quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Sanzaru - Mitologia japonesa

Os três macacos sábios
Mizaru, Kikazaru e Iwazaru
Silvia Kawanami - Mitologia Japonesa

 Os três macacos sábios 

Significado de Mizaru 見 ざる, Kikazaru 聞か ざる, Iwazaru 言わ ざる

Literalmente significa: miru=olhar, kiku=ouvir, iu=falar e zaru=negar, que pode ser traduzido como “Não olhe para o mal, não escute o mal, não pronuncie o mal”.

Embora tenha diversas interpretações, eu acredito que se refira ao fato que se não praticarmos o mal aos outros, manteremos o mal distantes de nós mesmos.

Neste provérbio antigo, vemos três macaquinhos associados a ele.
Cada um complementa o ditado popular com um gesto diferente: Um tampa os olhos, o do meio tampa os ouvidos e o outro tampa a boca.
Mas de onde surgiu essa frase? O que ela realmente quer dizer?
Bom, ao que parece, sua origem é chinesa, porém é quase certo que foi no Japão que ela ganhou o mundo e se tornou um ditado popular ou um provérbio japonês, que no Japão são chamados de Kotowaza.

A relação do ditado com os macaquinhos seria devido a um jogo de palavras.
É que “Zaru” se usa no final dos verbos no Japão e sua fonética soa parecido com “Saru”, que é macaco em japonês.
Existe uma estátua dos três macacos no Santuário Toshougu, na cidade de Nikko, na qual ilustram a porta do Estábulo Sagrado.

Sanzaru, os três macacos sábios
Sanzaru, os três macacos sábios

A origem dos três macacos sábios (Sanzaru / 三猿)

 A filosofia por trás do simbolismo dos macacos vem de uma lenda Tendai-budista, na qual os macacos são usados para representar o ciclo de vida do homem.
O provérbio “não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal” é chamada no Japão de “regra de ouro”, onde se se encontra outros ensinamentos que ajudam a promover harmonia entre as pessoas: Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você.
Segundo a religião budista, os gestos dos três macacos representam a divindade de seis braços Vajrakilaya, cujo principal ensinamento é não ouvir, ver ou falar mal, pois dessa forma, nós mesmos seremos poupados do mal.
Em outras interpretações dizem que as estátuas dos Três Macacos Sábios simbolizam paz e harmonia, protegem o lar das energias ruins e ajuda a evitar que o mal se espalhe.

Eles também são chamados de “Os Três Macacos Místicos” (Sambiki Saru) e além do Budismo Tendai, o macaco tem forte ligação com o Xintoísmo HIE.
Há festivais importantes, como alguns que ocorrem  durante o ano do macaco (a cada 12 anos) e um festival especial é comemorado todos os anos, o Festival de Koshin.

Os três macacos sábios


Festival Koshin (Dia do Macaco)

O festival Koshin é conhecido como Dia do Macaco.
Fala sobre uma divindade chamada Koshin que tinha três macacos como mensageiros. Em algumas versões, os três macacos estão representados como três vermes que vivem dentro de nós mesmos, na qual registram tudo de bom e de mau que fazemos.

No 60° dia do calendário, enquanto as pessoas dormem, os três vermes saem e vão até o deus Koshin, que julgará e punirá a pessoa conforme o que foi relatado pelos três vermes.
Para evitar um possível castigo, portanto, é preciso ficar acordado para evitar que os vermes saiam de dentro das pessoas e relatem os maus feitos a Koshin.

Por causa dessa lenda de origem no taoismo chinês, antigamente famílias e amigos se reuniam para ficar em vigília durante a noite inteirinha, que durava desde o início da noite da véspera do Festival Koshin até o amanhecer no outro dia, onde passavam o tempo bebendo, comendo e conversando para se manterem acordados.

Esse provérbio “Mizaru, Kikazaru e Iwazaru”, “Não olhe para o mal, não escute o mal, não pronuncie o mal”, que em inglês é conhecido como “See no evil, Hear no evil, Speak no evil” serve como uma boa reflexão nesse início de ano, como uma forma de olharmos para dentro de nós mesmos, afastando tudo que nos faça mal e nos dando a chance de sermos cada dia melhores do ponto de vista espiritual.

Mizaru Kikazaru Iwazaru

sábado, 5 de dezembro de 2015

Cultura inútil

Cultura inútil
Leonardo von Mühlen - em seu blog 'vilmetáfora'



Recorrentemente, deparo-me com o termo “Cultura Inútil” nos mais diversos círculos que frequento. Proferem-no cabeças pensantes e não pensantes; mentes conservadoras e progressistas; indivíduos cultos e eruditos, personagens néscios e ignorantes. Enquanto eu os escuto discorrer sobre a inutilidade de tais e tais “culturas”, fico a me questionar:

Cultura tem mesmo de ser útil?
Qual seria a utilidade da cultura?
Teria a cultura um objetivo a ser alcançado, uma meta a ser atingida?

Nesse meu solitário devaneio, que ora me atrevo compartilhar, receio desconfiar que cultura e utilidade não guardam relação lá muito amigável entre si. Penso, até, em arriscar dizer que cultura, se for útil, sequer é cultura, mas minha pouca ousadia, de momento, não me autoriza tal decreto. Sigamos, então, na linha de que cultura, para ser cultura, dispensa o caráter de utilidade.

Ora, cultura não precisa ser uma ferramenta ou um instrumento, tampouco produzir resultados materiais, pois, para tanto, temos a figura do conhecimento, cujo objetivo é, aí sim, produzir algo, criar, modificar, promover evolução e aperfeiçoamento, gerar resultados corpóreos e visíveis – tais incumbências pertencem-lhe exclusivamente. Este sim, o conhecimento, pode ser qualificado como útil ou inútil; a cultura, jamais. Ela estará sempre léguas acima destas frivolidades.

A cultura, na acepção aqui proposta, sinto-a muito mais próxima da sabedoria do que do conhecimento. Numa ótica mais lírica, percebo a cultura como um valor interno, íntimo, algo como recitar um soneto para si mesmo, em suaves murmúrios; já o conhecimento, percebo-o como um livro de cabeceira do qual se lança mão em noites insones. É complexo de se entender – nem sei se, mesmo eu, entendo –, mas sinto essas duas grandezas abstratas assim, quase antagônicas, porém complementares.

A cultura me completa, alimenta-me a alma, transforma-me e, permitam-me um clichê, torna-me mais feliz. Então, novamente pergunto: qual a utilidade de tudo isso? O que pode haver de útil, de proveitoso, de lucrativo em ser feliz, em sentir-se completo e de alma transformada? Absolutamente nada! A cultura, sob as mais variadas formas – literatura, música, teatro... – não produz nada de concreto, é formidavelmente inútil. É algo belo – por vezes, nem tanto – com o que nos comprazemos, deleitamo-nos; é algo que diz precisamente quem somos, porque e como; aponta caminhos e também os constrói; oxigena existências. O conhecimento, por sua vez, apenas facilita.

Em tempo, lembrei-me de outra questão relevante: a cultura nunca será útil ou inútil, contudo, pode-se, eventualmente, qualificá-la de fútil, não por antonímia à utilidade, mas por ter valor cultural questionável, pueril, superficial. Observem que a erroneamente difundida “cultura útil” (quando se fala em “cultura inútil”, pressupomos a existência de uma “cultura útil”, o que produz essa falsa dicotomia) é tão inerentemente contraditória quanto o “conhecimento inútil”. A cultura é um ente de natureza maravilhosamente inútil, enquanto o conhecimento traz a utilidade, a proficuidade, na sua essência. O conhecimento confere poder; a cultura faz transcender.

Tomei coragem: cultura, se for útil, não é cultura; conhecimento, se for inútil, não é conhecimento. Decreto: toda cultura é inútil, todo conhecimento é útil, sob pena de, em não assim os sendo, não existirem como tais.

Fica o dito pelo não dito. Encontro-me, a partir de já, receptivo às pedras.

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domingo, 22 de novembro de 2015

Sobre a escrita - Guimarães Rosa



Em entrevista ao escritor e jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. 

Guimarães Rosa — Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. 
Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. 
Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. 

Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. 

E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardo Gomes de Brito e publicados em 1735). 
Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me se­para dos portugueses.
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Guimarães Rosa Quando escrevo, não pen­so na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva.

Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo.

Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. 
Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. 
Escrever, para mim, é como um ato religioso.

Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. 
Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. 
Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. 
A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.
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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Frases de Drummond - Revista Bula



50 FRASES DE DRUMMOND PARA CARREGAR NO BOLSO
Ademir Luiz - 'Revista Bula- colunistas'

A vida do poeta interplanetário Carlos Drummond de Andrade, nascido sob a proteção de um anjo torto na cidadezinha mineira de Itabira, de besta não teve nada. 
Além de ter colocado uma pedra no caminho (e no sapato) de muitos poetas municipais (e de bairro) Brasil afora, Drummond foi contista, cronista e um frasista de abalar a máquina do mundo. 
A Revista Bula selecionou 50 das mais belas, instigantes e provocadoras frases do mestre. Frases que podem ser levadas no bolso, na bolsa, na carteira, tatuadas ou escritas com esferográficas na mão, para serem lidas e relidas. 
E agora, José, qual frase você escolhe?

Tudo é possível, só eu impossível.
Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.
Precisamos educar o Brasil.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Podemos beber honradamente nossa cerveja.
Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante.
O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé.
A liberdade é defendida com discursos e atacada com metralhadoras.
A minha vontade é forte, porém minha disposição de obedecer-lhe é fraca.
Crimes suaves, que ajudam a viver…
O povo toma pileques de ilusão com futebol e carnaval. São estas as suas duas fontes de sonho.
Tristeza de ver a tarde cair como cai uma folha.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Há muitas razões para duvidar e uma só para crer.
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.
No adultério há pelo menos três pessoas que se enganam.
Como as plantas a amizade não deve ser muito nem pouco regada.
As dificuldades são o aço estrutural que entra na construção do caráter.
Os que amam sem amor não terão o reino dos céus.
Depressa, que o amor não pode esperar!
O cofre do banco contém apenas dinheiro; frustra-se quem pensar que lá encontrará riqueza.
Não é fácil ter paciência diante dos que têm excesso de paciência.
Meu verso é minha consolação.
Stop. A vida parou ou foi o automóvel?
A terra não sofreu para dar essas flores.
Ora afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber.
Deus me abandonou no meio de uma orgia, entre uma baiana e uma egípcia.
E o amor sempre nessa toada: briga perdoa briga perdoa.
Não se deve xingar a vida, a gente vive, depois esquece.
Os homens são como as moedas; devemos tomá-los pelo seu valor, seja qual for o seu cunho.
Necessitamos sempre de ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos torna sem ambição.
A educação para o sofrimento, evitaria senti-lo, em relação a casos que não o merecem.
Sexo, esse minúsculo ponto feminino, em torno do qual gira a máquina do mundo.
O amor no escuro, não, no claro, é sempre triste, meu filho.
O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia.
Há vários motivos para não se amar uma pessoa e um só para amá-la.
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens — e te descobriram e salvaram-se.
A poesia é incomunicável.
Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força jamais o resgata…
Os homens distinguem-se pelo que fazem, as mulheres pelo que levam os homens a fazer.
Os desiludidos seguem iludidos, sem coração, sem tripas, sem amor.
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.
Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.
Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo.
Que o poeta nos encaminhe e nos proteja.
Em vão assassinaram a poesia nos livros.
A soma da vida é nula.
E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.

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terça-feira, 27 de outubro de 2015

A dor e a beleza da escrita -sobre Drummond


A dor e a beleza da escrita
Hilane Tawil - em "OBVIOUS Magazine


Carlos Drummond de Andrade, em uma de suas cartas para sua filha, Maria Julieta, a aconselha:
“Escreva minha filha, escreva. Quando estiver entediada, nostálgica, desocupada, neutra, escreva. Escreva mesmo bobagens, palavras soltas. Experimente fazer versos, artigos, pensamentos soltos. Descreva, como exercício, o degrau da escada do seu edifício (saiu um verso sem querer). Escreva sempre, mesmo para não publicar. E principalmente para não publicar. Não tenha a preocupação de fazer obras primas; que de há muito já perdi, se é que um dia a tive. Mas só e simplesmente escrever, se exprimir, desenvolver um movimento interior que encontre em si próprio sua justificação…”

Belo conselho, que de um carinho ofertado a Maria acalentou tantos corações inquietos. 
Na ânsia de significado pela vida, muitos afundam, outros tomam um pouco de fôlego na bordinha da piscina, pegando ar, papel e lápis. 
O ato da escrita, por si só, já é um exorcismo. Quando não, uma tentativa de realocar e elaborar dores, perdas e alegrias. 
A dúvida surge e lá está o escritor, com um comichão no coração e uma caneta na ponta dos dedos.

"E se eu não souber escrever?" Mesmo assim rabisque. Linhas, frases, palavras desconexas. Que mal tem? Ver os sentimentos exteriorizados, seja na tela ou no papel, no mínimo alivia. 
Se mesmo assim não houver descanso, vai lá e faça de novo. E de novo. Até acalentar a alma e adoçar os sentidos. 
Por mais que sangre, remexa lá no fundo o que nem os seus ouvidos conseguem ouvir. 
Apesar do medo da entrega, é isso que salva muitos da loucura ou de assustadores demônios que insistem em rondar os dias.

O trabalho de criação é um mergulho no inconsciente, a junção dos caminhos percorridos e dos atalhos que ainda sonhamos em trilhar. É a entrega de uma pessoa despida de pudores, manchada pelos dias e remexida por delírios. 
Se você vasculhar nas tensões, tragédias, rancores, esperanças e nas fantasias incontáveis até mesmo para o analista, está um (ou muitos) texto (s). 
Angustiado por não conseguir expurgar tudo isso para a folha? Se acalme. Ler é o alimento para a escrita. Já já as linhas chegam até você. Até lá, pratique. Diariamente. Nem que seja um vômito qualquer. A peneira vem depois, assim como o processo de modelagem. 
Tome notas e transborde literatura. Um livro ou uma crônica são, por vezes, o momento de tomada de consciência do autor. Ali ele se apropria do que antes somente pulsava em si mesmo. 
Por mais respeitado, renomado e brilhante que seja um escritor, o próximo verso é sempre uma incógnita. E que lindo é ser aprendiz da própria história. E das entrelinhas em que moram personagens e vidas.

Escreva todo dia (sim, eu me repeti). 
Começando agora você estará mais perto do que estava no exercício de lapidar a matéria bruta. Esta que sai de ti, alcança a folha e precisa ser esculpida. 
Se tomou forma, é que foi purificado. E sortudos são os que das feridas alcançam a catarse.

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domingo, 27 de setembro de 2015

Elegância - Clara Baccarin


Elegância
Clara Baccarin - na página 'CONTI outra'

Algumas pessoas têm um tipo de elegância que as fazem chamar atenção por onde passam independente do que estejam vestindo, com quem estão andando ou de que assunto estejam falando.

É um tipo de elegância que Paul Valery descreveu como “a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir” .

São pessoas que brilham sem fazer esforço, que não precisam alterar o tom de voz, carregar nos gestos, caprichar na produção ou no corte do terno, pois elas conquistam e atraem atenções simplesmente por se sentirem confortáveis na própria pele.

Sabem que a melhor aparência e a mais altiva postura são o brilho nos olhos e a genuinidade no sorriso. Elas iluminam onde passam, pois sua paixão pela vida e seu jeito de encarar o mundo transbordam de dentro para fora. E quando se aprende a brilhar de dentro para fora, qualquer roupa ou acessório que se vista cai bem.

São pessoas que têm uma fineza de alma e se diferenciam por terem aprendido a difícil e corajosa missão de se conservarem sensíveis num mundo que valoriza posturas rígidas e atitudes mecânicas. E como disse Adélia Prado, “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”.

De nada vale poder sem humildade, dedicação sem entrega, beleza sem essência, intelecto sem sensibilidade.  
De nada vale gerenciar todas as questões aparentes, práticas e ‘importantes’ da vida, se não sofisticarmos o modo de enxergar e de sentir o mundo.

Pessoas que sofisticam o sentir nunca saem de moda, desenvolvem um magnetismo natural, se tornam referências, modelos atemporais. Inspiram simplesmente pelo o que são. Têm personalidades próprias e não precisam seguir um grupo, ou uma tendência, pois seus estilos vêm da abertura e da liberdade de se deixar guiar pela intuição e pelas vontades intrínsecas.

Gosto de ver a beleza que se estampa nas pessoas que sabem se despir das armaduras e se vestir de si mesmas. 
Gosto de admirar as pessoas que se tornaram atraentes não pela busca da perfeição, mas pela aceitação amorosa de suas vulnerabilidades humanas.

Gosto das pessoas que perceberam que a maior fineza na vida é a transparência. Que sabem que o verdadeiro luxo é a falta de necessidade de ostentação, pessoas que estão em busca de ‘ser’ mais e não de ‘ter’ mais. E que assim, sem querer, alcançaram o que Coco Chanel chamou de ‘a chave para a verdadeira elegância’, que nada mais é do que a simplicidade.


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sábado, 26 de setembro de 2015

Guimarães Rosa e o pai


Correspondência inédita de Guimarães Rosa mostra a influência do pai em sua obra

Obra recebeu influência de seu pai, Florduardo, matuto e contador de casos

MARCELO BORTOLOTI - Revista "Época", 25/09/2015 - 08h00 

No princípio do século passado, Florduardo Pinto Rosa era o dono de um armazém em Cordisburgo, interior de Minas Gerais. Vendia de arroz e feijão a aguardente e querosene. 
O comércio abastecia os tropeiros que passavam pela região. 
Atrás do balcão, Seu Fulô, como era conhecido, colecionava as histórias dos viajantes. 
Além de comerciante, foi vereador e juiz de paz, celebrou casamentos e mediou conflitos. 
Dono de uma coleção de espingardas, regularmente saía para caçadas. 
Conhecia muito bem a região e seus tipos humanos. 
Teve seis filhos e pretendia que o armazém ficasse sob os cuidados do primogênito, João Guimarães Rosa.

Logo cedo, no entanto, o garoto mostrou aptidão para o estudo. 
Aos 9 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde foi estudar e morar com o avô, Luis Guimarães, médico e escritor. Abandonou de vez Cordisburgo e o sonho do pai em torná-lo comerciante. 
O jovem João passou a mirar a figura erudita do avô e se afastou da trajetória do pai, matuto e contador de histórias. 
Formou-se em medicina, aprendeu línguas e tornou-se diplomata. 
Morou no Rio de Janeiro, depois na Alemanha e na França. 
Tornou-se extremamente culto. Falava francês, inglês, alemão, espanhol, italiano, esperanto e russo. 


 Guimarães Rosa,  escritor, diplomata e poliglota. Ele atribuiu ao pai a “bossa” de sua literatura (Foto: Folhapress)

Aos 38 anos, João publicou seu primeiro livro de contos, Sagarana
A obra era uma reaproximação com o universo do pai, o interior que o diplomata deixara para trás. 
A partir daí, consagrou-se produzindo uma literatura intimamente conectada ao ambiente que o velho Florduardo conhecia tão bem. E passou a se corresponder intensamente com o pai. 

Guimarães Rosa escrevia de longe e tinha pouca intimidade com o sertão que aparece o tempo todo em sua obra. Fez apenas duas viagens pela região e precisava de informantes como Seu Fulô. 
A correspondência dos dois, arquivada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), mostra a bonita relação de um escritor erudito com o pai comerciante que ajudou a construir uma das mais importantes obras da literatura brasileira.

As cartas do escritor para o pai foram publicadas no livro Relembramentos, de Vilma Guimarães Rosa, filha do autor. 
Os textos de Florduardo permanecem inéditos no arquivo do instituto. É um interessante passeio por histórias do interior mineiro. 

Apesar dos problemas de pontuação e erros de português, Florduardo tinha um estilo muito próprio, engraçado e atraente de escrever. 
Encaixava uma história dentro da outra, numa técnica que foi recuperada por seu filho. 
Em 1962, Guimarães Rosa escreveu para a mãe: “Gosto muito do jeito dele escrever, de dar notícia de todos. Fico pensando que a minha ‘bossa’ de escritor eu herdei dele, que maneja a pena com tanta facilidade, personalidade, vivacidade e graça”.

Florduardo enviava com receio os textos para o filho já consagrado. 
Em 1947, um ano após a publicação de Sagarana, escreveu: “Fico com vergonha de te mandar estas tolices que eu escrevo sempre à noite quando me falta o sono, e que talvez você nem compreenda a minha letra e o mal escrito”. 
Mas, diante da insistência do filho, mandava regularmente novas histórias. “Tenho que escrever, não conferir o que escrevi e te mandar logo, pois do contrário eu desanimo e rasgo tudo como já tenho feito muitas vezes”, disse, em 1954.

Guimarães Rosa entre a mãe, Chiquitinha, e o pai, Florduardo. O futuro escritor foi estudar em Belo Horizonte aos 9 anos (Foto: acervo pessoal/livro “Relembramentos”, editora Nova Fronteira)

Guimarães Rosa lhe pedia histórias de crimes, de personagens curiosos de Cordisburgo, detalhes do trabalho na roça, da fala do povo, do comércio na cidade, das caçadas, dos hábitos dos animais e dos tipos de planta. 
Embora sua obra fosse ficcional, os informes ajudavam a compor o cenário. 
Os pedidos se intensificaram no começo dos anos 1950, quando Guimarães Rosa escrevia simultaneamente seus dois livros mais importantes: Corpo de baile e o romance Grande sertão: veredas. “Preciso de explorar mais o senhor, que a mina é ótima”, afirmou para o pai.

Para seus livros, Guimarães Rosa trabalhava como um escritor-pesquisador. 
Reuniu milhares de páginas com anotações das duas viagens que fez pelo sertão, trechos de livros de filósofos e escritores clássicos, recortes de jornal, guias de botânica e agricultura. 
Num caderno específico, transcreveu trechos inteiros das cartas de Florduardo. 
“Ele reunia tudo e fazia uma reelaboração da realidade em sua ficção, a marca de todo grande artista”, diz a professora Sandra Vasconcelos, curadora do acervo do escritor na USP. 

Todas as cartas enviadas por Florduardo têm anotações e grifos do filho. “Aos poucos, serão, todas elas, aproveitadas nos meus livros”, escreveu o escritor ao pai. 
Em julho de 1956, ele enviou a Florduardo um volume do recém-lançado Corpo de baile, com uma carta. Nela, refere-se às contribuições do velho: “Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu naquelas cartas e notas, extremamente valiosas para mim”.

Encontrar a mão de Florduardo nos livros do filho não é um trabalho simples. 
Como João reelaborava os textos e unia mais de uma referência na mesma passagem, a relação não é óbvia. 
Vilma Guimarães Rosa diz que partiu de uma história do avô, de uma pessoa real que viveu perto de Cordisburgo, a inspiração para a personagem Diadorim, de Grande sertão: veredas
Mas nos estudos de Guimarães Rosa também aparecem anotações sobre o mito da donzela guerreira, a mulher que se veste de homem para guerrear, recorrente em várias culturas. 
O “causo” de Florduardo pode ter se somado à referência clássica. “Meu avô era um grande contador de história. Quando meu pai recebia uma carta dele em Paris era uma festa. Líamos em voz alta e comentávamos”, diz Vilma.

O uso mais direto das informações de Florduardo aparece nas descrições de lugares, plantas e tipos humanos. 
O pai forneceu o nome da folha-miúda, planta cujo galho é usado em Grande sertão: veredas para os jagunços assarem carne no espeto. 
Da correspondência surgiram nomes de personagens como Sia Cota, do conto “Buriti”, e Juca Saturnino, do conto “O recado do morro” – que inclui também um frade chamado Florduardo. 
Tipos reais de Cordisburgo ajudaram na composição dos personagens fictícios de Guimarães Rosa. 
A contadora de histórias Dona Geromina, que o pai descreve numa das cartas, parece muito Joana Xaviel, de Uma estória de amor, também de Corpo de baile
A professora da PUC-Rio Marília Rothier, especialista no autor, identifica ainda a relação entre a descrição do Tio Inocêncio e o comportamento do personagem Catraz, do conto “O recado do morro”.

A maioria dos causos que Florduardo contou nas cartas, no entanto, permaneceu inédita. 
Num deles, o pai descreve um costume de famílias pobres da zona rural de Cordisburgo, ao transportar seus mortos para o cemitério. 
Os corpos eram colocados em redes suspensas por uma vara que duas pessoas carregavam. O cortejo até a cidade era regado a cachaça. Mas, se o fardo parecesse pesado demais, dizia-se que o morto estava com “pesar de caminhar para a sepultura”. 
Colocava-se o cadáver no chão e todos davam nele uma surra de vara. Depois da catarse, a família prosseguia, acreditando ter deixado o cadáver mais leve. 
Por vezes, Florduardo era incumbido de organizar um enterro para alguma família que morava longe. Providenciava velas, caixão, padre e atestado de óbito. Como, na época, muitos passavam a vida descalços, Seu Fulô também arrumava sapatos. Buscava em seus estoques calçados encalhados ou fora de moda. Cunhou-se um jargão na região para designar os sapatos fora de uso, o “sapato de defunto”.

Apesar do desejo de aproveitar as anotações do pai em livros futuros, Guimarães Rosa morreu de forma súbita aos 59 anos. 
Florduardo vinha lutando contra um câncer na laringe. Morreu três meses depois de perder o filho.



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Por que as pessoas falam - Eliane Brum



Por que as pessoas falam
Eliane Brum - 

Uma vez passei dez dias num retiro de meditação vipassana, no interior do Rio de Janeiro, para fazer uma reportagem para ÉPOCA. 
Havia muitas regras. Uma delas era o silêncio. Por dez dias era proibido falar. 
Também devíamos evitar olhar para as outras pessoas. O objetivo era silenciar a mente até que não houvesse nenhum ruído também dentro de nós. 
Foi uma experiência fantástica, que me mudou para sempre. Nunca antes estive tão em mim. 
E nunca depois voltei a estar.

O silêncio e um progressivo mergulho interno, em vez de me alienar do mundo, me conectaram a ele de um modo até então inédito para mim. 
Eu sentia cada segundo, por que eles demoravam a passar. Percebia o vento e as nuances das cores do céu e das folhas das árvores em detalhes. Olhava, cheirava, ouvia e tocava o mundo como se tudo fosse novo. Cada centímetro de terra era capaz de me ocupar por minutos. 
Sem palavras, a realidade me alcançava com mais força. 
Finalmente eu não apenas compreendia, mas vivia a poesia de Alberto Caeiro: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”.

Antes que alguém tenha ideias, experimentei tudo isso sem nenhuma droga. Nenhuma mesmo. 
Não podíamos tomar álcool, fumar ou ingerir qualquer medicamento, nem mesmo aspirina. 
Minha droga era a lucidez. Naqueles dez dias, ouvi com mais clareza a mim mesma. E passei a escutar melhor o mundo em que vivia. Senti que finalmente estava no mundo. 
Eu era.

No décimo dia, voltamos a falar. O retiro acabaria no dia seguinte e precisávamos nos preparar para retornar a uma realidade cotidiana de ruídos e demandas excessivas. 
Lembro que eu não queria falar. 
Fiquei assustada quando todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. 
Percebi que a maioria do que se dizia nunca deveria ter sido dito. Sobrava.

Uma parte eram fofocas que haviam sido guardadas por dias. E que poderiam ter ficado impronunciadas para sempre. 
Percebi, principalmente, que depois de dez dias de silêncio muitas de nós não queriam ouvir. Só falar. Poucas eram aquelas que realmente desejavam escutar a experiência da outra, a voz da outra. A maioria só queria contar da sua. Não tinham sentido falta de outras vozes, apenas do som da sua.
Dez dias de silêncio não tinham sido suficientes para acabar com nossa surdez à voz alheia.

A reportagem foi publicada, com o título de “O inimigo sou eu”. 
Eu segui, guardando em parte o que aprendi lá. E tenho sentido falta daqueles dez dias de silêncio, agora que aumenta em níveis quase insuportáveis a poluição sonora dentro e fora de mim.

Acho que nunca escutamos tão pouco. E talvez por isso nunca fomos tão solitários. 
Quando faço palestras sobre reportagem, os estudantes de jornalismo costumam perguntar o que devem fazer para se tornarem bons repórteres. 
Minha resposta é sempre a mesma: escutem. 
Acredito que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta. Não apenas para ser um bom jornalista, mas para ser uma boa pessoa. 
Escutar é mais do que ouvir. Como repórter e como gente esforço-me para ser uma boa “escutadeira”.

É a escuta que nos leva ao mundo. E é a escuta que nos leva ao outro. 
Quando não escutamos, nos tornamos solitários, mesmo que estejamos no meio de uma festa, falando sem parar para um monte de gente. 
Condenamo-nos não à solidão necessária para elaborar a vida, mas à solidão que massacra, por que não faz conexão com nada. 
Não escutamos nem somos escutados. Somos planetas fechados em si mesmos. Suspeito que essa é uma época de tantos solitários em grande parte pela dificuldade de escutar.

Basta observar. As pessoas não querem escutar, só querem falar. 
Depois de muita observação, classifiquei cinco tipos básicos de surdos. 
Há aqueles que só falam e pronto. Emendam um assunto no outro. 
Fico prestando atenção para detectar quando respiram e não consigo. Acho que inventaram um jeito de falar sem respirar. E ganhariam mais dinheiro se entrassem em algum concurso de tempo sem oxigênio embaixo d’água. Aí, pelo menos, ficariam quietas.

Existem aqueles que falam e falam e, de repente, percebem que deveriam perguntar alguma coisa a você, por educação. Perguntam. Mas quando você está abrindo a boca para responder, já enveredaram para mais algum aspecto sobre o único tema fascinante que conhecem: eles mesmos.

Há aqueles que fingem ouvir o que você está dizendo. Você consegue responder. Mas, quando coloca o primeiro ponto final, percebe que não escutaram uma palavra. De imediato, eles retomam do ponto em que haviam parado. E não há nenhuma conexão entre o que você acabou de dizer e o que eles começaram a falar.

Existem aqueles que ouvem o que você diz, mas apenas para mostrar em seguida que já haviam pensado nisso ou que sabem mais do que você, o que é só mais um jeito de não escutar.

Há ainda os que só ouvem o que você está dizendo para rapidamente reagir. 
Enquanto você fala, eles estão vasculhando o cérebro em busca de argumentos para demolir os seus e vencer a discussão. Gostam de ganhar. 
Para eles, qualquer conversa é um jogo em que devem sempre sair vitoriosos. E o outro, de preferência, massacrado. Só conhecem uma verdade, a sua. E não aprendem nada, por acreditarem que ninguém está à altura de lhes ensinar algo.

É claro que há um mix das várias espécies de surdos. E devem existir outras modalidades que você deve ter detectado, e eu não. 
O fato é que vivemos num mundo de surdos sem deficiência auditiva. E uma boa parte deles se queixa de solidão.

É um mundo de faladores compulsivos o nosso. Compulsivos e auto-referentes. 
Não conheço estatísticas sobre isso, mas eu chutaria, por baixo, que mais da metade das pessoas só falam sobre si mesmas. Seu mundo torna-se, portanto, muito restrito. E muito chato. 
Por mais fascinantes que possamos ser, não é o suficiente para preencher o assunto de uma vida inteira.

Num ótimo artigo, intitulado Escutatória, o escritor Rubem Alves diz: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular”.

Quando não escutamos o mundo do outro, não aprendemos nada. 
Acontece com o chefe que não consegue escutar de verdade o que seu subordinado tem a dizer. A priori ele já sabe – e já sabe mais. 
Assim como acontece com a mulher que não consegue escutar o companheiro. 
Ou o amigo que não é capaz de escutar você. E vice-versa.

Tornamo-nos muito sozinhos no gesto de não escutar. Em Revolutionary Road (Sam Mendes, 2008), traduzido para as telas de cinema do Brasil como “Foi apenas um sonho”, a cena final é a síntese dessa relação simbiótica entre surdez e solidão. Não a surdez causada pela deficiência auditiva, mas essa outra de que falamos, esta que é mais triste por ser escolha. 
Quem viu, não esqueceu. Quem não viu, pode pegar o dvd em qualquer locadora. Essa cena final vale por alguns milhares de palavras.

Sempre pensei muito sobre por que as pessoas falam tanto – e por que têm tanta dificuldade de escutar. 
Qual é a ameaça contida no silêncio? 
O que temem tanto ouvir se calarem a sua voz por um momento? 
Por que precisamos preencher nosso mundo – inclusive o interior – com tantos ruídos?

Acho que cada um de nós poderia parar alguns minutos e fazer a si mesmo estas perguntas.

Percebo também que há uma pressão para que nos tornemos falantes. 
Ser falante supostamente seria uma vantagem no mundo, especialmente no mundo do trabalho. Mesmo que você não diga nada de novo, mesmo que você repita o que o chefe disse com outras palavras. 
Mas falar, qualquer coisa, é marcar presença, é uma tentativa de garantir-se necessário. E ser quieto, calado, é visto como um tipo invisível de deficiência. Como se lhe faltasse algo, palavras. 
Mas será que as palavras estão ali, nessa falação desenfreada? Ou melhor, será que quem fala está realmente naquele discurso? Tenho dúvidas.

Por qualquer caminho que se possa pensar, me parece que o silêncio soa ameaçador. Em parte, pelo que ele pode dizer sobre nós. 
Enchemos nossa vida de barulho, da mesma forma que atulhamos nossos dias de tarefas, com medo do vazio. Tarefas em uma agenda cheia constituem outro tipo de ruído. E o vazio também é uma forma de silêncio.

Em rasgos de intolerância, achava que os falantes compulsivos eram apenas muito chatos e muito egocêntricos. Que as pessoas não escutavam – o silêncio e o outro – por prepotência. Mas acredito que é bem mais complicado que isso.

Há dois livros muito interessantes que pensam sobre a escuta. A Hermenêutica do Sujeito, de Michel Foucault (Martins Fontes), e Como Ouvir (Martins Fontes), um livrinho pequeno e precioso de Plutarco. 
Eles mostram que escutar é se arriscar ao novo, ao desconhecido. Na audição, mais do que em qualquer outro sentido, a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advêm e que podem surpreendê-la. 
Ao ouvir, nos arriscamos a sermos surpreendidos e abalados pelo que ouvimos, muito mais do que por qualquer objeto que possa nos ser apresentado pela visão e pelo tato.

Faz muito sentido. As pessoas não escutam porque escutar é se arriscar. É se abrir para a possibilidade do espanto. Escancarar-se para o mundo do outro – e também para o outro de si mesmo.

Escutar é talvez a capacidade mais fascinante do humano, por que nos dá a possibilidade de conexão. Não há conhecimento nem aprendizado sem escuta real. Fechar-se à escuta é condenar-se à solidão, é bater a porta ao novo, ao inesperado.

Escutar é também um profundo ato de amor. Em todas as suas encarnações. 
Amor de amigos, de pais e de filhos, de amantes. 
Nesse mundo em que o sexo está tão banalizado, como me disse um amigo, escutar o homem ou mulher que se ama pode ser um ato muito erótico. Quem sabe a gente não experimenta?

Escutar de verdade implica despir-se de todos os seus preconceitos, de suas verdades de pedra, de suas tantas certezas, para se colocar no lugar do outro. 
Seja o filho, o pai, o amigo, o amante. E até o chefe ou o subordinado. O que ele realmente está me dizendo?
Observe algumas conversas entre casais, famílias. Cada um está paralisado em suas certezas, convicto de sua visão de mundo. 
Não entendo por que se espantam que ao final não exista encontro, só mais desencontro. 
Quem só tem certezas não dialoga. Não precisa. 
Conversas são para quem duvida de suas certezas, para quem realmente está aberto para ouvir – e não para fingir que ouve. 
Diálogos honestos têm mais pontos de interrogação que pontos finais. E “não sei” é sempre uma boa resposta.

Escutar de verdade é se entregar. 
É esvaziar-se para se deixar preencher pelo mundo do outro. E vice-versa. 
Nesta troca, aprendemos, nos transformamos, exercemos esse ato purificador da reinvenção constante. 
E, o melhor de tudo, alcançamos o outro. 
Acredite: não há nada mais extraordinário do que alcançar um outro ser humano. Se conseguirmos essa proeza em uma vida, já terá valido a pena.
Escutar é fazer a intersecção dos mundos. Conectar-se ao mundo do outro com toda a generosidade do mundo que é você. 
Algo que mesmo deficientes auditivos são capazes de fazer.

*            *            *

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Adriano Dias - Crianças de porcelana

Crianças de porcelana: a geração criada sem anticorpos
Adriano Dias -  página 'Semema'


Seja por conta do crescente distanciamento da vida rural, dos processos de produção de tudo que nos cerca e consumimos para sobrevivermos, seja pelo ciclo paranoico de proteção à vida via espetacularização da violência, seja pela onda pornográfica da publicidade das empresas ávidas em lucrar com mais um nicho de mercado (e a lista de forças a essas que se somam é bem mais vasta), estamos vendo brotar uma geração de crianças bajuladas como príncipes indefesos, que guardam a centelha da preciosidade em cada gesto, troféus de seus pais, muito amados em selfies dos aniversários mês a mês de suas vidas, book completo e meias sempre limpas. 
E ai de quem ousar agredi-los, insultá-los, incapazes de reconhecer neles o milagre que carregam. Pobres crianças de porcelana…

Nos condomínios da vida urbana
cultivam-se crianças de porcelana
com chips subcutâneos
que quase brincam suas infâncias…
quase crianças
cujos pais correm aos seus encalços
antepondo aos passos
nuvens esterilizadas
e escondem as quinas, os rasgos,
as pontas mais finas,
num mundo de almofadas.
Gerenciada via satélite,
a geração de príncipes-cristais
cresce a sós,
ameaçada pela horda
do resto do mundo,
seus desiguais,
todos nós…
Fiz o poema acima após uma vivência social em que presenciei o desesperado zelo de algumas elegantes mães, com condição econômica para bancar o berço de ouro ao filho (raramente passa-se do primeiro) e o chão e as roupas e ouro salpicado ao seu redor, impedindo cada gesto que saísse o mínimo de sua zona de controle (cerca de 10 centímetros), e cujo pavor dos riscos que os pequenos corriam era legítimo, nada disfarçado. 
Cada toque na louça dos pequenos parece que produziria uma onda de calafrios na respectiva mãe.

A cena me escandalizou e soube por uma amiga que era comum, era a regra, é a forma como vêm sendo criadas muitas das crianças ricas que ela conhecia: príncipes.
Contudo, o poema já me incomodou enquanto escrevia, percebendo uma distinção evidente que não é verdadeira, como se o endeusamento perigoso das atuais crianças por seus respectivos pais fosse circunscrito às camadas de mais alta renda, um clichê ridículo, mas encontrei as fotos incríveis da russa Ksenia Usacheva (usadas para ilustrar o presente artigo) e não resisti ao jogo poético que compunham com o texto. 
Até porque houve o flagrante: ali estavam crianças crescendo com tapetes sendo colocados aos seus pés, espaguetes de espuma colados às quinas das mesas, assepsia extrema em um mundo alvíssimo. Senti pavor.

Mas vivencio o cotidiano de outras camadas sociais, inclusive da mais baixa (escola pública), onde presencio e ouço relatos de tantas mães que vêm à escola reivindicar a expulsão de um professor por ter cobrado seu filho, dado uma lição de moral por uma conduta indesejada, indisciplinada, por exemplo. 
Há poucos dias flagrei o caso de um grupo de mães que se articulavam para tentar exonerar uma professora que chamou seus filhos de “orelhudos”, termo usado sem a intenção de designar “burros” com raiva, mas uma bronca “faceira” para uma turma pela qual a docente tem muito carinho.

Pode-se até questionar a bronca, mas a inversão é grotesca, comprova o paradoxo educacional que estamos vivendo (sem encontrar saída): os pais não têm tempo para educar, ou força moral, tamanho medo em traumatizar os pequenos, pois trabalham e amam demais, portanto, precisam e cobram da escola uma ação formadora que capacite seus bebês, contanto que seus bebês não reclamem maus tratos em casa, o que passou (eles aprendem rápido) a ser qualquer ação do professor, diretor, instituição, que desagrade o pequeno acostumado ao principado. 

Quem é que cuida da criança?
Não posso deixar de lado meus conclassistas médios, com nossas contas sempre apertadas que agora ganharam o incremento das necessárias parcelas do estúdio de fotografia e do buffet para a festa infantil, para não ficar de fora do bonde da história, sem falar da obrigatoriedade de seguirmos o crescimento, passo a passo, de cada príncipe pelas mídias sociais.
Parece mesmo que a sociedade está avançando no sentido de aperfeiçoar a forma como os indivíduos crescem em seu seio, como são capacitados, estimulados. 
Questionar os modelos estabelecidos e identificar os abusos que vêm ocorrendo ao longo da história é a única forma de progredir na formação humana, que é o fim último da sociedade e suas instituições, mas ainda estamos testando os limites que podem ser mantidos, as balizas que serão usadas para determinar a mais sólida e eficiente educação e formação das crianças.

O custo, certamente, será de uma safra inteira de preciosidades frágeis, cujos corpos não estão podendo desenvolver as próprias defesas assim como suas personalidades. 

De um lado, os Pedros, Joões, Marias (nomes que esbanjam uma simplicidade não espelhada na conta dos cartões de crédito), de outro, os Greycyellys Tassianys, Victórias, Sharlennys (nomes que guardam a expectativa do brilho que certamente terão), todos sem anticorpos nem para as bactérias das comidas que caem no chão, nem, pior, para lidar com seus próprios erros, incapacidades e broncas da vida…


*            *            *

domingo, 13 de setembro de 2015

Hora da despedida - JOSÉ CASTELLO - Jornal O Globo

Ainda consigo me surpreender desagradavelmente com o que estamos presenciando em termos de leitura, cultura e 'informação'.
Há algum tempo venho me sentindo sempre mais isolada, apartada mesmo, desse mundo que se transforma com tamanha rapidez - não sei se para melhor, em que pese o desenvolvimento tecnológico. 
Esta notícia realmente representa o fim de uma tentativa para não sucumbir aos ataques gratuitos da ignorância coletiva avassaladora.
Poucos são os que se empenham em melhorar esses tempos de mediocridade e imediatismo.
José Castello é um deles. Seu texto, sempre atual, moderno no que tem de melhor essa palavra, nos direciona para longe do lugar comum, da estupidez e grosseria agora vigentes.

Resta-nos desejar-lhe mais sucesso ainda e pedir-lhe que nos informe onde poderemos encontrá-lo.
Sueli
**
Hora da despedida
por  José Castello - Jornal O Globo - Segundo Caderno - 12/09/2015 12:00


Chegou a hora de me despedir de meus leitores. 
Não é um momento fácil - nunca é. 
Mas ele se agrava porque, com o fechamento do "Prosa", incorporado ao "Segundo Caderno", desaparece um último posto de resistência na imprensa do sudeste brasileiro. 
Os suplementos de literatura e pensamento já não existem mais. Um a um, foram condenados e derrotados pela cegueira e pela insensatez dos novos tempos. 
Comandado pela vigorosa Manya Millen, o "Prosa" resistia como um último lugar de luta contra a repetição e a dificuldade de pensar com independência. Isso, agora, também acabou.

Nosso mundo se define pelo achatamento e pela degola. 
No lugar do diálogo, predominam o ódio e o desejo de destruição. 
No lugar da tolerância, a intolerância e a rispidez, quando não a agressão gratuita. 
É o mundo do Um - em que todos dizem as mesmas coisas, usando quase sempre as mesmas palavras.  Um mundo em que a verdade, que todos ostentam, de fato agoniza.

Nesse universo, a literatura se impõe como um reduto de resistência. 
A literatura é o lugar do diálogo, do múltiplo, da diferença. 
Não é porque gosto de Clarice que devo odiar Rosa. Não é porque amo Pessoa que devo desprezar Drummond. Ao contrário: na literatura (na arte) há lugar para todos.

Uma pena que o "Prosa" se acabe justamente em um momento em que nos sentimos espremidos por vozes que repetem, sempre, os mesmos ataques e as mesmas agressões. 
Nesse mundo de consensos nefastos e de clichês que encobertam a arrogância, nesse mundo de doloroso silêncio que se apresenta como gritaria, a literatura se torna um lugar cada vez mais precioso. Nela ainda é possível divergir. Nela ainda é possível trocar ideias com lealdade e dialogar com franqueza.

Sabendo que o diálogo, em vez de sinal de fraqueza, é prova de força. Lá se vai o "Prosa" com tudo o que ele significou de luta e de aposta na criação.

A meus leitores, que me acompanharam lealmente durante mais de oito anos, só posso dizer obrigado. 
E dizer, ainda, que conservem a coragem porque a pluralidade e a liberdade vencerão o escândalo e a cegueira. 

Apesar de tudo o que se diz e de tudo o que se destrói, ainda acredito muito no Brasil. É com essa aposta não apenas no futuro, mas sobretudo no presente, que quero me despedir de minha coluna e encerrar esse blog. 

Aos leitores, fica a certeza de que certamente nos encontraremos em outros lugares. 
Nem a loucura do nazismo, com suas fogueiras de livros, conseguiu destruir a literatura. 
Não tenho dúvidas também: nesse mundo de estupidez e insolência, ela não só sobreviverá, como se tornará cada vez mais forte.


*            *            *

José Castello é escritor e jornalista. 
Autor, entre outros, de “Ribamar”, Prêmio Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão” (Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. 
É Mestre em Comunicação pela UFRJ

domingo, 6 de setembro de 2015

Poucos merecem ver nossas lágrimas - Obvious Magazine

"Ninguém merece as tuas lágrimas, mas quem quer que as mereça não te vai fazer chorar". 
(Gabriel Garcia Márquez)


Poucos merecem ver nossas lágrimas
Marcel Camargo - em 'Obvious Magazine - Recortes'


Um dos melhores conselhos que nossos pais nos transmitem, quando somos pequenos, e que deveríamos carregar pelo resto de nossas vidas é: “engole esse choro!”. 
Embora, na época, eles pudessem visar a outros objetivos, em contextos específicos, ao nos mandar parar de chorar, mesmo assim já estavam nos preparando para que nos tornássemos pessoas mais fortes, seguras, capazes de enfrentar as rasteiras que a vida não cansaria de nos dar desde então, sem sucumbirmos às frustrações e perdas, sem nos tornarmos vulneráveis diante de quem está à espreita, esperando para usar nossas fraquezas contra nós e em proveito próprio.

Somos humanos, sim, e sensíveis, suscetíveis a momentos de fraqueza emocional e tristeza, melancolia. 
Chorar é preciso, pois as lágrimas recobram as energias, minimizam o mal estar, aliviam o sufoco, limpam as impurezas da alma, desafogam o coração. 
Mas, ao mesmo tempo, as lágrimas expõem nosso lado mais vulnerável, nossa tão característica carência humana, e por isso mesmo podem ser vistas como fraqueza por quem, naquele momento, não quer - nem nunca será capaz de - ajudar ou, pior ainda, por quem usará aquilo contra nós mesmos, oportunamente. 
Então, dependendo de onde e com quem estiver, engole esse choro!

Ao ouvir “eu não te amo mais”, "estou partindo", enquanto o outro arruma as malas para sair de casa. Nesse momento, ele já decidiu viver a própria vida longe de nós, já decidiu que tudo o que oferecíamos não bastava, não foi suficiente. Provavelmente já encontrou quem aparentemente ofereça o que ele esteja querendo e está forte o suficiente, visto ter tomado uma decisão. 
Assim, nossa fraqueza, se exposta, somente irá aumentar, enquanto o outro se fortalece ainda mais, bem ali na nossa frente. Engole esse choro!

Quando o chefe, um colega de trabalho ou um cliente elevam a voz, são deseducados, ríspidos e aparentemente injustos. 
Às vezes explodimos mesmo, justamente com quem não merece, além de existirem pessoas que não sabem agir de outra forma que não esbravejando indelicadamente, pois parecem desconhecer mínimas regras de convivência. Por serem incapazes de se colocar no lugar do outro, não entenderão nossos sentimentos, tampouco mudarão seu jeito de ser. 
Poderemos nos colocar no momento certo e deixar claro que aquela atitude nos desagrada, demonstrando firmeza - sempre com ar seguro, nunca com voz trêmula, jamais diminuídos em nossa dignidade. Engole esse choro!

Se for surpreendido por uma atitude que nunca esperaria do amigo em quem tanto confiava, sentindo-se traído, exposto, aquebrantado, humilhado. 
Você foi iludido e usado, mas não foi ingenuidade sua e sim antiética alheia. 
Distancie-se, o mais longe possível; por mais que doa ter que tirar de nossas vidas alguém de quem tanto gostávamos, é necessário fazê-lo, sem hesitação, sem titubear - sofrer, só se bem longe dele. Engole esse choro!

Escutando o que jamais esperava dos filhos, decepcionando-se com as atitudes e comportamento deles, percebendo que não parecem se sentir bem perto de você. 
No calor das emoções, eles dizem que nos odeiam, que somos os piores pais do mundo. Irão, em certo momento, se envergonhar de nós na frente dos amigos, irão querer que não apareçamos em seus quartos e não compartilharão nada de suas vidas conosco. 
Tudo isso passará e retornarão ao nosso abraço que tanto os conforta, desde pequeninos. Porque já fomos e sempre seremos seu porto-seguro, o alento revigorante quando precisarem - não esmoreçamos. Engole esse choro!

Enquanto segura as mãos de quem ama e está doente, sofrendo dores, passando por tempestades da alma, enfrentando algum revés aparentemente sem solução. 
Quem sofre quer nada mais do que alguém que o entenda e mantenha-se forte, porque as próprias forças esvaíram-se e a segurança alheia então é tudo a que se pode agarrar, para não ruir definitivamente por dentro. 
Mantenhamos as mãos firmes, as palavras serenas e os olhos secos, mas cheios de esperança. Engole esse choro!

No momento em que se despede do filho que vai procurar o seu próprio lugar no mundo. É preciso deixá-los ir, aconselhando-os a não olhar para trás, a não titubear. 
Todo mundo merece se encontrar a seu jeito, experimentando novos lugares, novas companhias, novos amores. É preciso ajudar a fazer as as malas e a abrir as perspectivas de vida dos filhos, incentivando-os ao descobrimento de si mesmos, não importa se do outro lado do globo. 
Temos que acenar firmes e altivos durante a despedida, pois é disso que eles precisarão enquanto se desprendem da zona de conforto tão nociva ao aprimorar-se contínuo a que todos temos direito. Engole esse choro!


Ao contrário do que possa parecer, não se trata, aqui, de se tornar insensível, de endurecer o coração, tampouco de abafar ou enganar os próprios sentimentos. 
Somos sujeitos a momentos de tristeza e escuridão, em que as lágrimas são sempre bem vindas. 
No entanto, poucos merecem partilhá-las e nos verem perdidos em nossas fraquezas, pois em nada ajudarão, nem ao menos tentarão nos estender as mãos. 
Ninguém merece desnudar-se física e emocionalmente em frente a quem não se entregará de volta verdadeiramente. 
Ninguém haverá de ser menosprezado enquanto junta seus cacos emocionais. 
Da mesma forma, ninguém haverá de receber lágrimas quando estiver pedindo força e motivação. Portanto, tranque as portas e feche as janelas antes de chorar.

Sempre será necessário cair ao chão de nossas tristezas e fracassos, gritar a revolta da incompreensão e maldade alheias, encarar as colheitas de nossas escolhas equivocadas, atravessar a escuridão da saudade por quem não mais voltará. 
Mas é preciso que quem esteja ao nosso lado, nesses momentos, mostre-se sinceramente disposto a nos resgatar de volta com vida e fortalecidos. 
Alguém que conhece e tem certeza de que somos muito mais do que pensamos ser, que venha correndo quando precisarmos e não saia de nosso lado enquanto não secarem nossas lágrimas. 
São poucos os que merecem assistir ao nosso pranto, sem fazer mau uso disso tudo.

Ademais, no fim da vida, muito provavelmente estaremos contando somente com nós mesmos e então saberemos lidar com nossas dores sem precisar de ninguém mais. 
Enfim, lembremos sempre aquele conselho ouvido em nossa infância, porque, em certos lugares e diante de certas pessoas, ou engolimos o choro, ou o mundo nos engole.

*               *               *

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

ADRIANO DIAS - Quero uma palavra...

Da página Semema -facebook



Quero uma palavra de fazer sonhar.
Dá-me, poeta, 
uma choupana discreta 
à beira do lago,
com névoa densa de alvorada
pairando, em sentinela,
convocações a melancolias escorridas
como as gotas suadas na janela,
ali onde habita a espera, 
mais nada...

Empresta-me um amor ardente, 
alcaloide palavra,
daqueles que se constroem 
por carnes delgadas
de uma musa incoerentemente bela,
fazendo que não sabe de nada
daquele jeito que reivindica o desejo
e foge
com suas curvas, rendas, seda e sorriso raro,
deixando o rastro da necessidade de lhe invadir
sem poder, claro...

Rapte-me à sala branca, poema, 
sem paredes, teto ou chão, 
o nada em construção
onde nascem as concepções,
pré e pós de todas as coisas,
que carrega, 
sem um símbolo sequer,
a significação interna mais pura, 
última, definitiva,
e, pela letra, 
eleva a vida...

Convence-me, artista, 
das verdades que tu crias
como entorpecente recreio,
essas milagrosas fantasias
que tanto existem quando leio...

*        *        *

Adriano Dias

Foto de Ian David Soar

sábado, 1 de agosto de 2015

Pensamento e solidão... - Bruna Cosenza em OBVIOUS

Por que pensar te torna um ser mais solitário
Bruna Cosenza - em "Obvious - literatura"

Quando Nietzsche Chorou”, obra de Irvin D. Yalom, traz grandes nomes da história como Josef Breuer, Sigmund Freud e o meu preferido: Friedrich Nietzsche. 
O autor mescla fatos reais e ficção com o intuito de explorar o nascimento da psicanálise por meio de encontros entre Breuer e Nietzsche que nunca aconteceram realmente.

O filósofo alemão sofre de uma crise existencial e depressão suicida que o atormentam profundamente, enquanto Breuer, que tem a missão de ajudá-lo, também está passando por algumas angústias pessoais. 
Dentre todos os temas discutidos ao longo do romance, o que mais me chamou a atenção foram as características de Nietzsche, que o tornam um homem completamente distante e solitário. 
Uma das falas do filósofo ilustra bem como ele se sente: “Às vezes, enxergo tão profundamente a vida que, de repente, olho ao redor e vejo que ninguém me acompanhou e que meu único companheiro é o tempo.

Por ser tão fechado, Nietzsche não podia saber que estava sendo tratado por Breuer, pois a ideia de ter alguém invadindo sua intimidade o assusta completamente. 
A transformação ao longo das sessões é que Breuer lentamente se torna o paciente quando Nietzsche começa a ajudá-lo em relação aos seus tormentos e fantasias sexuais com uma mulher que não é a sua esposa. 
Posteriormente, o filósofo começa a confiar no psicanalista a ponto de se abrir como nunca havia feito antes.

O interessante é a forma como Nietzsche lida com a vida. 
Completamente fechado e sem conseguir estabelecer fortes laços devido a um trauma com uma mulher no passado, é um homem totalmente sozinho. 
E um questionamento que logo me veio foi: por que pessoas pensantes e reflexivas como ele costumam ser tão solitárias?

Normalmente, quem vive numa espécie de superfície tem mais facilidade de interagir com o mundo, pois seus dramas não tem a mesma magnitude daqueles vivenciados por um Nietzsche. 
E não entenda viver na superfície como uma crítica, pois é apenas uma das milhares de formas que o homem encontra para enfrentar sua jornada. 
Existem diferentes graus de se encarar a vida. Alguns mascaram as obscuridades justamente pelo medo que tem de enfrentar a dor. Outros, no entanto, transitam pela vida sem se darem conta da sua enorme teia de complexidades.

Entender e aceitar todas as dores da existência dá muito trabalho. 
Pensar resulta em incertezas, falta de respostas e, consequentemente, em angústias. 
Quem sofre com tudo isso é a psique, que de tão atormentada, pode posteriormente afetar o comportamento e a personalidade. 
Nietzsche diz enxergar a vida de forma tão profunda que se sente completamente sozinho. 
Com quem ele discutiria suas questões provenientes de uma visão tão reflexiva sobre a vida? 
Quem não tem esse mesmo nível de profundidade também não tem capacidade de viver com pessoas como Nietzsche.

Josef Breuer é contaminado por tantas reflexões de Nietzsche que em determinado ponto do romance não identifica mais nenhum sentido para sua vida. 
Aquele rapaz agora envelhecido atingiu o ponto da vida em que não consegue mais ver seu sentido. Sua razão de viver – minha razão, minhas metas, as recompensas que me impeliram pela vida - se afigura absurda agora, quando medito em como busquei besteiras, em como desperdicei a única vida que possuo, um sentimento terrível de desespero me domina”, relata o psicanalista. 

Chegar nesse extremo é realmente desesperador, podendo resultar em crises e depressões profundas como as vivenciadas por Nietzsche.

Tendo em vista pessoas pensantes como Nietzsche, é possível fazer uma relação com a sociedade pós-moderna, permeada por indivíduos que têm extrema dificuldade de ficarem completamente sozinhos. 
Hoje, com o avanço tecnológico, as pessoas têm o costume de estarem 24 horas por dia conectadas e em momentos em que seria essencial a solidão para reflexão, rapidamente recorrem a um aparato tecnológico, uma mensagem a um amigo ou uma foto que consiga likes o suficiente com o objetivo de suprir essa carência e mal-estar. 
Estar realmente sozinho chega a ser uma raridade de poucos atualmente.

Essas pessoas que dificilmente possuem um momento de reflexão solitário, diferente dos Nietzsches, parecem ser mais leves, despreocupadas e até mais felizes - talvez por mascararem suas angústias ou simplesmente por nunca terem se deparado com elas. 
Refletir sempre vai resultar em dor e descontentamento. 
Quem pensa, se dá conta de que muita coisa na vida não tem sentido nenhum e pensar mais e mais pode só aumentar a agonia. 
É por esse motivo que os Nietzsches que andam por aí muitas vezes são vistos como pessoas amarguradas e estranhas. 
Na verdade, encarar as verdades da vida torna esses indivíduos mais críticos, pois continuam numa busca incessante por respostas que podem nunca alcançar. 
Dessa forma, se isolam da maioria por se sentirem completamente incompreendidos e desencaixados num mundo onde parece que ninguém os acompanha.

O equilíbrio é essencial. Ser um Nietzsche constantemente pode gerar muito sofrimento – como pode ser percebido no romance –, mas ser incapaz de ter um momento solo é um erro muito comum hoje em dia e que passa despercebido.

Você que está lendo isso, quando foi a última vez que se sentiu um Nietzsche? Um peixe fora d’água? 
Quando foi a última vez que passou um dia inteiro realmente sozinho? Sem recorrer a ninguém além de si mesmo quando bateu uma agonia, uma dificuldade ou simplesmente uma tristeza...

O mundo pós-moderno está carente de verdadeiras pessoas pensantes, que saem da caixa sem medo de explorarem as profundezas mais escuras desse oceano que é a vida.

Sofrer dignifica, faz crescer... Mas sofrer em excesso leva ao desespero, à dor incontrolável. 
Portanto, pensar é preciso, mas ponderar os pensamentos é obrigatório.

Quem pensa de mais, vive de menos. E por mais que eu admire os Nietzsches que ainda existem por aí - solitários e reflexivos -, tenho certeza de que quem trilha este caminho tem uma árdua tarefa que pode resultar na mesma conclusão de Nietzsche: “Penso que sou o homem mais solitário do mundo.”


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