quarta-feira, 31 de agosto de 2011

JOSH GROBAN - Remember When It Rained

LEITURAS E RELEITURAS MINHAS...


Em fase de melhoramentos na casa (incluindo reformas com obra de alvenaria, pedreiros, ai, ai...)  tenho aproveitado para vasculhar o que está guardado há tempos e fazer uma "limpeza geral": jogar fora o que não tem mais utilidade ou sentido em continuar guardado - livros, escritos, papéis, essas coisas.

Com isso, encontrei livros que desejo reler.  Um deles é "A montanha da alma" (que título!) de Gao Xingjian (que nome difícil!), escritor chinês Prêmio Nobel de Literatura em 2000.
Segundo a resenha do jornalista Flávio Carneiro, esse autor se recusou a usar seus livros como forma de propaganda da Revolução Cultural de seu país.  Sofreu, por isso, forte censura e acabou refugiando-se na França.

Esse romance - A montanha da alma - é um engenhoso cruzamento de dois relatos de viagem por várias regiões da China: o do próprio narrador e o de um outro personagem, ao qual o narrador se refere como "você", o que já propõe uma aproximação mágica com o leitor.

Há um sentimento de desconforto existencial no narrador ao tratar da diluição de valores; uma dilaceração interior e mesmo perda da identidade. O diálogo com o leitor é permanente. Aliás, penso que esse personagem poderia ter saído de um romance de Jean-Paul Sartre, tal o ceticismo em alguns momentos, embora haja também descrições primorosas como a do céu visto por uma janela, do musgo às margens de um lago, da neve na montanha e tudo sinalizando a presença de Deus, o que não acontece na escritura de Sartre.
O universo das personagens é bem variado: são traçados perfis de artesãos, camponeses, prostitutas, monges, soldados e pequenos comerciantes. É do que me lembro.
Pois bem, folheando o tal livro ao acaso, uma página me mostra um trecho que diz o seguinte:

(...) "Pela janela, vejo sobre a faixa de sol coberta de neve uma minúscula rã. Ela pisca um olho e arregala o outro. Sem se mexer ela me observa.  Compreendo que se trata de Deus."

Separei o livro para posterior releitura, pois acredito que valha a pena. No momento, prossigo com "Grande Sertão: Veredas" que tem me aberto uma outra dimensão no entendimento.

Li em algum lugar que 'livros são como cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas',  e concordo. Há momentos em que parece que o autor está falando diretamente com a gente. 
Que coisa... 
*            *           *
Sueli, agosto 2011

terça-feira, 30 de agosto de 2011

CARTOLA por DRUMMOND

Esta crônica é um tributo ao compositor mangueirense Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), e tem uma história curiosa. Foi publicada no Jornal do Brasil em 27/11/1980, três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não Falam".
Ao saber que Cartola estava doente, Drummond decidiu escrever-lhe uma homenagem. "Em seus derradeiros momentos de lucidez, em sua cama no hospital, Cartola ainda pôde lê-la, transformando-a em sua última felicidade", conta o jornalista e pesquisador musical Arley Pereira, autor do livro Cartola – 90 Anos.
Cartola, no moinho do mundo

Carlos Drummond de Andrade

Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.

"Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio."

Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de Sílvio Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.

A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.

Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:

Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.

Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.
**
Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.

Jornal do Brasil, 27/11/1980


*            *            *

MURIEL BARBERY - "A elegância do ouriço"

Relendo "A elegância do ouriço", de Muriel Barbery, detenho-me num trecho em que a personagem Renée Michel  faz a descrição cuidadosa de uma pintura holandesa do Século XVII - uma natureza morta de Pieter Claesz (1590-1661).
Vamos conferir:


De ouro fosco

(...) levo como que por descuido o olhar para aquele raio de luz que bate num pequeno quadro de moldura de madeira escura.
(...)
É uma natureza morta que representa uma mesa arrumada para uma refeição leve, de ostras e pão. No primeiro plano, dentro de um prato de prata, um limão semidescascado e uma faca de cabo cinzelado.  No fundo, duas ostras fechadas, um brilho na concha, cujo nácar é visível, e um prato de estanho que contém, provavelmente, pimenta.  Entre os dois, um copo deitado, um pãozinho de miolo branco à mostra, e, à esquerda, um grande copo semicheio de um líquido pálido e dourado, arredondado como uma cúpula invertida e com o pé largo e cilíndrico ornamentado de contas de vidro. A gama cromática vai do amarelo ao ébano. O fundo é de ouro fosco, um pouco sujo."
(...)

De onde vem o maravilhamento que sentimos diante de certas obras? A admiração nasce com o primeiro olhar, e, se descobrimos depois, na paciente obstinação que demonstramos em encontrar suas causas, que toda essa beleza é fruto de um virtuosismo que só se detecta escrutando o trabalho de um pincel que soube domar a sombra e a luz e restituir, magnificando-as, suas formas e texturas - jóia transparente do vidro, grão tumultuado das conchas, aveludado claro do limão -, isso não dissipa nem explica o mistério do primeiro deslumbramento. "
*            *            *
Muriel Barbery, "A elegância do ouriço", p. 213-216

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

RUBEM ALVES - A complicada arte de ver


A complicada arte de ver
Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso -  porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...
*            *            *

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

CECÍLIA MEIRELES - Canção do sonho acabado

Canção do Sonho Acabado
Cecília Meireles

Já tive a rosa do amor
- rubra rosa, sem pudor.
Cobicei, cheirei, colhi.
Mas ela despetalou
E outra igual, nunca mais vi.

Já vivi mil aventuras,
Me embriaguei de alegria!
Mas os risos da ventura,
No limiar da loucura,
Se tornaram fantasia...

Já almejei felicidade,
Mãos dadas, fraternidade,
Um ideal sem fronteiras
- utopia! Voou ligeira,
Nas asas da liberdade.

Desejei viver. Demais!
Segurar a juventude,
Prender o tempo na mão,
Plantar o lírio da paz!
Mas nem mesmo isto eu pude:

Tentei, porém nada fiz...
Muito, da vida, eu já quis.
Já quis... mas não quero mais...

*            *            *

JOAQUIM CARDOZO - O meu canto é de sol


O MEU CANTO É DE SOL
Joaquim Cardozo - poeta pernambucano

O meu canto é de sol. . .
É de verão florindo
Os jardins tropicais:
De túnicas vermelhas
Flamboyants cardeais!

O meu canto é de sol. . .
É de manhã nascente
Em profuso verão:
– Púrpuras de jambeiros
Atiradas no chão!

É de sol, é de sal
Desse mar nordestino
Suas cores abrindo
Como um pavão!

O meu canto é de sol!
*        *        *

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

JORGE LUÍS BORGES - Não és os outros


Hoje, 24 de agosto é a data do 112º aniversário de Jorge Luís Borges, poeta e escritor argentino -  Buenos Aires, 24/08/1899 - Genebra, 14/6/1986


Não és os Outros
Jorge Luís Borges

Não há-de te salvar o que deixaram

escrito aqueles que o teu medo implora; 
não és os outros e encontras-te agora
no meio do labirinto que tramaram
teus passos. Não te salva a agonia
de Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
naquele jardim, ao declinar o dia.
Também é pó cada palavra escrita
por tua mão ou o verbo pronunciado
pela boca. Não há pena no Fado
e a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
tempo. E és cada solitário instante.

Jorge Luis Borges, in "A Moeda de Ferro" / Tradução de Fernando Pinto do Amaral
*            *            *

Instantes
Jorge Luís Borges

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiênico.

Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da vida, claro que tive momentos de alegria. Mas se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.

Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas já viram, tenho oitenta e cinco anos e sei que estou morrendo.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

MÁRIO QUINTANA - Poema transitório


Poema Transitório
Mário Quintana

Eu que nasci na Era da Fumaça - trenzinho
vagaroso com vagarosas
paradas
em cada estaçãozinha pobre
para comprar
         pastéis
         pés-de-moleque
         sonhos
- principalmente sonhos!
porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
elas suspirando maravilhosas viagens
e a gente com um desejo súbito de ficar ali morando
sempre... Nisto,
o apito da locomotiva
e o trem se afastando
e o trem arquejando
é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida
é urgente!
... no entanto
eu gostava era mesmo de partir...
e - até hoje - quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.
*           *           *

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

RETROSPECTIVA

Passeando em Minas Gerais...

Aqui mesmo, no "Língua de Trapo",  já escrevi sobre uma figura popular em Itatiaia - a "Xuxa" - aquela senhora que perambula pela cidade vestida de maneira engraçada.
Não lembro se na época fiz uma comparação com uma outra senhora que conheci em Ouro Preto-MG, na década de 60 (noooossa!) e que nós, crianças e adolescentes estudantes chamávamos de "Tia Olympia". Íamos muitas vezes a Ouro Preto, Mariana e outras cidades históricas da nossa região.
Quando vim morar em Itatiaia, achei interessante a coincidência de haver aqui, também, uma figura tão parecida. Foi o mote para aquele texto que intitulei "Instantâneo".

Abaixo, trecho de uma reportagem que encontrei hoje no site palmalouca.com., sobre Dona Olympia, de Ouro Preto.


A primeira hippie
Rachel Almeida

Quem visitou Ouro Preto entre os anos 50 e 70 teve a honra de conhecer a primeira hippie brasileira. Dona Olympia, ou Sinhá Olympia, não passava despercebida pelas ladeiras da cidade. E fazia questão disso. O visual ajudava: roupas coloridas, chapéu florido, o cajado inseparável na mão e um cigarro na boca. Mas não foi só a aparência extravagante que a tornou figura lendária fora das fronteiras de Minas Gerais, retratada por fotógrafos e pintores, inspiração de músicos e até tema de desfile da Mangueira, em 1990. Era mulher de personalidade forte, sem papas na língua, e exímia contadora de histórias.

Histórias sem pé nem cabeça, é verdade. Dona Olympia gostava de misturar realidade e ficção, sempre dando um jeitinho de incluir nos relatos personagens como a princesa Isabel, Dom Pedro I ou Tiradentes. E a si mesma, o que fazia com que se falasse que ela "não tinha a cabeça muito boa". Mas cativou gente à beça, de músico a padre, de presidente a poeta, sempre com a mania de jogar conversa fora. No momento em que são lembrados os 30 anos de sua morte, o Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana, que termina dia 23, decidiu prestar homenagem a Dona Olympia. Um incentivo para as lembranças dos ouropretanos que acompanharam sua opção por uma vida de liberdade e fantasia.

Natural de Santa Rita Durão, distrito de Mariana, mas cidadã de Ouro Preto, Olympia Angélica de Almeida Cotta nasceu em família rica, mas optou por viver perambulando pelas ruas íngremes da cidade histórica. Desilusão amorosa, dizem. "Ela era linda na juventude, muito bonita mesmo, e se apaixonou por um estudante de farmácia pobre. O pai, com medo de o rapaz estar tentando dar o golpe do baú, proibiu o romance. Tempos depois, ela resolveu se vestir de maneira excêntrica, vagando por aí, inventando casos. Um jeito de enfrentar o pai e a dor", explica a artista plástica Maria Efigênia Pereira, de 71 anos, cujo pai teria sido amigo do tal estudante de farmácia. Segundo a artista, depois da proibição, o casal passou 15 anos sem se encontrar. "Um dia ele veio a Ouro Preto para o reencontro com colegas de faculdade. Houve uma comemoração e Olympia apareceu. Os dois começaram a chorar muito. Na semana seguinte, o homem morreu. Não agüentou de emoção".
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O que se fica sabendo é que dessas histórias de fuga da realidade, de perambular pelas ruas sem necessidade, de abandono de status e aprovação social, o elemento desencadeador é sempre a desilusão amorosa, seja por um amor proibido pela família, por morte do ser amado ou qualquer outro motivo de separação.
É.. o tal sentimento de amor por uma pessoa tem feito estragos... mas também grandes escritores e poetas. Estes são os meus preferidos. Não ficam malucos, não largam tudo... escrevem - e claro, capitalizam (hehehe) - mas nos permitem admirar seu talento. Às vezes até nos orientam (ou desorientam, sei lá).
De qualquer forma, gosto muito de escritores e seus escritos, de poemas e seus poetas, mesmo não sendo verdadeiros, afinal

"O poeta é um fingidor
finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente."

Nâo é mesmo, FERNANDO PESSOA?


Sueli - 22/8/2011
* * *

sábado, 20 de agosto de 2011

FRANZ LISZT - Liebestraum (cello and piano)


Linda música, linda interpretação, linda imagem de dois irmãos: Seeli Toivio (cello) e Kalle Toivio (piano).
Sábado maravilhoso!

BANDEIRA E DRUMMOND

Retrato
Manuel Bandeira

O sorriso escasso
o riso-sorriso,
a risada nunca.
(Como quem consigo
traz o sentimento
do madrasto-mundo.)

Com os braços colados
ao longo do corpo,
vai pela cidade
grande e cafajeste,
com o mesmo ar esquivo
que escolheu nascendo
na esquiva Itabira.

Aprendeu com ela
os olhos metálicos
com que vê as coisas:
sem ódio, sem ênfase,
às vezes com náusea.

Ferro de Itabira,
em cujos recessos
um vedor, um dia,
um vedor - o neto -
descobriu infante
as fundas nascentes,
o veio, o remanso
da escusa ternura.
**

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

MURIEL BARBERY - A elegância do ouriço


Pensamento profundo nº 10
Gramática
Um estrato de consciência
Levando à beleza

(...) Acho que a gramática é uma via de acesso à beleza. Quando a gente fala, lê ou escreve, sente se fez ou leu uma frase bonita. Somos capazes de reconheceer uma bela construção ou um belo estilo.  Mas, quando sabemos gramática, temos acesso a outra dimensão da beleza da língua. Saber gramática é descascá-la (a língua) olhar como ela é feita, vê-la toda nua, de certa forma.  E aí é que é maravilhoso. Porque pensamos: "Como isto é bem feito, como é bem elaborado", "Como é sólido, rico, sutil". Só de saber que há várias naturezas de palavras e que devemos conhecê-las para concluir sobre seu uso e suas possíveis compatibilidades, isso já me transporta. Acho que não há nada mais bonito, por exemplo, do que a idéia de base da língua, de que há substantivos e verbos. Quando vemos isso, já chegamos ao próprio cerne de qualquer enunciado." (...)
*            *            *
Muriel Barbery, in A elegância do ouriço, S.Paulo, Cia.das Letras, 2008, p.168

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

WALT WHITMAN - Às vezes...



Às vezes com a pessoa a quem amo
Walt Withman

Às vezes com a pessoa a quem amo
Fico cheio de raiva
Por medo de estar só eu dando amor
Sem ser retribuído;

Agora eu penso que não pode haver amor
Sem retribuição, que a paga é certa
De uma forma ou de outra.

(Amei certa pessoa ardentemente
e meu amor não foi correspondido,
mas foi daí que tirei estes cantos.)
*            *            *




sexta-feira, 12 de agosto de 2011

HOJE É DIA DE MARIA - Que lindos olhos! (2005)



Esse momento da infância é a lembrança que todos deveríamos ter...

"HOJE É DIA DE MARIA"


"HOJE É DIA DE MARIA"
Da obra de Carlos Alberto Soffredini

Adaptação para TV de Lúis Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho

"Ah, mar...Ah, mar...Amar!
Maior mistério da vida é o amar!
Amar...Amar...Amar...
**

"Não há nada que apresse
nem há força que enfraquece
o jorro das coisas que vêm!
**

"É hora de sair à luz,
colocar o coração nas ruas!"
**

"Yes! Esquece tudo! Tudo, tudo, Maria...
Jump! Pula no mar do esquecimento!"
**

"Até quando, senhores,
a injustiça há de pesar
em nossos ombros cansados
de injustiça suportar?"
**

"O que voa não são as asas, Dom Chicote.
É o coração, a vontade, o desejo!"
**

Não perguntes o que sou.
Aqui estou, viva para amar...
E nada do que se viveu
de verdade morrerá."
**

"Como um pássaro que singra o ar eu voarei!
Aos vossos olhos eu me elevarei no ar,
mais leve que a fina substância dos sonhos!"
**

(Falas da Segunda Jornada de Maria)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

FLORBELA ESPANCA - Voz que se cala


Voz que se cala
Florbela Espanca

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...

*            *            *

domingo, 7 de agosto de 2011

CORA CORALINA - Todas as vidas

Todas as vidas
Cora Coralina


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

*            *            *

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

OSWALDO MONTENEGRO - "novinha" !



Ouvi esta música pela primeira vez hoje, no programa "Sem Censura", e gostei muito.
A letra prendeu minha atenção , talvez porque ainda tenha dentro de mim essa inquietação, essa ousadia, esse sentimento de que não se vive realmente sem coragem de buscar o que muitos acham improvável ou mesmo impossível.

"Olha pra vida e diz pra ela: Eu quero ser feliz agora!"

É claro que a experiência, a vivência, para não falar na idade (hehehehe) nos tornam mais cautelosos, entretanto, em alguns aspectos, sou ainda curiosa e um "tantinho" atrevida.  Quando tentam me desanimar, "tirar o tapete", sabe como é? - não me deixo convencer facilmente... Muitos dizem que é teimosia, que vou "pagar mico". Sei lá... prefiro arrepender-me do que fiz a pensar que poderia ter feito.
É só uma opinião.
E a letra dessa música traz esse tema. "Viver é negócio perigoso", não é , Guimarães Rosa? O que tem de gente minando nossa auto-estima... dizendo que a gente não é capaz, que não vai dar certo...huuummm... Tô fora. Sou a favor do elogio, do incentivo. Faz bem para as duas partes: a quem faz e a quem recebe.
A melodia também me encantou. Parabéns, Oswaldo Montenegro!
Falei.
*          *          *

MIGUEL TORGA - Identidade


Identidade
Miguel Torga

Matei a lua e o luar difuso
Quero os versos de ferro e de cimento
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo coração que se debate aflito
e luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

**


Gosto do mar desesperado
a bramir e a lutar
E gosto de um barco ainda mais ousado
Sobre esta rebeldia a navegar.

*            *            *

EUGÉNIO DE ANDRADE - Há dias


Há Dias
Eugénio de Andrade  - "Os lugares de Lume"

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

*     *     *

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

SARAH BRIGHTMAN - Winter Light

JEANNE ARAÚJO - Fome

Tela de Cristina Balieiro

Fome
Jeanne Araújo

Colaram-se em mim
uma fome antiga de palavras
e uma sede assoberbada de cantigas.
O meu desejo seria par de asas
coladas aos meus pés
e um carro de boi cantante
selado à minha língua.

Porque de pó e terra escura
é a minha estrada
e eu tenho pressa de descobrir
o que há por trás
da tessitura.
*           *            *

terça-feira, 2 de agosto de 2011

ANTONIO CÍCERO - Canção do amor impossível

Canção do amor impossível
Antonio Cícero

Como não te perderia
se te amei perdidamente
se em teus lábios eu sorvia
néctar quando sorrias

se quando estavas presente
era eu que não me achava
e quando tu não estavas
eu também ficava ausente

se eras minha fantasia
elevada a poesia
se nasceste em meu poente
como não te perderia?

*           *            *

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

MACHADO DE ASSIS


Verme
Machado de Assis

Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.

Um verme asqueroso e feio
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento,

Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.

*        *        *

PAULO LEMINSKI - (escrevo...)


Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.

Escrevo porque amanhece,
e as estrelas lá no céu
lembram letras no papel,
quando o poema me anoitece.

A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

*        *        * 

In:  'Distraídos venceremos', 1987

JORGE LUIS BORGES - El mar


El  mar
Jorge Luis Borges

Antes que el sueño (o el terror)

tejiera mitologías y cosmogonías,

antes que el tiempo se acuñara

en días, el mar, el siempre mar, ya

estaba y era.

Quién es el mar ?

Quién es aquel violento y antiguo

ser que roe los pilares de la tierra

y es uno y muchos mares y abismo

y resplandor y azar y viento?

Quién lo mira lo ve por vez primera,

siempre.

*            *            *