeida,  com rimas do 1º e 3º versos e rima interna no 2º, embora existam kaicais bem feitos que não seguem esse esquema rígido.


CARIDADE

Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.


AQUELE DIA

Borboleta anil
que um louro alfinete de ouro
espeta em Abril



JANEIRO

Jasmineiro em flor.
Ciranda o luar na varanda.
Cheiro de calor.



 PASSADO

Esse olhar ferido,
tão contra a flor que ele encontra
no livro já lido!


 
TRISTEZA

Por que estás assim,
violeta? Que borboleta
morreu no jardim?

Guilherme Andrade de Almeida 
(Campinas, 24 de julho de 1890 — S.Paulo, 11 de julho de 1969) 
 advogado, jornalista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro 

*            *            *

quarta-feira, 26 de junho de 2013

CHAGALL - Tradução de Manuel Bandeira

“Pintei meu mundo, minha vida
aquilo que vi e aquilo que sonhei:
pintei minha Rússia querida,
a Vitesbsk onde nasci,
o bairro dos judeus pobres onde cresci,
assim como os via quando era criança,
quando meu nome era Moshe Segall”.


Tela de Marc Chagall
Um poema de Chagall
Marc Chagall 
(Vitebsk, Bielorrússia7 de julho de 1887 — Saint-Paul-de-Vence, França, 28 de março de 1985)


Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta.
Me cobre com uma pedra perfumada.

Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
À procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis porque sorrio
Quando mal brilha meu sol.
Ou choro
Como uma chuva leve
Na noite.

Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas caras
Se cobriam de um orvalho amoroso.
Se fundiam como o perfume de uma rosa.

Hoje em dia me parece
Que até quando recuo
Estou avançando
Para uma alta portada
Atrás da qual se estendem muralhas
Onde dormem trovões extintos
E relâmpagos partidos.
Só é meu
O mundo que trago dentro da alma.

*            *            *

Tradução: Manuel Bandeira

domingo, 23 de junho de 2013

PÁTRIA MINHA - Vinicius de Moraes



Pátria Minha
Vinicius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para 
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra 
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha 
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."

*            *            *


In: "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 383.


segunda-feira, 17 de junho de 2013

SEM DATA MARCADA...

Sem data marcada, aos meus amigos Professores:


Sou Professor
John W. Schlatter

Sou professor.
Nasci no momento exato em que uma pergunta 
saltou da boca de uma criança.
Fui muitas pessoas em muitos lugares.

Sou Sócrates, estimulando a juventude de Atenas 
a descobrir novas idéias através de perguntas.

Sou Anne Sullivan, extraindo os segredos do universo
da mão estendida de Helen Keller.

Sou Esopo e Hans Christian Andersen,
revelando a verdade através de inúmeras histórias.

Sou Marva Collins, 
lutando pelo direito de toda a criança à Educação.

Sou Mary McCloud Bethune, 
construindo uma grande universidade para meu povo, 
utilizando caixotes de laranja como escrivaninhas.

Sou Bel Kauffman, 
lutando para colocar em prática o Up Down Staircase.

Os nomes daqueles que praticaram minha profissão
soam como um corredor da fama para a humanidade…

Booker T. Washington, Buda, Confúcio,
Ralph Waldo Emerson, Leo Buscaglia, Moisés e Jesus.

Sou também aqueles cujos nomes 
foram há muito esquecidos, 
mas cujas lições e o caráter serão sempre lembrados 
nas realizações de seus alunos.

Tenho chorado de alegria nos casamentos de ex-alunos,
gargalhado de júbilo no nascimento de seus filhos 
e permanecido com a cabeça baixa de pesar e confusão
ao lado de suas sepulturas cavadas cedo demais,
para corpos jovens demais.

Ao longo de cada dia tenho sido solicitado como ator,
amigo, enfermeiro e médico, treinador, 
descobridor de artigos perdidos, 
como o que empresta dinheiro,
como motorista de táxi, psicólogo, pai substituto,
vendedor, político e mantenedor da fé.

A despeito de mapas, gráficos, fórmulas, verbos,
histórias e livros, não tenho tido, na verdade,
nada o que ensinar, pois meus alunos 
têm apenas a si próprios para aprender, 
e eu sei que é preciso o mundo inteiro 
para dizer a alguém quem ele é.

Sou um paradoxo.
É quando falo alto que escuto mais.
Minhas maiores dádivas estão 
no que desejo receber agradecido de meus alunos.

Riqueza material não é um dos meus objetivos,
mas sou um caçador de tesouros em tempo integral,
em minha busca de novas oportunidades 
para que meus alunos usem seus talentos 
e em minha procura constante desses talentos 
que, às vezes, permanecem encobertos pela autoderrota.

Sou o mais afortunado entre todos os que labutam.
A um médico é permitido 
conduzir a vida num mágico momento.
A mim, é permitido ver 
que a vida renasce a cada dia 
com novas perguntas, idéias e amizades.

Um arquiteto sabe que, se construir com cuidado,
sua estrutura poderá permanecer por séculos.
Um professor sabe que, se construir com amor e verdade,
o que construir durará para sempre.

Sou um guerreiro, batalhando diariamente 
contra a pressão dos colegas, o negativismo, 
o medo, o conformismo,
o preconceito, a ignorância e a apatia.

Mas tenho grandes aliados: 
Inteligência, Curiosidade, Apoio paterno, Individualidade, 
Criatividade, Fé, Amor e Riso, 
todos correm a tomar meu partido com apoio indômito.

E a quem mais devo agradecer 
por esta vida maravilhosa,
que sou tão afortunado em experimentar, 
além de a vocês, ao público, aos pais?
Pois vocês me deram a grande honra 
de confiar-me suas maiores contribuições 
para com a eternidade, seus filhos.

E assim, tenho um passado rico em memórias.
Tenho um presente de desafios, aventuras e divertimento,
porque a mim é permitido passar meus dias com o futuro.
Sou professor… e agradeço a Deus por isso todos os dias.

*            *            *

ADÉLIA PRADO - Exausto



Exausto
Adélia Prado

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

*            *            *

In: 'Bagagem'  (Record)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

DUPLA COMEMORAÇÃO - W.B.Yeats / Fernando Pessoa

When You Are Old (original)
William B. Yeats
 (Dublin, Irlanda, 13 de Junho de 1865 — Menton, França, 28 de Janeiro de 1939)


When you are old and gray and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face among a crowd of stars.
*
Poema publicado em The Rose, em 1893
*

Quando Fores Velha 

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.
*
Tradução: José Agostinho Baptista
W.B. YEATS - UMA ANTOLOGIA - Assírio & Alvim

*     *     *


O que Me Dói não É
Fernando Antonio Nogueira  Pessoa
 (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935)

O que me dói não é 
O que há no coração 
Mas essas coisas lindas 
Que nunca existirão... 

São as formas sem forma 
Que passam sem que a dor 
As possa conhecer 
Ou as sonhar o amor. 

São como se a tristeza 
Fosse árvore e, uma a uma, 
Caíssem suas folhas 
Entre o vestígio e a bruma. 
*
In "Cancioneiro"

*        *        *

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Ella Fitzgerald - My Funny Valentine

PABLO NERUDA - O inseto

Homenagem ao Dia dos Namorados
Tela de Leonid Afremov

O Inseto
Pablo Neruda

Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.

Sou mais pequeno que um inseto.

Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos
que só eu conheço,
centímetros queimados,
pálidas perspectivas.

Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa
de fogo umedecido!

Pelas tuas pernas desço
tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos
duma dureza redonda
como os ásperos cumes
dum claro continente.

Para teus pés resvalo
para as oito aberturas
dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio
do lençol branco
caio, procurando cego
e faminto teu contorno
de vaso escaldante!

*        *        *
 IN: '20 poemas de amor e uma canção desesperada'

terça-feira, 11 de junho de 2013

FLORBELA ESPANCA - Vaidade / Os teus olhos

florbela.jpg

Dos olhos de Florbela, a poetisa eleita
Andreza Spinelli Ballan - in "Obvious"

Desvendar Florbela Espanca: atitude impossível e impensável. Divagar sobre a vida da mais intensa poeta portuguesa de todos os tempos – ouso nomeá-la como a mais intensa sem nenhum receio – não é algo que seja fácil de ser expresso. 
Florbela foi uma figura que soube retratar sua existência através de fortes marcas encontradas na sua escrita. Escreveu em prosa, mas foram seus sonetos que fizeram dela o grande nome que é hoje. Marcas tão delineadas que remetem o leitor a sentir o desamparo de uma grandiosa mulher na própria epiderme.

Falou do amor e das aparentes escaras deixadas por ele com uma lucidez quase paradoxal ao seu estilo sofredor de ser. 
Obteve a arte da lucidez agregada ao sofrimento, mostrando o quão reluzente foi a sua passagem pelo hall dos grandes poetas mundiais. Reconhecida? Sim, mas somente após sua morte (que ainda é um mistério tanto para os biógrafos da escritora quanto para os admiradores de sua obra). 
Alcançou postumamente a glória e o reconhecimento de sua inegável genialidade, deixando clara a ideia de que Florbela foi, antes de tudo, uma sofredora. Sofrimento visível em seus auto-retratos que emanam basicamente um olhar pesado, olhar que busca algo quase impossível de ser encontrado.

Não quis aparentar ser uma pessoa forte, só desejou mostrar, despida e desprotegida, as dores que sentia e o que observava (com olhos de lince) ao seu redor – dos hábitos da sociedade portuguesa da época, até a atmosfera vivida embaixo de seu próprio telhado.
Estudou em colégio masculino e conviveu com os impropérios do “sexo forte” de uma forma muito próxima, moldando com sabedoria suas opiniões.
Viveu para mostrar aos leitores o peso que a vida pode acarretar às costas de uma mulher que dispôs de uma fé majestosa e homens que moldassem seu pensamento de uma forma praticamente proposital e esculpida.
Tela de Brent Heighton
Vaidade, um dos poemas mais famosos da escritora:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!
*

Florbela como amante constante:
Os teus olhos

O Céu azul, não era
Dessa cor, antigamente;
Era branco como um lírio,
Ou como estrela cadente.

Um dia, fez Deus uns olhos
Tão azuis como esses teus,
Que olharam admirados
A taça branca dos céus.

Quando sentiu esse olhar:
“Que doçura, que primor!”
Disse o céu, e ciumento,
Tornou-se da mesma cor!

*        *        *


sábado, 8 de junho de 2013

CECÍLIA MEIRELES - por ela mesma (parte II)


"Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde. 
Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em meu mundo e construir. 
Aos poucos pude criar a minha Ilha de Nanja, a São Miguel transfigurada pelo sonho. 
Acho linda a continuidade humana através da poesia. 
Só viajo com a Bíblia. A Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário."
'Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.'

"Mas comigo aconteceu uma coisa deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta minha casa (Cecília vive ao lado do bondinho que sobe pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as raças e religiões. Todos unidos pelo Natal. E o mais curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia comigo mesma: “Fulano talvez não combine com Beltrano, mas eu servi de elo entre os dois. A mim eles escreveram!” Me fez um bem enorme aquele meu Natal atrasado!"
'Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.'

"Se eu inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há um certa dose de vaidade. “In­ventei. É meu”.
O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e sofreu!
No “Romanceiro do Rio de Ja­neiro”, que estou preparando para o IV Centenário, procuro usar, em cada capítulo, a linguagem da época."
'Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…'

"Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!"
'Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.'

Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. “Solombra”, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.
Que procuras? Tudo. Que desejas? — Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.'

"Cada lugar aonde chego é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas.
Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento de horizonte humano.
Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu mundo interior. As canções de Tagora, que tanta gente canta como folclore, tudo na Índia me dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali nem templos nem faquires.
O impacto de Israel também foi muito forte. De um lado, aqueles homens construindo, com entusiasmo e vibração, um país em que brotam flores no deserto e cultura nas universidades. Por outro lado, aquela humanidade que vem à tona pelas escavações. Ver sair aqueles jarros, aqueles textos sagrados, o mundo dos profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou Jeremias … Visitar Nazaré, os lugares santos!
A Holanda me faz desconfiar de que devo ter parentes antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias sem dormir. Me dava a impressão de que não estava num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro de gravuras.
Quanto a Portugal, basta dizer que minha avó falava como Camões. Foi ela quem me chamou a atenção para a Índia, o Oriente: “Cata, cata, que é viagem da Índia”, dizia ela, em linguagem náutica, creio, quando tinha pressa de algo, chá-da-Índia, narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo à Índia e a Portugal."
'Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.'

"A babá Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o partiram em mil pedaços."
'Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.'

"Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito.
O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão.
Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos."

Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais.

"Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão. Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta."
'Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.'

"Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguma coisa.
Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas.
Mas aprendi também a renunciar.
Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes, um poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não lhe dou muita importância, vai embora. 
Tenho muita pena dos poemas que não escrevo. E também muita dos que escrevo."
E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará…

A juventude de hoje? Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade, as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova mensagem.
'Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.'

"A arte abstrata? Nós, pouco a pouco, vamos caminhando para o subentendido, não é?
A arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si. Muita gente faz coisas com nomes concretos que geram um mundo abstrato e vice-versa."
'Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.'

Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.
'Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.'

"Educação, para mim, é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor."

Em prosa Cecília dá lições de grandeza.
Vejam como descreve o barquinho Elenita: “parece uma nuvenzinha a correr por um espelho”.

E o “Anjo da Noite”: “À noite o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Há muitos sonhos em cada casa. O gato volta apressado, com certo ar de culpa”.

“Chuva com Lembranças”: “Começaram a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam”.

Outro: “Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa de jardim zoológico”.
**
"Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e me sentia completamente feliz.
Mas houve épocas em que a janela abria para um canal em que oscilava um barco carregado de flores. Outras em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade de giz, para um jardim que parecia morto. "

Outras vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor, nuvens espessas ou crianças que vão para a escola, pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas, marimbondos, um galo que canta, um avião que passa. E Cecília se sente completamente feliz.
E conclui: “Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.

Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul!
Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo porque continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”.
“Solombra”, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra.
Cecília, para nós. é só luz.



*            *            *

Entrevista publicada na revista “Manchete”, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. E posteriormente no livro “Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.


Fonte: 'Revista Bula'