domingo, 26 de outubro de 2014

FARLEY RAMOS - Pelo direito ao delírio !

558237_522117191165723_2092248568_n.jpg

Pelo direito ao delírio !
Farley Ramos - "Obvious Magazine", outubro 2014


Entre os debates presidenciais e as notícias do jornal nacional um pouco de poesia nunca faz mal.
Sério, se alguém ainda guarda um pouco do carinho ao mundo que a gente tinha quando era criança esse alguém são os poetas. 
O mundo anda tão chato, tão real e nem um pouco abstrato, as pessoas se preocupam demais com o que podemos tocar, com o que podemos enxergar...O corpo é o ópio da alma.

Vejo economistas, estrategistas do mercado, pensadores da sociedade, matemáticos, físicos serem considerados os grandes pensadores da humanidade e me pergunto: onde estão os caras que construíam novas cidades em guardanapos nas mesas de bar? 
Onde estão os caras que pregavam no deserto? O deserto continua lá...E nesse deserto em meio as ondas invisíveis de rádio e televisão nós materializamos sonhos e transformamos em bens de consumo que poucos podem consumir, transformamos em claridade a clarividência, a ficção virou ciência...Tudo se expõe demais.

Dentro do cenário de reality shows que são cada vez mais irreais é preciso lembrar que ainda há algo em nós que nos dá o direito de existir. 
Nós temos em nós esse fogo incandescente que querem apagar com as águas frias que nos fazem abrir os olhos. 
Olhos abertos só enxergam a luz, e a luz que nos ilumina é a mesma que com o tempo nos cega, melhor nos guiarmos pela poesia da alma, pelo calor humano, pelas setas dos sentimentos...

A vida é mesmo um super-tempo, um extra-tempo, é estranho como a gente se apega ao passado e pensa no futuro, mas continuamos presos no presente, parado ninguém percebe que a vida é movimento.

Ah se o mundo soubesse o bem que dançar faz...Mas a gente é vergonhoso demais pra dançar sem música ou barulhento demais pra escutar o compasso, o ritmo delicado do mundo nos convidando a ser parte da festa.

Os poetas sabem que o mundo é só um detalhe, que os edifícios, as ruas calçadas, os corpos que se expõem em seus vestidos decotados nada mais são que o adorno do mundo, por isso voltam seus olhos pras pedras que lá estavam antes de tudo e lá estarão quando já tivermos ido, ah se a gente se preocupasse menos com ciência e mais com consciência...

Dizem que a depressão é o mal do século, fácil ficar deprimido num mundo de pronta entrega, onde tudo vem enlatado, encaixotado e rotulado...

Onde estão os Beatles e o Pink Floyd para nos salvar?

Você é de direita, você é de esquerda, você é feio, você é bonito...
Ah se o mundo soubesse que a beleza de ser é não saber o que se é e simplesmente ser o que for seja lá o que isso for...

Entre tantas guerras e reivindicações que travamos e fazemos pelo motivo errado, lutemos pelo direito da única coisa que pode nos salvar de nós mesmos e não se engane, somos nossos piores inimigos, lutemos pelo que nos tiraram quando decidiram que podiam decidir o que nos tirar, lutemos pelo que os poetas querem resgatar, lutemos pra que cegados pelo mundo tenhamos um colírio, lutemos pelo direito ao delírio.

*            *            *

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Convite



"Prosa, Poesia e Café"

Aos amigos que muito me honram ao visitar este blog:

Após alguns problemas técnicos  - nunca resolvidos, embora tenha pedido ajuda ao support - para a manutenção do blog, criei uma página no Facebook - Prosa, Poesia e Café - com o mesmo objetivo: divulgar e incentivar a leitura de autores, consagrados ou não,  que tornam mais suave a nossa caminhada.
Os textos são mais curtos porém escolhidos com o mesmo cuidado e carinho.

Pretendo continuar com o blog para os textos mais extensos.

Aguardo com alegria a sua visita e agradeço demais tanta consideração.

Bem-vindos ao nosso novo cantinho.

Bj



*        *        *


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

ANDRÉ J. GOMES - A gratidão...

A gratidão é uma flor sentida, 
delicada e bela
André J. Gomes - "Revista Bula", outubro 2014

Numa cidade do interior, dessas que existem para além do tempo, para dentro de uma lembrança, uma cidadela entre o nada e o lugar nenhum, recanto de meia dúzia de vidas onde a beleza mora nas coisas minúsculas e nos gestos simples, uma vila onde a vida se passa no chão, sob as árvores, junto aos bichos e às plantas, ali vive um homem agradecido.

É bom você não esperar muito dele. Não é pessoa de tantas habilidades, não foi capaz de grandes feitos, não realizou amplas obras agrícolas, não construiu famílias centenárias nem inventou mecanismos revolucionários de aproveitamento da água da chuva. É só um homem comum, mas guarda no peito uma rara gratidão.

Todos os dias, de manhã, mas de manhã mesmo, antes do sol chegar, quando as aves cochilam no escuro e o amor se forma em silêncio no sono dos amantes, esse homem pula da cama e caminha até um canteiro simples. Ali, reza uma prece curta e bela, os pés descalços no chão chuviscado de orvalho, e toma emprestadas da terra as rosas de tantas cores que lá esperam cumprir seu destino de flor.

Ele nunca saiu de sua aldeia. Tratou dos pais até o último dia de suas vidas e agora cuida da casa de sua infância e da roseira de sua mãe. Concluiu os estudos primários ali mesmo, em sua cidade que é o mundo, no grupo escolar plantado ao centro da praça, entre árvores e pipoqueiros e bancos de pedra. Aprendeu português, matemática, ciências. Nunca estudou outra língua, não conhece as teorias modernas da administração, não fez carreira em nenhuma empresa importante.

Mas no armazém que tem o nome de sua família, o mesmo em que começou a vida ao lado do pai, entre secos e molhados, trata seus clientes pelo nome e agradece honestamente ao final de cada compra. Sabe os gostos de seus vizinhos, a quem agrada com as alfaces e os almeirões que brotam de sua horta em escandalosa fartura. E com as rosas que nascem insistentes no pequeno jardim de sua mãe, faz um afago às moças que passam na rua. Estranho como só ele, o homem sempre agradece a quem aceita seus regalos.

Todos os dias depois da lida, ele volta para casa caminhando entre o trânsito de velhas bicicletas e carroças à tardinha. Assiste à noite de sua janela, alimenta seus cachorros e, antes de dormir, reza por todas as almas do mundo que ele só sabe de longe, mas a quem sente de perto.

E então, no coração de cada ser humano brota um inalcançável sentimento de gratidão. E é como se cada um de nós, do mais pobre ao mais rico, do mais doente ao mais saudável, do mais humilde ao mais pedante sentisse nascer em seu lá dentro uma flor modesta, de pétalas frágeis e cores simples, esperando ser cuidada. É o nosso sentimento de gratidão à procura do que agradecer, rebelando-se, nos fazendo dizer “obrigado”. É pena, mas estamos desaprendendo a lidar com ele. E lançamos a flor pela janela.

O homem simples da cidade perdida e distante toma em suas mãos as flores que jogamos fora. E em sua bondade simples, cuida de cada uma delas como quem adota uma criança, lhes dá água, limpa-lhes as pequeninas folhas, sopra-lhes o pó. E guarda em seu peito um sentimento que floresce em calma e paz.

No ritmo quieto do crescimento silencioso das plantas, o homem cultiva em sua horta de ternuras a gratidão pela vida e o privilégio de ser dela uma pequena parte, um canto simples de beleza e alegria.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

FERNANDO PESSOA - Eu não quero o presente...(Alberto Caeiro)

Tela de Edward Hopper
Eu não Quero o Presente, Quero a Realidade
Alberto Caeiro


Vive, dizes, no presente, 
Vive só no presente. 

Mas eu não quero o presente, quero a realidade; 
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede. 

O que é o presente? 
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. 
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. 
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente. 

Não quero incluir o tempo no meu esquema. 
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas 
                         como cousas. 

Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. 

Eu nem por reais as devia tratar. 
Eu não as devia tratar por nada. 

Eu devia vê-las, apenas vê-las; 
Vê-las até não poder pensar nelas, 
Vê-las sem tempo, nem espaço, 
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. 
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

*          *          * 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

JOSÉ MONTEIRO FILHO - Professores

Trago esta crônica de um professor que sempre admirei. 
Mais tarde, tornamo-nos colegas de profissão; hoje, seguimos nos respeitando como amigos.
Muito agradecida, PROFESSOR JOSÉ MONTEIRO FILHO.



“ NÃO DEVIA... MAS... ”

Inspirado no [re]início das Aulas em 2014

(por Monteiro Filho, José)


Meu caro leitor, com estas palavras dou Boas Vindas aos abnegados professores e professoras, alunos e todos os heróis nacionais que labutam no esforço de produzir Educação.

Eu bem sei é que a gente se acostuma a tudo sim. Ainda que não devesse. 

A gente se acostuma às carências da escola pública e a ter coragem de continuar malhando em ponta de faca, tentando esconder o sol com a peneira. E, porque não tem jeito, a gente logo se acostuma às promessas demagógicas de nossas autoridades que nunca se concretizam. São tantas que já nos acostumamos com elas, esquecemo-nos dos alunos e eles nem percebem que estamos dentro de uma sala que parece mais improvisada, sucateada, para lhes passar receitas para o bolo do conhecimento, ainda que venham a deixá-lo solar ou queimar.

A gente se acostuma a dormir tarde e acordar cedo, preparando aulas inúteis e enfadonhas; a gente se acostuma a dormir um sono de pedra retangular, negra ou verde, porque a gente se habituou a carregar nas costas a sala, o colégio, as notas, a indisciplina, o atrevimento; afinal, nem tudo passa goela abaixo, não é mesmo? 
Aí a gente se acostuma a levar nos ombros todos os dramas da escola. 

A gente se acostuma com os apelidos, mesmo que camuflados, de loucos, neuróticos, malucos, ultrapassados, mal resolvidos, odiados porque somos a extensão da chatice dos pais ou dos responsáveis. 

A gente se acostuma a ver a vida em gritos, ralhas e chamadas de atenção.  A gente nem vê o dia passar ali fora da janela alta, disforme, emperrada sempre. 
A gente se acostuma a discutir, vez ou outra, teorias de mestres antigos e novidadeiros e a se angustiar com elas. 
A gente se acostuma com a sensação do ridículo que passam às nossas ações, aos nossos esforços estéreis. 
A gente se acostuma a (des)preparar os jovens para o futuro de dignidade incerta e a lastimar pelo minguado salário do interminável mês. 

E a gente se acostuma a teimar com as ridículas e inócuas greves... A tudo é possível se acostumar. E é o que mais sabemos fazer. Acostumamos a ser brasileiros... 

A gente se acostuma a trabalhar com esta juventude que, desde os tempos de Sócrates ( 470-399 a.C. ) adora o luxo, é mal educada, caçoa da autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. 
A gente se acostuma a ver nossos filhos tiranos, não cederem lugar para os idosos e nos responderem e não nos ouvirem, porque estão com os ouvidos ocupados ouvindo melodias musicais, com letras e conteúdos de qualidade altamente duvidosos. 
Já estamos acostumando a ceder nossa liderança em favor dos bate papos, e dos joguinhos dos celulares, dos facebooks, skypes, whats app, e outros aplicativos virtuais sobre os quais não exercemos quaisquer sinais de domínio. Por vezes, excepcionalmente, exercemos domínios muito limitados, pois, nosso tempo escasso, calculado, não garante espaço para o acompanhamento diuturno da evolução perene dos meios da comunicação virtual e globalizada. 
A gente se acostuma a duvidar do futuro com estes exemplares de jovens em nossas vidas. 

A gente se acostuma a ver nos jornais e revistas e na providencial internet livros sobre educação, longe das possibilidades de nossos bolsos e de nossas leituras. 
A gente se acostuma a ser classe sem identidade, união e representação sérias, justamente porque a sociedade não nos leva a sério. 
A gente, pois, se acostuma à desvalorização, a ser joguete e bandeirola em festas políticas.

A gente se acostuma a coisas de mais e de menos. A ter “peninha” dos filhos dos outros, ainda que depenados em nossa dignidade profissional. 
A gente se acostuma a não ter fins de semana, pizzaria, shopping ou calçadões... 
A gente se acostuma a um cartãozinho só e a sofrer com o pagamento mínimo. A gente só se sente feliz na hora de dormir, pois, o sono, sem sonhos, mas, às vezes, com pesadelos, chega e derruba pesado. 
A gente se acostuma a falar pouco em casa, com a família, com os filhos... a gente se acostuma com a dor de garganta e com o cansaço das cordas vocais. Em casa elas devem ser poupadas para o dia de amanhã. 
A gente se acostuma a não ter vida própria; para quê, se nossa vida é para os outros?

Mas, apesar de tudo, a gente queria se acostumar com o fato de sermos os responsáveis pela formação de tantas e tantas gerações que nem dão conta disso. E nos acostumamos a defender nossa vida, apoiando-nos nesta verdade jamais abolida.

Acostumemo-nos, pois, a sobreviver na contramão dos fatos. 
Afinal, como professores, acostumamo-nos a professar verdades, ética, dignidade, respeito... e nos acostumamos a acreditar que um dia acontecerá o milagre da nossa epifania. Amém !

*            *            *

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mais DRUMMOND - Anúncio classificado

Anúncio classificado  
Carlos Drummond de Andrade

Procura-se apartamento
pequeno, bem situado,
onde caibam dois amantes
de frente como de lado.

Quer-se bem perto do mar
e bem longe do barulho,
de modo que a única música
ouvida seja a de Bach,

de Corrette, de Bomporti,
com seus preciosos discos
arrumados de tal sorte
que inda caibam uns livros

de poesia, está claro,
e também( toda uma estante)
os tratados de Epicuro,
Descartes, Spinoza, Kant.

A mesa-de cabeceira
deve ficar a seu cômodo
para que nenhuma aresta
machuque o amor na testa.

E a cama, sem ser estreita,
nem larga como avenida,
tenha espaço suficiente
para as doçuras da vida.

Caibam na pequena copa
a bandeja, o biscoitinho,
hoje guardados no armário
dos alvos lençóis de linho,

bem como aquelas garrafas
do escocês nacional
que a gente, faute de mieux,
ingere e não nos faz mal.

Procura-se apartamento
de quarto-e-sala (tão pouco
e tão muito), sem barata, 
sem mosquito rezinguento,

sem vizinhos enervantes
que gritem palavras sujas,
sem terríveis, sem constantes
cortes d'água quando as nuas

formas já ensaboadas
se restauravam, cuidando
de logo após se enroscarem
nas formas  do amor, amando.

Quem souber de tal imóvel
não fique imóvel: na asa
do vento me informe onde,
onde é que fica essa casa!

*        *        *

domingo, 12 de outubro de 2014

DRUMMOND - Consolo na praia

Consolo na praia
Carlos Drummond de Andrade

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

*        *        *

FERNANDO PESSOA - O Guardador de rebanhos (Alberto Caeiro) - trechos

O Guardador de rebanhos (trechos)
Alberto Caeiro

(...)
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

(...)

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

*          *          *

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

MÁRIO QUINTANA



Inscrição para uma lareira
Mário Quintana

A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?

Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...

*        *        *