quarta-feira, 24 de maio de 2017

A Bruxa dos Relógios (trechos) - Lya \Luft

A Bruxa dos Relógios
Lya Luft
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Quando criança, eu achava que no relógio de parede do sobrado de uma de minhas avós, aquele que soava horas, meias horas e quartos de hora que me assustavam nas madrugadas insones em que eu eventualmente dormia lá, morava uma feiticeira que tricotava freneticamente, com agulhas de metal, tique-taque, tique-taque, tecendo em longas mantas o tempo da nossa vida.

Nessas reflexões, e observações, mais uma vez constatei o que todo mundo sabe: vivemos a idolatria da juventude — e do poder, do dinheiro, da beleza física e do prazer.
Muitos gostariam de ficar para sempre embalsamados em seus 20 ou 30 anos. Ou ter aos 60, “alma jovem”, o que acho muito discutível, pois deve ser bem melhor ter na maturidade ou na velhice uma alma adequada, o que não significa mofada e áspera.
(...)
Passada (ou abrandada) a insegurança juvenil, é possível desafiar conceitos que imperam, desatar alguns fios que nos enredam, limpar o pó desse uniforme de prisioneiros, deixar de lado as falas decoradas, a tirania do que temos de ser ou fazer. Pronunciar a nossa própria alforria: vai ser livre, vai ser você mesmo, vai tentar ser feliz — seja lá o que isso for.
Então podemos murmurar, gritar, cantar. Podemos até dançar. Não há marcações nem roteiro, mas a inquietante possibilidade de optar: cada minuto vale, o tempo que flui mostra o valor máximo das coisas mínimas — se eu parar para observar.
(...)
E quando alguém resolver não pagar mais o altíssimo tributo da acomodação, mas dar sentido à sua vida, verá que a bruxa dos relógios não é inteiramente má.
E vai entender que o tempo não só nega e rouba com uma das mãos, mas, com a outra, oferece — até mesmo a possibilidade de, ao envelhecer, alargar ainda mais as varandas da alma.

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Texto publicado originalmente na revista 'Veja.'

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Aceita que a vida ajeita - André J.Gomes

Aceita que a vida ajeita
André J. Gomes -  Página 'Conti outra' 16 de abril 2017


Que venha. Seja lá o que for, venha. A gente aceita. Encara, luta, cai, levanta, vai em frente. Aceita o que foi, o que é e o que vem. Não, nós não somos conformistas, permissivos, acomodados, medrosos, trouxas. Nós somos gente. E a gente aceita.

Aceita até mesmo quando rejeita, recusa, esperneia, grita. A gente aceita o inaceitável em conclusão íntima. O teto desaba, o assoalho rompe, as paredes apertam. E a gente aceita.

Aceita pagar por serviços odiosos, aceita esperar de pé em filas enormes por um atendimento de cara feia. Aceita circular de bandeja em mãos por praças de alimentação lotadas até encontrar uma mesa vazia, engordurada, ao lado da lixeira entupida, transbordando sujeira dos outros. A gente aceita o que tem.

Amores capengas e amantes ausentes a gente também aceita. Aceita pela mera ilusão de não estarmos sós.

A gente aceita passar a semana inteira esperando a “sexta-feira, sua linda”, analgésico e antídoto para os venenos de todo dia. A gente aceita. Aceita tudo que não traz nada. Aceita as críticas e pouco reflete sobre elas, senão para nos convencer de que “errado” é quem as fez e não nós mesmos, nós e nossa perfeição religiosa e autoenganada, fundamentada em versículos bíblicos descaradamente adulterados.

Para amansar antigas feras, a gente aceita raciocínios impostos por terapeutas e analistas desinteressados, iludidos de que chegaremos à nossa subjetividade por discernimento próprio.

A gente aceita pagar mais caro por aquilo a que naturalmente tem direito pela simples lógica da civilidade e do princípio da vida em sociedade. Um espaço dois centímetros maior na poltrona do avião, médicos que nos examinem com o mínimo de cuidado, um bairro calmo para dormir à noite sem esperar que alguém invada nossa casa na madrugada, um atendimento decente em qualquer canto.

Que nos culpem pelo que não cometemos, só para fugir de discussões cansativas, a gente aceita de bom grado. E daí? Que mal há em não querer gastar tempo discutindo balela? A gente aceita, aceita que é mais fácil.

Aceita porque, afinal, por mais que nos defendamos, aqueles que nos culpam de qualquer coisa não vão mesmo acreditar. Se o fizessem, assinariam para si mesmos um vergonhoso atestado de covardia. Então aceitam o cargo autoimposto de suprassumos das ciências, reis da cocada preta, generais da banda.

A gente aceita e se acostuma a viver com medo, aceita a morte lenta e o tempo breve, aceita sentimentos burocráticos e cobranças descabidas. Aceita meia hora de amor e duas paçoquinhas.

A gente aceita tudo. Aceita o que deu pra fazer, aceita o mínimo e acha o máximo. Aceita o mais provável e o menos pior. A gente aceita. A gente aceita que a vida ajeita.

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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou... BELCHIOR

As 10 melhores canções de Belchior
Eberth Vêncio - na página 'Revista Bula


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Não é todo dia que faço isso. Vou dar trégua à loucura e falar um pouco dos próprios sentimentos. 
Foi noticiado que o cantor Belchior morreu dormindo. Fiquei vívido e insone após a notícia. 
Uma artéria de grosso calibre, a maior do corpo humano, teria estourado nas entranhas feito uma bomba-relógio, ceifando a vida de um “antigo compositor cearense”, um “reles cidadão latino-americano” que, pelo que constava, pelo que se propagava na mídia, era atormentado por questões existencialistas primárias, como dinheiro e desilusão, por exemplo. 
Não creio que Belchior estivesse quebrado. Eu suponho que o seu coração, sim, estivesse partido, espatifado, falido de amor e de fé.

Tudo são conjecturas. Não tive o prazer e a honra de conhecer Belchior, pessoalmente. 
No início dos anos 1990, vi um show dele em Goiânia, futuro criatório dos sertanejos-universitários (cruz-credo!). 
É incrível quando se sente dor, tristeza, uma melancolia danada pela morte de alguém que, sequer, nos conhecia. Foi bem assim que me senti quando soube do fim silencioso de Belchior. 
Ele morava de favor, incógnito, na casa de um amigo em Santa Cruz do Sul.

Acho que compreendo o que Belchior sentia no seu exílio voluntário. No fundo, eu penso que ele tenha entregado os pontos. Isso é um palpite, um sentimento muito pessoal, pois, eu quase sempre sofro do mesmo ímpeto de jogar a toalha: eu acredito que ele tenha optado em se postar fora do jogo, que ele tenha se recusado, peremptoriamente, a viver a vida tal e qual a vivemos no planeta, em especial, no Brasil, um país de povo inculto, sofrido, desonesto, matreiro, religioso, hipócrita e feliz. Que mistura é essa? 
O que será mesmo essa tal felicidade?

Sim. Nossos ídolos ainda são os mesmos e eles estão morrendo. Isso é sintoma de que também estamos definhando sob o cajado cruel e impiedoso do tempo. 
Há quem afirme, esbanjando autoconfiança e empáfia, que toda espécie de idolatria é descartável, que não precisamos de ídolos para sobreviver às agruras da vida, que este subterfúgio seria um mister para os fracos. Eles devem estar certos. A razão quase sempre está certa. 
E é por essa e outras certezas que a poesia, a música e a arte de maneira geral vicejam como uma espécie de antídoto para tanta racionalidade. Há que se sublimar para suportar a pressão de estar jogando o jogo da vida. Para não afundar, cada qual se agarra nos destroços que consegue. Eu, por exemplo, prefiro a música.

Foi assim, entristecido, tomado de abismal melancolia, que propus ao editor da Revista Bula fazermos uma enquete entre os nossos leitores, a fim de prestar um tributo ao cantor, compositor e poeta Belchior, elegendo, dentre tantas pérolas da sua vasta obra, as mais belas canções. 
Internet é um território pantanoso onde os néscios abundam. 
Antes mesmo dessa publicação acontecer, houve quem nos acusasse de hipocrisia e de oportunismo ao homenagearmos Belchior, que andava sumido, há mais de dez anos fora do calor dos holofotes e do mercado fonográfico brasileiro. O que não falta é gente para atazanar, vocês sabem. Não lhes dou a mínima. 
A maioria retumbante das pessoas entendeu a proposta e, generosamente, escolheu a sua preferida, dentre tantas composições emblemáticas. De acordo com os leitores da Revista Bula, “As 10 Melhores Canções de Belchior” seguem abaixo, para o deleite e consolo de quem curte música de qualidade. 
Declaro toda minha gratidão e respeito. Salve, Belchior! Um dos mais incompreendidos e subestimados artistas brasileiros.


Fotografia 2x4 (1976)

Tudo Outra Vez (1979) Paralelas (1977)


Galos, Noites e Quintais (1977)

 A Palo Seco (1973)

 Alucinação (1976)

 Divina Comédia Humana (1978)

 Coração Selvagem (1977)

 Comentários a Respeito de John (1979)

 Como Nossos Pais (1976)

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