sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CARLOS VOGT - A Bela e a Fera

A Bela e a Fera
Carlos Vogt  
Linguista e poeta, nasceu em Sales Oliveira (SP) no dia 6 de fevereiro de 1943.


Quando o pobre pai - que era rico e ficou pobre -
arrancou a rosa do jardim daquele misterioso palácio,
rosa vermelha encarnada para a filha mais nova e querida,
a gota de sangue que há em cada poema
tingiu-lhe a mão, os espinhos que espetavam a mão,
e a mão que agarrada aos espinhos
transformava aos poucos seu braço-membro em braço-rosa.

Nesse instante, sem que soubesse de onde, nem como, nem por quê,
surgiu-lhe no peito a dor habitual dos grandes abandonos:
tinha diante de si a rosa de sangue transtornada em fera,
e a fera em solidão.
Era uma fera terrível, lamentosa de queixumes quase humanos,
que, às vezes, numa voz de bicho,
outras, numa voz de homem,
prometia promessas de quem tem a propriedade de ser bicho-homem,
e ameaçava castigos só imagináveis na imaginação de um homem-bicho.

O monstro-bicho, o bicho-homem, o homem-monstro e o monstro-fixo
trouxeram para a fera a filha mais nova e querida que era Bela;
as irmãs também bonitas, mas ciumentas e feias só pelos ciúmes,
gostaram, como muitas outras de outras histórias de irmãs novas e velhas,
que a delicada menina preferida dos zelos e dos cuidados de seu velho pai,
- antigo mercador falido por ganância no antigo deserto das sombras imperiais -,
gostaram, pois, como dizia, que a doce, terna e meiga humanidade da criança
fosse entregue à sanha e ao apetite - assim pensavam -
da fera bruta, da feroz brutalidade do ódio cego da estranha criatura.
Contudo, a menina que rapidamente na viagem se tornava em moça,
e a moça que empurrava o corpo para ser mulher
logo aprenderam que a ferocidade do monstro e a monstruosidade da fera
eram muito menos do que algo em si - uma essência ou uma substância -,
e muito mais o termo de uma relação, um ser não-ser, uma carência,
alguém - se dizê-lo não for contraditório -
feito não da monstruosidade da fera que de fato mostra,
mas da triste humanidade ausente do homem que não era.

A menina-moça, à força de querer-lhe a natureza fazê-la outra,
primeiro veio-lhe o reconhecimento, depois, a compreensão
de que o destino a pusera não só no fluxo de sua própria vida,
mas na vida dos símbolos que sempre andam solidários na alheia solidão.

No dia em que sentiu vontade de voltar à sua velha casa,
deixou-lhe a fera consentida em dramas de grandes perdas e sofrimentos;
as irmãs invejosas também sofreram o desalento de ver a bela irmã mais nova
viva, livre - assim pensavam, sem perceber-lhe a alma cheia de tormentos.
O pai envelhecido mais que antes pediu-lhe que ficasse,
mas ela decidida ouviu ao longe a voz com que de hábito a fera a chama,
a chama que da vida, da triste vida ambígua, da fera se acabava.
Abalada em sustos, por muito pouco não ficou em casa, cheia de saudades da mãe,
que não conhecera;
se ali ficasse aninhada nos segredos do pai e no ódio das outras filhas,
suas irmãs,
dizem que seu destino seria sempre ficar entre:
não ser menina, ser quase moça, não ser mulher.

Porém, decidida e corajosa, como dizia, e como de fato era feito seu caráter,
espantou-se do torpor e célere correu por serras, fantasias, vales e desterros:
foi sendo atriz da própria personagem,
fugiu do instante oco em que o acerto se confunde em erros,
fez-se narrador de seu próprio texto.

Quando chegou à terra em que seu pai quase sem querer desatou-lhe o nó da vida,
ao apanhar a rosa para dedicá-la à delicada filha dona de seus zelos,
viu, num canto do jardim, junto aos roseirais, que a fera, exaurida em suspiros,
soluçava fundo:
era uma figura imponente como um fero monte de plagas tormentosas,
era grotesco o choro deste homem-monstro sucumbindo em rosas.
Entre a repulsa, a piedade, o horror, o amor e o medo,
beijou-lhe a fronte que desfalecia em suores frios,
o que foi bastante para o desencanto:
tinha diante de si um belo príncipe vulgar qualquer.

Assim, acabou-se a história:
do intervalo de ser quase uma e não ser nunca outra,
a menina-moça, pela fera dúbia, pelo pai querido, pela mãe ausente, pelas irmãs cruéis,
transformou-se em rosa, rosa de sangue, que se fez mulher.


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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

NELSON MORAES - Um advérbio na madrugada



Nelson Moraes - do interessantíssimo blog 'Ao mirante, Nelson".

(Publiquei esse continho em 2004 e, sei lá, achei que era o caso de um replay)


UM ADVÉRBIO NA MADRUGADA

Vanderley apresentava um programa de entrevistas "culturais" no horário da madrugada, que dava traço de audiência – mais uma consideração da emissora à sua condição de repórter social decadente. Vanderley mantinha...também o hábito de utilizar "literalmente" fora do contexto. "Estou literalmente cansado". "O cabelo de nossa entrevistada está literalmente mais curto". Isso inclusive sempre foi motivo de secreta chacota por parte da equipe do programa, dos técnicos à produção.

Ontem à noite, ao entrevistar um professor de português aposentado, Vanderley teve – na conversa em off que antecedia a entrevista – a atenção chamada pelo intelectual, que em voz baixa lhe corrigiu o uso do advérbio: "Significa ao pé da letra. Não é sinônimo de 'realmente'. Serve para tirar de algum termo sua condição de metáfora. Se a palavra tem duplo sentido, o 'literalmente' vem demonstrar que o termo está sendo usado em seu conceito original, denotativo." "Sei, sei", disse Vanderley entre lacônico e constrangido, passando os dedos pelos cabelos avermelhados de henna.

A entrevista seguinte foi com um cientista maluco que tinha inventado um eletrodo a partir de água mineral. Uma faísca da engenhoca escapuliu, pegou na cortina do cenário, alastrou-se até o papel manteiga que cobria um dos refletores e que já estava superaquecido; o pequeno foco não pôde ser controlado e logo o estúdio estava em chamas. A porta por algum motivo não quis destrancar e o pânico irradiou-se tão rápido quanto as labaredas. Sem lembrar-se do número dos bombeiros, Vanderley só teve tempo de ligar de seu celular para a casa do produtor do programa – e, em meio ao caos, um instante de autorrealização: utilizar corretamente o advérbio. A bateria do celular já acabando e ele só pôde gritar: "O programa está literalmente pegando fogo!"

A ligação caiu e o produtor voltou a dormir, satisfeito, imaginando que a audiência deveria estar reagindo.

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Post da amiga Claudia Lyra no Facebook

SAUDADE DE MINAS

Trem mineiro
André Felipe Souza Cecílio (*)

Um mineiro só é autêntico depois que viaja de trem. Mesmo que seja uma viagenzinha de Monlevade a Fabriciano.
O trem é uma parte essencial da personalidade de toda pessoa que nasce nos domínios de Minas. Por isso, o mineiro que nunca viajou puxado por uma locomotiva, seja das antigas Marias-Fumaça ou das modernas e tecnológicas máquinas atuais, não é e nunca será um mineiro completo até que sinta o leve sacolejar de um vagão em movimento.
O mineiro que nunca se deixou levar pelos trilhos convive sempre com a perpétua agonia de quem tem a alma incompleta.

"Maria-Fumaça não canta mais..."

É que o trem carrega em si mais do que apenas passageiros.
Em cada vagão, em cada poltrona, tem um pequeno pedaço da história de um povo que nasceu, cresceu e amadureceu convivendo com as idas e vindas da majestosa serpente de ferro por entre as cidadezinhas que se formavam aqui e ali.
E, a cada manhã, a locomotiva foi se acostumando a receber e desejar um simpático “bom dia!” em toda estação.
E se acostumou, também, a ver gerações de crianças que corriam aos risos e gargalhadas ao seu lado e que, depois, se tornavam jovens a embarcar-lhe em busca de estudos na capital até o dia em que faziam o caminho de volta, já doutores e não tornavam a aparecer até chegada a vez de embarcar os seus filhos, que, há pouco, eram as novas crianças correndo, para completar e reiniciar o ciclo.
A vida mineira se vê repetindo e recomeçando em cada estação.
Por isso, só um mineiro é capaz de compreender a mistura de tristeza e alegria cantada pelo apito de um trem.

A vida passa como um trem vagaroso.

De certa forma, entrar em um trem – não importa em que lugar do mundo – é, também, fazer uma breve viagem por Minas.
A confortável monotonia e o passar lento e distante das paisagens do outro lado da janela remetem à própria vida mineira, que passeia igualmente vagarosa pela rua que leva à praça da matriz de uma cidadezinha qualquer; os sorrisos que se abrem nas chegadas às plataformas carregam o mesmo afeto que se encontra nas cozinhas, enquanto se toma um cafezinho à espera da fornada de pão de queijo caseiro; até o “só-não-diga-que-eu-te-disse” feito pelas rodas sobre o trilho também é o mesmo do que aquele que permeia as conversas das comadres às janelas e aos portões.
É como se cada trecho de todas as estradas de ferro se passasse em território mineiro.

E todo mineiro, por menos mineiro que se sinta, também carrega todo um trem em si.
Assim como um trem, o mineiro entende que não consegue alçar vôos como os aviões, contudo, sabe-se grande como nenhuma aeronave – apesar de nem sempre saber ao certo quanto.
Afinal, é a mesma suntuosidade simplória de uma locomotiva em movimento que sustenta o orgulho de um filho de Minas.
E, tal qual um bom trem, cada mineiro carrega os seus próprios vagões com suas respectivas cargas e passageiros sem dividi-los ou abandonar um ou outro mais de trás.
Um mineiro jamais abandona um vagão, não importa seu tamanho ou seu peso, pois é o mesmo motor que puxa os vagões de um trem que impulsiona o coração de um mineiro (entretanto, talvez seja mais fácil parar um trem inteiro do que um único mineiro determinado).

O trem é a metáfora do mineiro, e vice-versa

Mas, assim como o mineiro não se completa sem o trem, uma viagem de trem só é autêntica se for em solo mineiro.
Sobre os trilhos de Minas, fica evidente a cumplicidade entre as existências do trem e do mineiro, de Minas e da viagem.
A equivalência é tamanha que fica difícil decidir se o trem é a parte do todo que é Minas ou se é o contrário. Talvez o trem seja a metáfora do mineiro, e vice-versa.
De qualquer forma, essa é uma percepção à qual se deve chegar sozinho, viajando pelo interior da alma mineira – caminho pelo qual, aliás, só se vagueia de trem. Pois é apenas ao passar entre matas, rios, morros e serras sobre uma estrada de ferro que se têm consciência do universo que é Minas.
Só nessa hora é que se sente a consistência da alma mineira, que é a consistência do ferro sobre o qual corre o trem, do ferro suado pelas montanhas e recolhido pelos vagões; do ferro que alimentou tantos sonhos de ouro, mas que tornou possível um outro sonho que, hoje, chamamos realidade.
Esse ferro é o ferro que, acima de tudo, corre nas veias de todo mineiro, mas que só se pode sentir no sacolejar de um trem. E é tão poderosa a força desse ferro que, ao se acomodar em um vagão, até quem nasceu em outros estados ou países se sente um pouco mineiro e suspira, sem querer, “Oh, Minas Gerais!”.

“O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão”     

(Carlos Drummond de Andrade)

*            *            *

(*) André Felipe Souza Cecílio é poeta, escritor, músico, compositor e ator mineiro de 20 anos. Já caminha para o segundo livro e carrega, no currículo, a classificação do poema "Versete Rosa" entre os dez melhores poemas do Concurso Guimarães Rosa 2011.
 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

FRÉDÉRIC BEIGBEDER - Lecteur vintage

“Lecteur vintage”
Frédéric Beigbeder , 'Premier Bilan Après l'Apocalypse'




Ô lecteur vintage, ô bouquiniste de papier, ô survivant des greniers perdus, ô courageux toxicomane accro à la drogue la plus menacée du monde, ô valeureux prot...ecteur de grimoires humides, ô merveilleux autiste littéraire, ô toi, toi qui sauves l’intelligence de l’oubli, ne guéris jamais, et continue de chérir ces tigres de papier friable pendant qu’il en est encore temps.

Certains de ces titres sont d’ores et déjà introuvables dans les librairies ; d’autres sont sur le point de disparaître ; et dans quelques années, ce seront les librairies qui auront disparu, avec tous les Montag d’aujourd’hui.

Dépêchons-nous de les collectionner en cachette. Sauvons les « happy few » qui peuvent encore l’être.

Ralentissons le progrès de la bêtise, s’il vous plaît.

Publicado na página "A louca da biblioteca", Facebook


JOÃO UBALDO RIBEIRO - ...estatuto da palavra



Vem aí o estatuto da palavra
João Ubaldo Ribeiro


Para mim, é sinal de atraso, mas acho que sou minoria.
Estamos atravessando um interessante processo sociopolítico, em que o comportamento pessoal e particular é cada vez mais controlado, com a nobre finalidade de nos proteger, geralmente de nós mesmos.
Já imaginei várias possíveis consequências disso, inclusive a criação das figuras da ortocópula e da cacocópula.
Não, o Estado não instalará câmeras de tevê nas alcovas, para monitorar a intimidade dos casais.
Só creio que isso pudesse acontecer, ainda que muito remotamente, em São Paulo, onde hoje é bem mais fácil ser assaltante do que fumante. Se o assaltante estiver fumando, duvido que assalte qualquer coisa em Congonhas, por exemplo, porque, assim que passar por baixo da marquise, um ou dois policiais o pegarão. Já assalto simples, sem cigarro, é outra coisa.

Não haverá necessidade da monitoração, a não ser por ordem judicial. O Estado definiria uma cópula otimizada, numa escala, vamos dizer, de um a cinco. Nessa faixa, teríamos a ortocópula. Passando de cinco, já se começaria a pisar o arriscado terreno da cacocópula.
A iniciativa da ação estatal seria nos mesmos moldes da lei da palmada. O cônjuge atingido poderia denunciar o autor da cacocópula, ou isso poderia caber a quem quer que tivesse condição de levantar suspeitas, tais como vizinhos e parentes.
Se o casal vizinho tem uma trilha sonora exuberante durante suas conjunções carnais, aludindo, em voz audível através de um copo na parede, a práticas consideradas inaceitáveis pelos padrões oficiais, o longo braço da lei pode alcançá-lo. Mesmo que tanto ela quanto ele garantam que fazem aquilo somente entre os dois e gostam desse jeito, serão classificados como anormais e levados a tratamento psiquiátrico. Não se obtendo êxito, paciência. Compete ao Estado zelar pelo bem deles e, portanto, o divórcio será obrigatório, podendo ambos inscrever-se no programa governamental “Refaça Sua Vida”, que permitirá novo casamento aos que comprovarem ter abandonado atos sexuais ilícitos. Os filhos estarão bem entregues a parentes e, na falta destes, a alguma das exemplares instituições que o Estado mantém para a guarda e educação de menores desamparados.

Agora há novamente paladinos da sociedade perfeita, o que lá seja isso, que querem censurar dicionários. De vez em quando, aparece um desses.
Censurar a lexicografia é uma curiosa inovação. Dicionário é um trabalho lexicográfico, não uma peça normativa. O lexicógrafo não concorda ou discorda do uso de uma palavra ou expressão qualquer. Obedecendo a critérios tão objetivos e neutros quanto possível, constata o uso dessa palavra ou expressão e tem a obrigação de registrá-la.
Eliminar do dicionário uma palavra lexicograficamente legítima não só é uma violência despótica, como uma inutilidade, pois a palavra sobreviverá, se tiver funcionalidade na língua, para que segmento seja.

Não se pode legislar o funcionamento da língua. O que se pode, no máximo, é regular a chamada norma culta, que poderia ter qualquer outro nome, porque é destinada apenas a manter um pouco da estabilidade da comunicação necessária à sociedade, desde o convívio interpessoal aos documentos de uso comum, da propaganda às leis.
Se não fosse assim, dentro de pouco tempo a comunicação verbal seria quase impossível. De resto, a língua é viva e livre e ninguém manda nela, nem mesmo as ditaduras. E não insulta ninguém, depende para isso de seus usuários, que criam o que é considerado ofensa.

Mas os usuários são renitentes, de forma que, como no caso da cópula, isso tem que ser regulado, não é possível permitir que o dicionário registre termos que poderiam ofender algum indivíduo ou categoria.
Acho que tem muita limpeza a ser feita e agora mesmo me ocorrem cretino, imbecil, idiota, boçal e outras palavras muito usadas para insultos, que, ainda por cima, são empregadas erroneamente, pois sabe-se atualmente que o boçal não tem culpa de sua boçalidade.
Há muita gente que acha que se trata de um triste problema genético e todo boçal é uma vítima que, assim como o bandido, foi marginalizada (ou excluída, que está mais na moda) e sofreu bullying na infância.

Urge também o banimento de palavras que agravem povos irmãos, mesmo que hoje seus países não existam mais politicamente, como beócios e capadócios.
Os já citados cretinos são outro caso deplorável, pois, para grande vergonha nossa, a palavra vem do francês crétin, a qual, por sua vez, vejam como o mundo dá voltas – se originou de chrétien, ou seja, cristão. Patenteia-se aí um claro insulto a toda a cristandade e cretino merece dupla proibição.
Baiano burro (aliás, mentalmente prejudicado, para não ofender o burro e incutir nas crianças desprezo por um animal tão útil à humanidade) nasce morto, bem sei, mas não se fazem mais baianos como antigamente e não duvido que surja um grupo na Bahia, empenhado em abolir termos e expressões como “baianada” e “gelo de baiano”. E certamente apoiarão seus irmãos paulistas na justa revolta destes, ao serem informados de que lombo de carne de boi é chamado na Bahia de “paulista” e que muitos baianos, a cada dia, dizem casualmente “hoje eu vou comer um paulista lá em casa”.

Com os dicionários expurgados, não mais compreenderemos livros escritos antes desta era. É um preço pequeno a pagar, para nos livrarmos de uma herança maldita e tornar nossa língua própria para os anjos que em breve seremos.

Aguardo agora normas sobre as artes.
As artes deverão ser obrigadas à imparcialidade e a conceder espaço igual a todos. Assim, se o vilão de um romance for católico e o mocinho evangélico, será exigida, concomitantemente, uma versão com os papéis invertidos.
Se um samba falar que “minha nega me traiu”, vai ter que haver outra versão, com a mesma melodia, cantando “minha loura me chifrou”. E por aí vamos, ainda chegamos ao primeiro mundo.

*            *            *

In O Estado de São Paulo, Caderno 2, D4, em 11 de março de 2012


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CECÍLIA MEIRELES - Liberdade


Liberdade
Cecília Meireles


Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, por ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”. Nossos avós cantaram: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!”; nossos pais pediam: “Liberdade! Liberdade! - abre as asas sobre nós”, e nós recordamos todos os dias que “o sol da liberdade em raios fúlgidos - brilhou no céu da Pátria...” - em certo instante.

Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre - como diria o famoso conselheiro... - é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo que partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autônomo e de teleguiado - é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Supondo que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso...).

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!...

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!...

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos que falam de asas, de raios fúlgidos - linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...

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Do livro de contos “Escolha o seu sonho”

terça-feira, 20 de novembro de 2012

LE CYGNE - SAINT-SAËNS

Para encerrar o dia, aguardando uma noite tranquila...




Cello: Aniko Illenyi (Illényi Anikó)
Piano: Gabor Cseke (Cseke Gábor)
Composição: Charles-Camille Saint-Saëns

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MANUEL BANDEIRA para GUIMARÃES ROSA



G. Rosa - Preparando  viagem pelo sertão



AMIGO MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!


Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo. Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá... Você sabe: a vida é um Itamarati - viver é muito dificultoso.

Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques.

Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra "vereda" com o significado que você mesmo define à página 74: "Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda." Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: "ciriri dos grilos", "gugo da juriti" etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é "arga", "suscenso", "lugugem" e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?

Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que não ficou de fora nenhuma dicção de seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação lingüística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré.

Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.

Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.
E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.

Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa'uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:

O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.

13/03/1957

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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

RACHEL DE QUEIROZ - "A dama sertaneja das Letras"


Rachel de Queiroz
Fortaleza (CE), 17 de novembro de 1910 - Rio de Janeiro, 04 de novembro de 2003
Posse na ABL - 1977


“Eu não entrei para a Academia por ser mulher. Entrei, porque, independentemente disso, tenho uma obra. Tenho amigos queridos aqui dentro. Quase todos os meus amigos são homens, eu não confio muito nas mulheres.”


Telha de Vidro
Rachel de Queiroz

Quando a moça da cidade chegou,
veio morar na fazenda
na casa velha...
tão velha...
quem fez aquela casa foi seu bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
Mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha..a.
A moça não disse nada;
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro,
queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda.
Tão claro que, ao meio-dia, aparece uma renda
de arabescos de sol nos ladrilhos vermelhos
que, apesar de tão velhos,
só agora conhecem a luz do dia...

A lua branca e fria
também se mete às vezes pelo claro
da telha milagrosa...
ou alguma estrelinha audaciosa
carateia
no espelho onde a moça se penteia...

Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!

In "Mandacaru"


Fazenda "Não me deixes" - Quixadá - Ceará

**

Doer, dói sempre.
Só não dói depois de morto.
Porque a vida toda é um doer.

In: "Dôra, Doralina"

**

O homem feliz é o que não tem passado. O maior dos castigos, para o qual só há pior no inferno, é a gente recordar.
Lembrança que vem de repente e ataca como uma pontada debaixo das costelas, ali onde se diz que fica o coração.
Alguém pode ter tudo, mocidade, dinheiro no bolso, um bom cavalo debaixo das pernas, o mundo todo ao seu dispor. Mas não pode usufruir nada disso por quê? Porque tem as lembranças perturbando.
O passado te persegue, como um cão perverso nos teus calcanhares.
Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro, que resista ao assalto das lembranças.


In "Memorial de Maria Moura"



Chalé da Pedra - Memorial Rachel de Queiroz
Quixadá - Ceará

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GARCIA LORCA - Meio pão e um livro

Lorca con niña leyendo.

Discurso do poeta Federico García Lorca, na inauguração da biblioteca de sua cidade natal, “Fuente Vaqueros”, em Granada, Espanha, em setembro de 1931


'Medio pan y un libro’ (Meio pão e um livro)
Garcia Lorca


“Quando alguém vai ao teatro, a um concerto ou mesmo a uma festa de qualquer índole que seja, se a festa é de seu agrado, imediatamente lembra e lamenta que as pessoas que ele ama não se encontrem ali. «Minha irmã e meu pai gostariam de estar aqui», pensa, e não desfruta mais do espetáculo, a não ser através de uma leve melancolia. Esta é a melancolia que eu sinto, não pela gente de minha casa, o que seria pequeno e ruim, mas por todas as criaturas que por falta de meios e por desgraça não desfrutam do supremo bem da beleza que é vida e bondade, serenidade e paixão.

Por isso nunca tenho um livro, porque presenteio todos que compro, que são numerosos, e por isso estou aqui honrado e contente em inaugurar esta biblioteca da cidadezinha, a primeira seguramente de toda a província de Granada.

Não só de pão vive o homem. Eu se tivesse fome e estivesse à míngua na rua não pediria um pão; pediria meio pão e um livro. E daqui eu ataco violentamente aos que somente falam de reivindicações econômicas sem jamais apontar as reivindicações culturais que é o que os povos pedem aos gritos. Bem está que todos os homens comam, porém que todos os homens saibam. Que desfrutem de todos os frutos do espírito humano porque o contrário seria convertê-los em máquinas a serviço do Estado, seria convertê-los em escravos de uma terrível organização social.

Eu tenho muito mais pena de um homem que quer saber e não pode, do que de um faminto. Porque um faminto pode acalmar sua fome facilmente com um pedaço de pão ou com umas frutas, porém um homem que tem ânsia de saber e não possui os meios, sofre uma terrível agonia porque são livros, livros, muitos livros o que necessita e onde estão estes livros?

Livros! Livros! Aqui está uma palavra mágica que equivale a dizer: «amor, amor», e que deveriam pedir os povos como pedem pão ou como desejam a chuva para suas colheitas. Quando o insigne escritor russo Fedor Dostoievski, pai da revolução russa muito mais que Lênin, estava prisioneiro na Sibéria, afastado do mundo, entre quatro paredes e cercado por desoladas planícies de neve infinita; e pedia socorro em carta a sua família distante, somente dizia: «Envia-me livros, livros, muitos livros para que minha alma não morra!». Tinha frio e não pedia fogo, tinha uma sede terrível e não pedia água: pedia livros, ou seja, horizontes, escadas para subir a montanha do espírito e do coração. Porque a agonia física, biológica, natural, de um corpo por fome, sede ou frio, dura pouco, muito pouco, mas a agonia da alma insatisfeita dura a vida inteira.

Já disse o grande Menéndez Pidal, um dos sábios mais verdadeiros da Europa, que o lema da República deve ser: «Cultura». Cultura porque somente através dela se pode resolver os problemas que hoje debate o povo, cheio de fé, porém falto de luz”.




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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

MIGUEL TORGA - Um poema


Um poema
Miguel Torga



Não tenhas medo, ouve:
é um poema.
Um misto de oração e de feitiço...
sem qualquer compromisso.
Ouve-o atentamente,
de coração lavado.

Poderás decorá-lo
e rezá-lo
ao deitar,
ao levantar,
ou nas restantes horas de tristeza
na segura certeza
de que mal não te faz.



E pode acontecer que te dê paz...



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DRUMMOND PARA HILDA HILST


Conhecem o poema feito por Carlos Drummond de Andrade em homenagem a Hilda Hilst?


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Abro a folha da manhã
Por entre espécies...grã-finas
Emerge de musselinas
Hilda, estrela Aldebarã.
Tanto vestido enfeitado
Cobre e recobre de vez
Sua preclara nudez
Me sinto mui perturbado.
Hilda girando boates
Hilda fazendo chacrinha
Hilda dos outros, não minha
Coração que tanto bates.

Mas chega o Natal
e chama a ordem Hilda.
Não vês que nesses teus giroflês
Esqueces quem tanto te ama?

Então Hilda, que é sab(ilda)
Manda sua arma secreta:
um beijo em morse ao poeta.
Mas não me tapeias, Hilda.
Esclareçamos o assunto.
Nada de beijo postal
No Distrito Federal
o beijo é na boca e junto.

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Da página "A louca da biblioteca", no Facebook

domingo, 11 de novembro de 2012

ZÉLIA DUNCAN - Pelo Sabor do Gesto





Pelo sabor do gesto (As-tu déjà aimé?)
Composição: Alex Beaupain - Zélia Duncan

Quem já trocou o amor pelo sabor do gesto?
Sentiu na boca o som? Mordeu fundo a maçã?
Na casca, a vida vem tão doce e tão modesta
...Quem se perdeu de si?

Eu já troquei o amor pelo sabor do gesto
Confesso que perdi, me diz quantos se vão?
Paixões passam por mim, amores que têm pressa
Vão se perder em si

Se o amor durou demais, bebeu nas suas veias
Seus beijos de mentira não chegam muito longe
Paixões correm por mim, são só suaves febres
Seus beijos mais gentis derretem pela neve

Pra que trocar o amor pelo sabor do gesto
Se o gosto da maçã vem sempre indigesto?
Amarga essa canção, os dias e o resto
Se perde como um grão

Mas se eu ousar amar pelo sabor do gesto
Te empresto da maçã, vai junto o coração
Esquece o que eu não fiz
Te sirvo o bom da festa
De um jeito mais feliz

Paixões correm por mim, eu sei tudo de cor
carinho sem querer me cansa e me dói

Se o amor vem pra ficar, faz tudo mais bonito
Me basta ter na mão e o corpo tem razão

Mas se eu ousar amar pelo sabor do gesto
Te empresto da maçã, vai junto o coração
Esquece o que eu não fiz
Te sirvo o bom da festa
De um jeito mais feliz

*
Há em tudo que fazemos
Uma razão singular:
É que não é o que queremos.
Faz-se porque nós vivemos,
e viver é não pensar.

Se alguém pensasse na vida,
Morria de pensamento.
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento.

Mas nada importa que o seja
Ou até que deixe de o ser
Mal é que a moral nos reja.
Bom é que ninguém nos veja.
Entre isso fica Viver.              
(Fernando Pessoa)
*

Mas se eu ousar amar pelo sabor do gesto
Te empresto da maçã, vai junto o coração
Esquece o que eu não fiz
Te sirvo o bom da festa
De um jeito mais feliz

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sábado, 10 de novembro de 2012

AFFONSO ROMANO - Poemas para a amiga


Poemas para a amiga (fragmento 2)

Affonso Romano de Sant' Anna


Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
...e tudo que é teu corpo
é um corpo meu
que se alongou de mim.

Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.

* * *

 Da página 'Claire de lune', no Facebook.


BILAC - O lobo e o cão



O Lobo e o Cão
Olavo Bilac

Encontraram-se na estrada
Um cão e um lobo. E este disse:
“Que sorte amaldiçoada!
Feliz seria, se um dia
Como te vejo me visse.
Andas gordo e bem tratado,
Vendes saúde e alegria:
Ando triste e arrepiado,
Sem ter onde cair morto!
Gozas de todo o conforto,
E estás cada vez mais moço;
E eu, para matar a fome,
Nem acho às vezes um osso!
Esta vida me consome...
Dize-me tu, companheiro:
Onde achas tanto dinheiro?”

Disse-lhe o cão:

“Lobo amigo!
Serás feliz, se quiseres
Deixar tudo e vir comigo;
Vives assim porque queres...
Terás comida à vontade,
Terás afeto e carinho,
Mimos e felicidade,
Na boa casa em que vivo!”
Foram-se os dois. em caminho,
Disse o lobo, interessado:
“Que é isto? Por que motivo
Tens o pescoço esfolado”
— “É que, às vezes, amarrado
Me deixam durante o dia...”
“Amarrado? Adeus amigo!
(Disse o lobo) Não te sigo!
Muito bem me parecia
Que era demais a riqueza...
Adeus! inveja não sinto:
Quero viver como vivo!
Deixa-me, com a pobreza!
— Antes livre, mas faminto,
Do que gordo, mas cativo!”

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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

ABGAR RENAULT - Balada quase metafísica

Tela de Leonid Afremov

Balada quase metafísica
Abgar Renault

Eu estou assim:
absolutamente irremediável
por dentro e por fora, acordado ou dormindo
na Duração, no Tempo e no Espaço.

Eu estou assim:
sem cômodo comigo, sem pouso, sem arranjo aqui dentro.
Quero sair, fugir para muito longe de mim.
Todas as portas e janelas estão irrevogavelmente trancadas
na Duração, no Tempo e no Espaço.

Que é que eu vou fazer?
Não fica bem, assim sem mais nem menos, falecer.
Queria rezar, mas eu sou isto, meu Deus!,
e da minha reza, se reza fosse,
não ouvirias uma só palavra.

Tem pena, uma pena bem doída de mim,
meu Deus, e ouve para sempre esta oração,
e ampara isto que sou eu
na Duração, no Tempo e no Espaço.




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NEM ARTE, NEM LOUCURA - (in: Jornal de Poesia)

Nem arte, nem loucura
Ronaldo Correia de Brito (*) 

"O verbo surtar ganhou status e glamour. Hoje em dia todos surtam. É a moda"

Entre as balelas inventadas pela modernidade, uma foi estabelecer nexo entre arte e loucura, como se o artista fosse necessariamente um alucinado. Diz-se comumente que “de artista e de louco todo mundo tem um pouco”. O verbo surtar, do jargão psiquiátrico – que significa a perda de controle sobre si mesmo, a entrada num estado paranóide ou delirante com todas as dores próprias da alucinação –, ganhou status e glamour. Hoje em dia todos surtam. É a moda. Até o Houaiss já registrou o significado mais ou menos brando do verbo surtar, colocando-o no campo das neuroses, dos problemas psicológicos. Ninguém se assuste ao ouvir esse neologismo nas filas de banco, no supermercado e na novela das seis horas.

A sociedade apropriou-se da loucura como um bem descartável, banindo o que havia de sagrado e maldito nesse estado alterado de consciência. Empanturrou-se de drogas, de medicamentos, de álcool e fumo. E também de psicanálise. Na derrapada, confundiu o estado de transe criador com o delírio esquizofrênico, o jejum da ascese com a anorexia nervosa, a náusea existencialista com a bulimia das modelos de passarelas. A fantasia de que os artistas são seres fragmentados é própria de uma sociedade com rupturas.

Os poetas buscaram o absoluto, um fluxo permanente de criação a custo de trabalho e sofrimento. Nietzsche não escreveu delirando, Schumann não compunha em surto psicótico, nem Van Gogh pintava quando estava alterado. Os Upanishads, textos sagrados do povo indiano, definem o vazio que antecede o ato criador como um instante de comunhão com o ser: “O mais alto estado se alcança quando os cinco instrumentos do conhecer permanecem quietos e juntos na mente, e esta não se move.” Êxtase, iluminação, revelação ou inspiração, qualquer nome que se queira dar a esse estado, não corresponde à loucura. Ao contrário, é puro saber. O poeta inglês Wordsworth escreveu que “a poesia é emoção relembrada em tranquilidade.” O mesmo pensou Freud quando afirmou que no ato criador há um fluxo de ideias e imagens que jorram do inconsciente, mas são polidas pelo consciente.

Na era moderna, o artista desprezou a natureza coletiva da criação, assumindo um exacerbado individualismo. Atribuiu a si próprio a única responsabilidade por sua arte e nomeou-se “criador”, epíteto antes usado apenas para designar os deuses. A autoria virou a marca do nosso tempo.

Os pintores zen-budistas não assinavam suas aquarelas porque acreditavam que elas só adquiriam existência ao serem contempladas. Qualquer pessoa que a olhasse se tornava o autor, pois a reinventava a partir daquele instante de contemplação, conceito filosófico vago para a nossa mente ocidental monoteísta, que atribui a criação do mundo a um Ser único. A modernidade buscou assinaturas onde elas não existiam, em trabalhos reconhecidamente coletivos, de mestres e discípulos. Os afrescos italianos pintados por confrarias de artesãos tornaram-se obras exclusivas de Giotto, Duccio, ou Pisanello. Apagaram-se os nomes dos pintores especialistas em mãos, pés, olhos, douramentos, pregas de mantos, molduras, que trabalharam em paredes de igrejas e palácios, acreditando que bem melhor do que sonhar uma obra de arte é realizá-la. Buscou-se a assinatura do criador único, por mais oculta que ela se encontrasse, sob camadas de tinta.

Entre as nações tribais, bastava que um membro se desgarrasse dos costumes para ser punido com a expulsão ou a morte. A mitologia está repleta de heróis que padeceram na luta pela individuação. Quando uma sociedade se confronta com um artista, ela tanto pode aliená-lo de sua coletividade, como elegê-lo seu representante. Ao mesmo tempo em que ela cobra dele que rompa com as regras, transgredindo, extrapolando, derrubando muros, pune-o por essas transgressões.

Surge a figura moderna do artista neurótico, perplexo e fragilizado, que não distingue o eterno do descartável, porque também não lhe interessa essa distinção. Tudo é consumido numa velocidade alucinante. O novo envelhece em poucas horas, criam-se novos simulacros, as prateleiras são repostas. O artista se transforma em fabricante de escândalos, em alucinado. Confunde-se arte e produto, poesia e escracho, êxtase e exposição da imagem. E o atributo de loucura serve apenas à ambígua função de justificar o artista ou execrá-lo.

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(*) Ronaldo Correia de Brito é escritor, dramaturgo e médico.
Autor de 'Galileia', 'Faca' e 'Livro dos Homens'


In: Jornal de Poesia



segunda-feira, 5 de novembro de 2012

PAULO LEMINSKI - "Já me matei faz muito tempo..."

Tela de Leonid Afremov
Vitebsk, União Soviética, 1955pintor israelense de origem bielorrussa.


Já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre, nunca o mesmo passo.

Morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso e clareia a alma.
Morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

Paulo Leminski