sábado, 28 de dezembro de 2013

ANDRÉ J.GOMES - Carta de Ano Novo...

 Pintura de Joaquín Sorolla y Bastida
Carta de Ano Novo para um filho 
que aprendeu a ler
André J. Gomes - "Revista Bula", dezembro 2013

Querido João,


Já é quase final de ano. Pela primeira vez, você e eu não estaremos juntos na virada, tapando as orelhas na hora dos rojões, olhando o céu riscado de fogos, enchendo a pança de maionese, farofa, arroz com uva passa. Este ano, como acontece a muitas das crianças quando os pais tomam caminhos diferentes na vida, você passou o Natal comigo e, nada mais justo, no réveillon vai estar com a mamãe.


Então, como eu sei que a saudade vai bater violenta quando der meia-noite e você não vai estar por perto para me mostrar bagunceiro os quatro zeros no relógio do celular, eu resolvi escrever esta cartinha a você. Porque assim, desde já, é como se você estivesse aqui pulando, derrubando a casa, irritando a vizinha infeliz do andar de baixo, fazendo todas aquelas perguntas que eu nem imagino de onde surgem. E eu tentasse respondê-las enquanto a gente luta contra o sono e sente o maior dó dos cachorros torturados pela barulheira dos fogos. Cada um tem um jeito de lidar com as coisas da vida, meu filho. O meu é este. Batucando para fora o que passa aqui dentro.


Aliás, escrever-lhe esta cartinha ganhou um novo e maravilhoso sentido agora que você se tornou um leitor tão curioso e voraz. E apesar da minha pacholice de ver meu pequeno deslumbrado com a própria capacidade recente de compreender e reproduzir palavras, palavrinhas e palavrões por escrito, eu sei que esta cartinha você só irá ler mais tarde, daqui a um monte de anos. Porque o conteúdo dela é aborrecido e profundo demais para dias de muita festa e pouca idade. Longo o bastante para um leitor iniciante e inocente como você é hoje.

No entanto, mesmo sabendo que não vai ler isso agora, aí vão duas ou três observações para o meu homenzinho na manhã da vida, se alfabetizando das coisas do mundo, encantado com a descoberta das letras que formam sílabas e compõem palavras. E que juntas dizem frases e contam histórias como a nossa.

Um dia, no futuro, quando ler estas bobagens você vai saber que, lá atrás, este seu quase velho pai já o amava de toda a vida e passava mais tempo pensando em você do que ele mesmo imaginava. Entre todos os seus afazeres de criança, adolescente ou quase adulto, talvez você pare um segundo e pense “é, acho que o velho gostava mesmo de mim”. E vai me ligar do seu iPhone 21, com comando de pensamento, me convidando para assistir ao seu lado a um velho e riscado blu-ray do Homem de Ferro.


Mas enquanto espera ser encontrada por você, que esta meia dúzia de palavras seja vista pelos amigos. Afinal, testemunhas valem ouro. Tanto nos juramentos de quem se casa quanto nesta declaração de amor de um pai por seu único e mais que amado filho.


Tudo isso é para dizer a você que o mundo é um jardim de rodas gigantes, meu filho. Sabe aquela roda gigante do parquinho? Cada um de nós é uma delas. Somos todos rodas, rodinhas e rodonas rodando pela vida, revezando instantes lá em cima e lá embaixo, embarcando nas outras pessoas, em seus grandes círculos iluminados e em movimento, subindo e descendo.


Vez ou outra, estamos lá no topo da roda. No lugar mais alto, de onde dá pra sentir o sol mais perto, queimando nossa testa com o fogo de existir. Dali de cima dá pra ver a cidade inteira, as casas e os prédios como miniaturas de um brinquedo e as pessoas pequenininhas lá embaixo. Às vezes a roda para justo quando a gente está lá no alto. E isso é um presente. Tudo fica suspenso, o mundo congela no instante supremo, você segura o xixi e não pensa em mais nada. Porque tudo se resume àquele momento de grandeza, que, aliás, muita gente adora chamar de “paz”.


É quando sobra tempo de olhar devagar o céu e as nuvens. Dá tempo de procurar lá embaixo a direção da nossa casa. Tempo de curtir a paisagem como se o mundo todo fosse aquela sensação de desprendimento absoluto. Quando esse instante chegar, meu filho, aproveite!


Porque, claro, também há dias em que a roda gigante para com a gente lá embaixo, ou lá no meio. É quando a gente parece não ter muita importância. Quando estamos “em baixa”. Acontece. Assim como também chega a hora em que a gente deve desembarcar da roda e dar o lugar a outros passageiros.


É da vida, meu pequenino viajante. De todas as rodas gigantes do mundo, em pouquíssimas delas a gente tem cadeira cativa, perpétua, vitalícia. Quando isso acontece, a gente valoriza o quanto pode. E, olha, às vezes até esses lugares a gente perde.


Agora, tão importante quanto tudo isso é você valorizar as rodas em que embarcar. E nunca esquecer de que na sua roda gigante entra só quem você quiser. E fica só quem você escolher. Portanto, escolha direitinho e cuide bem dos seus passageiros.


Daqui, resta dizer que você é o meu passageiro preferido. É por pessoas como você que esta roda segue rodando.


Já é quase fim de ano. Divirta-se por aí e volte logo para me contar como estava a praia. Por aqui, nossa roda gigante continua esperando por você.


Feliz Ano Novo, meu filho. Um beijo e até já!


Com amor, papai.


*            *            *

CLARICE - em carta às irmãs

Trecho de carta de Clarice Lispector a suas irmãs

"1947, Berna - Suíça

(...)
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. 
Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro...há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.
Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu... 
Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força.
Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver.

Juro por Deus que, se houvesse céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer.  Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão.

Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.

Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber.  Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma.

Clarice"
*            *            *

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

ANDRÉ J. GOMES - Canção das coisas...

Canção das coisas que dormem lá fora e acordam aqui dentro
André J. Gomes - "Revista Bula" - dezembro 2013

Tem um galo cantando lá longe. 

Ele canta baixinho, tranquilo, seu canto de quem agradece a Deus pelo céu azul imenso de nuvens brancas varridas que vem aí, sob o sol alaranjado da alegria, esquentando o vento que varre das casas as angústias de ontem, que seca as roupas e renova a vida.

Tem um galo cantando. Ele canta lindo, profundo, comovido, para a mulher que em algum lugar dança sozinha de olhos fechados, pés descalços, mãos abertas e coração transbordando música e lembranças. Canta para as crianças que pulam da cama e enchem a casa de vida. 

Para quem faz bem o seu trabalho honesto, seja ele qual for. 
Canta para as pessoas esforçadas, as moças que tomam sorvete enquanto caminham com pressa na volta à lida depois do almoço.

Lá longe, um galo canta para o perfume da chuva esfriando o solo que arde de tristezas concretas e sentimentos ralos como a poeira de terra seca e pele morta. E ele canta para aquela espécie rara de gente que devolve o troco quando vem a mais.


Enquanto ele canta, um cachorro deita aos pés de seu dono triste e um gato errante, arruaceiro e andarilho retorna de seu longo e costumeiro passeio noturno para a companhia de seu amigo gente que o espera amoroso e solitário.


Tem um galo cantando lá longe seu canto perfeito e brutal. 

Ele canta para aqueles que, mesmo no fim do amor, continuam se amando tanto e tão sinceramente a ponto de rezar pela felicidade do outro em qualquer tempo, em quaisquer braços. 
O galo canta forte como a lembrança do cheiro simples de uma mangueira jorrando água e saudade no corredor de cimento do quintal pequeno, numa quarta-feira à tarde, quando até o sol cochila de amor na sesta e esquece de ir embora.

Canta para o campo enorme de futebol que o menino imagina em seu coração gigante no terreno de terra e pedra, as traves de chinelo, a bola puída passando entre as pernas de adversários invisíveis, sob os gritos da torcida que não existe. 

O galo canta para os homens e as mulheres de meia idade que voltam à escola depois de anos caminhando longe dos livros, os olhos cheios de medo e curiosidade, a alma aberta, repleta, ansiosa. 
E ele canta para a potência grandiosa da vida que nasce irrefreável em todos os cantos, a toda hora.

Tem um galo cantando lá fora. 

Ele canta para as mães e suas mães que também tiveram mães, nascidas de outras mães, com quem aprenderam a arrumar a casa como quem dá jeito no mundo, corrigindo todo erro com um amor irrefreável que se perpetua e continua e nos salva e nos censura e nos redime de nossas faltas. 
Canta para os pais que caminham ao lado de suas crianças, as mãos dadas com o cuidado de quem acompanha a última chance de salvar um mundo padecido e ameaçado pela falta de graça, a burrice, a maldade e o mal gosto.
Para quem acredita no poder das surpresas afetuosas o galo também canta. 
Ele canta alto para as pessoas que olham as outras com ternura, que adotam crianças, cachorros e novas posturas. 
Canta para os amigos que emprestam seus livros por gosto. E para aqueles que devolvem os livros emprestados, seja por cuidado, respeito ou pela mais simples vergonha na cara.

Incansável e destemido, o galo canta para os amigos que se reencontram muitos anos depois e ainda se reconhecem meninos, apesar do tempo e das rugas, no olhar de quem já tanto caminhou e ainda há de caminhar. 

Canta para a saudade doída que brota nas músicas de ontem, nos filmes revistos, em fotografias resgatadas. 
Canta para acordar a cidade deitada sob o céu que agora amanhece da noite salpicada de estrelas, como asteriscos apontando no quadro negro lembranças, recados, significados ocultos e escancaradas palavras de amor para Deus sabe quem.

E acima de tudo, ele canta para uma alma solitária no silêncio de sua alcova sonhando com a compreensão. 

Ela que tantos esperam receber e tão poucos se dispõem a dar. 
Ela que alguém diz ainda existir por aí, bela e inverossímil como a moça nativa de uma ilha distante que faz doces para melhorar a vida. 
Tão boa e tão linda. Tão linda.

Tem um galo cantando bem perto. 

Ouviu? Tem um galo cantando. 
Ele está cantando para mim e para você. Está cantando para nós e para os nossos. 
Ele está cantando aqui dentro. 
Ele está cantando para sempre.
*            *             *

domingo, 22 de dezembro de 2013

GRAÇA TAGUTI - Se falta luz no fim do túnel...

Se falta luz no fim do túnel, acenda uma lanterna
Graça Taguti - "Revista Bula"

Era mulher, homem, alguém em trânsito, metamorfose ambulante. Era nuvem passageira, melodia guardada na garganta, oxigênio asfixiado em garrafa vazia e esquecida na dispensa das saudades, arco-íris de carne e osso. É certo que perambulava, às vezes deslizando feito garça, por um túnel escuro e comprido.

Conhecia o velho ditado que sorridente afirmava, passando entre bocas anônimas “sempre há luz no fim do túnel”. Por isso, mesmo sem se dar conta, nos seus entremeios pela vida, sabia que não havia noite que durasse madrugadas adentro.

As alvoradas todos os dias se anunciavam em sua janela. Ainda que na ausência do sol. Ou na presença da chuva. Mas eram as manhãs que invariavelmente nasciam, cinzentas ou douradas, espreguiçando-se como bebezinhos um tanto atordoados.

Muitas vezes a tal mulher, ou o tal homem, ou simplesmente alguém em trânsito se questionava sobre como agir em meio à escuridão. Aludia aos  séculos passados nos quais não havia luz elétrica e as pessoas se contentavam com candeeiros, candelabros, bengalas e olhe lá.

De repente, uma metamorfose ambulante pensou. E se eu engolir um par de vagalumes. Talvez pérolas negras. Ônix, aquela pedra preciosa negra, quase sisuda, mas linda e poderosa.

Sim porque, dentre tantos transeuntes entorno, simbolizados inúmeras vezes pelas figuras de linguagem que nos cercam; arremedos, por exemplo de nuvens passageiras, sabiam que, em determinados momentos, e até em encruzilhadas assustadoras, era possível enxergar coisas e situações com outros olhos. Os olhos de dentro.

Certa vez, uma melodia guardada na garganta, ao enfrentar impiedosa nevasca em território americano, notou que as pessoas dirigiam seus carros, guiadas por outros faróis. Faróis de neblina com alguns acessórios acoplados.

Um arco íris em carne e osso recordou também de uma época em que,  ao exercer a função de repórter, como jornalista de uma grande editora, entrevistara gente com deficiência visual grave, inclusive um casal de cegos de nascença, casados já há muitos anos.

“E como vocês fazem para encontrar o que necessitam em casa…para fazer amor…manter as esperanças de pé, quando parece que o mundo virou do avesso ou resolveu deixar vocês para trás?!”

“Como é possível enxergar luz ao final dos túneis da existência, pelos quais invariavelmente todos passamos?” Outra metáfora foi lançada pelo irisado repórter aos gentis entrevistados.

Damos as mãos, caminhamos pelas beiradas do concreto longo e frio. Às vezes minha mulher segue à minha frente, desvendando oportunidades no trajeto. Em outras ocasiões, eu assumo a dianteira durante este percurso” — explicou o marido.

Ambos cegos de nascença, mas sedentos por cultura, cultivaram desde cedo o hábito de escutar audiolivros. Aprenderam muito. Ressaltaram o  fato, quase ao final da entrevista, citando grandes criadores em áreas diversas das artes, ciência, literatura, portadores de enormes desagravos físicos, terem enfrentado com audácia e tenacidade transtornos do destino.
Como Beethoven, o magistral compositor, cujas algumas de suas mais portentosas obras surgiram durante o processo de surdez irrevogável. Ou o escritor argentino, Borges, portador de cegueira hereditária, que começou a ficar cego na infância, devido a uma degeneração genética da retina, herdada do pai. Os espelhos, aliás, refletindo a procura da identidade, eram um tema recorrente em sua obra.

Outra moça, como se tivesse deixado por longo tempo sua capacidade de respirar, o oxigênio asfixiado em uma garrafa vazia e órfã, nos contou que sofrera, aos 37 anos, sério acidente de carro, exatamente quando atravessava após mais um dia de trabalho, um túnel pouco iluminado. Linda, feliz, generosa, sempre amada, a moça, professora de educação física, ficou paraplégica.

Sim, trágico. O mais fácil, lamber feridas, se auto vitimizar, passar a cozinhar em fogo lento rancores no espírito revoltado. Mas não. Ela nascera para encarar a vida sem dó nem piedade. Ainda que frequentemente surgissem em seu caminho percalços como esse, irrevogavelmente danosos.

A moça começou a ajudar cadeirantes, preparando-os para torneios de basquete paraolímpico. Em meio aos treinos, conheceu alguém, técnico de outra equipe. “Quando a luz dos olhos meus encontra os olhos teus” a música soou baixinho, quase sem querer se anunciar, no peito de ambos.

A paixão esticou os braços para o alto, à espera do amor, que aos poucos aterrissava entre os dois. Seu namorado não possuía qualquer problema físico. Mas também não tinha encontrado uma companheira bacana de verdade, até se deparar com a alegria, energia e graça desta brava criatura.

Atravessar túneis longos e escuros, reais ou imaginários, acreditando haver luz ao término do percurso é no mínimo algo ingênuo.  A não ser quando se trata de vencer enormes desafios íntimos. Pois a morte, em aparente desgoverno, dissimulada como o véu preto e soturno que a recobre, pode cruzar conosco. Assim é preciso estar atento e forte. Não acreditar em milagres a torto e a direito já é um passo e tanto. Porque muitas vezes eles precisam das nossas mãos do nosso cérebro e do nosso coração para se manifestarem.

Então, que tal andar por aí, pelo menos, sempre com uma lanterna?


*            *            *

sábado, 21 de dezembro de 2013

MÁRIO QUINTANA - Bilhete (Natal)

BILHETE 

Ora, como dizia o festejado 
arqui-sofista Valerius: 
"O Universo é uma nódoa 
na perfeição do Não-Ser"... 
Relembro isto ao tentar mandar-te 
- ante a pureza intocada 
desta página - 
uma mensagem 
de Natal. "Mas" 
- diz-me a página, "essa mensagem 
foi mandada há muito (pergunta 
aos três Reis Magos 
se não foi...)" 
Ah! sim, eles tinham a Estrela! 
Mas onde é que ela está? 
A gente por aqui só encontrou depois 
estrelas pirotécnicas 
estrelas-do-mar 
estrelas de generais. 
Melhor não falar e 
- em vez de escrever 
qualquer palavra que macularia 
uma pobre página, ainda nuinha 
como a verdade - 
será bom apenas desenhar 
coisas 
sem nenhum conceito 
para atrapalhar... 
Hoje, 
dia de Natal, 
eu desenharia pois 
toscamente - 
nesta página 
a Virgem, o Menino, o burrico... 
- imagina 
o bem que isso nos faria aos dois...
Porque então, 
eu não estaria 
te mandando uma idéia 
apenas...
Eu te mandaria uma Visão!

Mario Quintana in: Da Preguiça como Método de Trabalho - 1987

Bilhete
Mário Quintana

Ora, como dizia o festejado 
arqui-sofista Valerius: 
"O Universo é uma nódoa 
na perfeição do Não-Ser"... 
Relembro isto ao tentar mandar-te 
- ante a pureza intocada 
desta página - 
uma mensagem 
de Natal. "Mas" 
- diz-me a página, "essa mensagem 
foi mandada há muito (pergunta 
aos três Reis Magos 
se não foi...)" 
Ah! sim, eles tinham a Estrela! 
Mas onde é que ela está? 
A gente por aqui só encontrou depois 
estrelas pirotécnicas 
estrelas-do-mar 
estrelas de generais. 
Melhor não falar e 
- em vez de escrever 
qualquer palavra que macularia 
uma pobre página, ainda nuinha 
como a verdade - 
será bom apenas desenhar 
coisas 
sem nenhum conceito 
para atrapalhar... 
Hoje, 
dia de Natal, 
eu desenharia pois 
toscamente - 
nesta página 
a Virgem, o Menino, o burrico... 
- imagina 
o bem que isso nos faria aos dois...
Porque então, 
eu não estaria 
te mandando uma idéia 
apenas...
Eu te mandaria uma Visão!

*            *            *

In: "Da Preguiça como Método de Trabalho" - 1987

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

DANIEL LOPES - Mas não façamos literatura

Mas não façamos literatura
Daniel Lopes, 19 de dezembro de 2013 - página "Homo Literatus"

Há muito desconfio da literatura. 
Difícil acreditar que foi minha maior paixão da juventude. Discussões acaloradas, sonhos galopantes, o futuro sorrindo cheio de generosidade, feito um gerente de banco… 
Agora, mal consigo ler qualquer descrição. Claro, há escritores e escritores, mas o que espero de um bom escritor é que ele esteja morto, enterrado, há sete palmos. 
Mal pego um livro e logo pressinto por trás dele um ego doente, um ser humano insuportável, como eu mesmo. 
As biografias dos grandes estão aí para confirmar. A genialidade de Shakespeare é não existir. 
É preciso ousar o fracasso, mas vivemos num tempo em que tudo é fabricado. A cultura é uma indústria como qualquer outra, e o que mais se vê são escritores dispostos a vender sua ferida, trair seu texto, em prol de uma edição em capa dura, uma resenha, um prêmio literário. O que importa é estar no mercado, vender-se, fazer sucesso, alimentar o ego monstruoso, encher-se de honrarias.

Ninguém gagueja, todos empregam a palavra certa na hora certa, são econômicos, todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo, sim senhor. 
A resenha já está pronta antes mesmo do livro, o prêmio já está concedido antes mesmo do sujeito começar a escrever. 
Só um colegial ingênuo para acreditar na imparcialidade dos concursos literários.  
Mas aí? E a Arte? E o blues? E o drama da nossa mortalidade? E o silêncio ou a tagarelice dos deuses? 
Pouco importa. O importante é estar na moda, fazer sucesso, aparecer, desfilar. Ainda assim, há choro e ranger de dentes: os livros não vendem. As pessoas preferem ler a biografia do Edir Macedo, duzentos e cinquenta mil tons de cinza. 
Não é um problema nosso, não é um problema de educação, o mundo é estúpido, brega. Na França, lê-se tanta porcaria quanto aqui. Discute-se o livro eletrônico, o kindle, o escambau. 
Como fazer com que as pessoas leiam? 
Um livro não pula, não dá cambalhota, não tem botõezinhos virtuais. 
É preciso que o sujeito se sente e leia e enfrente a noite. 
O comércio propõe livros cada vez mais superficiais. Os ficcionistas da moda procuram acatar. Por enquanto ainda não deu certo.

Há muito desconfio da literatura. 
Discussões estéticas, formalismo, esteticismo. Tudo o que cerca a literatura é afetado, falso. 
Admiro escritores (desde que estejam longe de mim), mas detesto literatos. 
O escritor se preocupa com a vida, com a travessia, com a dor e o mistério de ser e de saber o ser, procura no leitor um amigo. 
O literato se preocupa com a repetição ou não de palavras, com a forma mais criativa de dizer o óbvio, com o cocktail na noite de lançamento, procura no leitor um cliente. 
Não é para menos, com o espírito reduzido a sinapses cerebrais, o carinha criativo tomou o lugar do gênio. O livro é feito de acordo com o pensamento do especialista. No entanto, é o artista e não o especialista, quem faz o novo. 
Nossa vanguarda é velha, museu de grandes novidades, códigos ocos sob a análise de sempre, eterno retorno do mesmo. 
A escrita feita acessório para a vida, como uma bela gravata, ou um cachecol; não a tábua de salvação para quem se encontra no mar, a jangada da medusa; não a fenda por onde jorra o magma entre as placas tectônicas; não o fogo que aquece dois mendigos numa noite de chuva… 
O absurdo de um escritor sem necessidade de escrever, mas que escreve porque sonha ser celebridade. 
A ficção é uma mentira que toca a verdade onde a verdade não alcança, onde nem o ficcionista sabe.

Não é no macaco que o homem se realiza, é no símbolo, no mito. Como fabricar o mito? O mito é natural como uma semente que desabrocha, como um Deus na ruína. 
Tudo pode ser construído, para que deuses, eles dizem, se um medicamento cura o espírito? Para que a sombra e o verde se já existem árvores artificiais? Para que amor se já existe o viagra? Para que o rosto se existe o botox? Para que a Arte se o leitor é uma ovelha do marketing? 
A ficção é, aqui, hoje, um constructo de fora para dentro. 
Há de chegar o dia em que se escreverá não uma resenha sobre um livro, mas um livro sobre uma resenha.

Há muito desconfio da literatura, quebra cabeça com palavras, lego para crianças científicas. 
Digo não ao texto que não é companhia, partilha, travessia, alta ajuda para a vida. 
Digo não ao que escreve e não põe os pés no riacho, não sai na chuva, não arrisca ser si mesmo.

Kierkegaard , filósofo da existência, distingue três modos de vida, o estético, o ético e o religioso. 
A Literatura é concubina do modo estético, o mais superficial. Acho que por isto certas narrativas, certas descrições, têm me entediado tanto. Boa parte do que se escreve não é espelho e escuridão, nem mesmo espelho e lâmpada. Não há diferença entre tais textos e a mulher que se preocupa com a cor dos cabelos, o desenho da sobrancelha, o botox na ruga da testa, mas que quando abre a boca só diz merda, é oca, não sabe experienciar a si mesma e está tão distante da própria alma quanto um cuspe de uma estrela. 
Por muito tempo fui apaixonado por literatura, mas, como toda paixão, passou. 
Apaixonei-me também por filosofia, passou, da mesma forma (menos Schopenhauer). 
Sem o jargão imponente, boa parte do que é chamado de filosofia não passa de encheção de linguiça, pretensão de colocar margens no mundo. 
Agora tenho lido textos religiosos, das mais variadas crenças, bula de remédio, cartas, diários e autobiografias. Interesso-me pelo modo como as pessoas decidem viver suas vidas, que caminhos decidem tomar, de que maneira atravessam os períodos negros. 
A última autobiografia que li, do Neil Young, tem o seguinte prefácio: “QUANDO EU ERA JOVEM, eu nunca sonhei com isso. Eu sonhei com cores e quedas, entre outras coisas.” 
Belo, não?

Para encerrar, cito não uma novela de um poeta, mas a carta final de um ficcionista:

Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registradamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que pode dispor para todos os fins como se fosse seu. [...] Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente, deito-me para debaixo do metro… Não se zangue comigo.[1]

Sinto aqui a voz do sangue.

[1] Mário de Sá-Carneiro em carta a Fernando Pessoa, 31/03/1916.


*            *            *

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Natal na Barca - Lygia F. Telles

Natal na barca
Lygia Fagundes Telles

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. 
Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. 
Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão. 
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. 
Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta: 
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: 
— Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera? 
— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. 
Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada.
Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. 
Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. 
Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou. 
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão: 

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! 
Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. 
E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. 
O menino estava morto. 
Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim 

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. 
Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia: - Chegamos!... Ei! chegamos! 

Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?! 
Ela sorriu: 
— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. 
Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. 
Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

*            *            *

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Memórias quase vivas - Fotos de NIKI FEIJEN

Congeladas no Tempo
Eme Viegas - Página "Hypeness"

O fotógrafo holandês Niki Feijen andou pela Europa em busca de prédios, casas ou igrejas abandonadas, dando origem à série Disciple of Decay (Discípulo da Decadência). 
Apaixonado pela “exploração urbana”, Feijen nos oferece imagens que preservam o sinistro e fantasmagórico lado dos lugares vazios.

Algumas ainda têm as camas feitas, os edredons dobrados e os livros empilhados na prateleira. 


Não fossem as paredes descascadas, as janelas quebradas, os tetos prestes a desabar, as manchas de umidade ou a sujeira envolvente, diríamos que as casas fotografadas por Niki Feijen ainda esperam seus donos chegar. 
A verdade é que eles as abandonaram há muito.

DiscipleDecay4

Seja por que os donos e proprietários faleceram, ou por simples abandono, estes espaços ficaram largados, virando lar de bichos, insetos e objetos empoeirados.

É sempre curioso pensar como, um dia, todas estas casas já se encheram de vida.

DiscipleDecay1

DiscipleDecay3

DiscipleDecay8

DiscipleDecay10

**

Casa Abandonada
Cáh Morandi 

 “É que agora – aqui dentro – a casa foi ficando meio empoeirada, como se toda essa mobília sentimental não tivesse sendo mais usada, a janela foi deixada aberta e tanto vento foi passando, levando as cores dos retratos e deixando o pó como ressarcimento.

Aqui em casa não tem mais conforto, tudo virou incômodo, e às vezes nem em casa eu me sinto. 

Não tem mais abraço, não tem mais teto para pintar de sonhos toda a noite, nem tapete colorido para deitar no domingo.

Tudo daqui foi sumindo, não tem mais ninguém nessa casa, só um eco se espalha quando eu volto e os passos ficam rangendo o assoalho, e fica uma sensação estranha de ver cinza onde tudo foi festa e euforia.

Na porta de entrada eu sempre pedia um beijo, até que um dia o beijo foi de despedida.”

*            *            *


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Astrofísica poética - Reportagem

Concepção artística da passagem da sonda Juno pela Terra
Concepção artística da sonda Juno

O Balé do Pálido Ponto Azul e Sua Lua
Salvador Nogueira - Jornal "Folha de S.Paulo", 11-12-2013    


É impossível não sentir um arrepio quando vemos a nossa Terra de longe. 
Como diria o saudoso astrônomo Carl Sagan, é apenas um “pálido ponto azul” na imensidão do cosmos. 
Você já imaginou o que veria pela janela de uma nave caso estivesse viajando na direção da Terra, vindo do espaço profundo? 
Pois não precisa mais imaginar. A sonda Juno, da Nasa, acabou de filmar isso para nós. 
Confira o vídeo.




O encontro, que revela o bonito balé da Lua girando ao redor da Terra, teve seu momento de máxima aproximação no dia 9 de outubro. 

Obviamente, o vídeo integra mais de uma semana de viagem em poucos minutos, mas é de tirar o fôlego (a música original composta por Vangelis para ele também ajuda um bocado). 
Quando a Terra é avistada na imagem, a Juno está a cerca de 1 milhão de km de nós (cerca de duas vezes e meia a distância daqui até a Lua). Ao passar de raspão por nosso planeta, chega a estar a meros 559 km da superfície terrestre.

As imagens foram registradas por um instrumento da Juno projetado para detectar estrelas muito sutis. É o que permite detectar a Lua na mesma imagem, mesmo ela sendo bem menos brilhante que a Terra. Em compensação, as imagens têm baixa resolução, o que fica evidente conforme a sonda se aproxima mais de nosso planeta.


Lançada da Flórida em 5 de agosto de 2011, ela foi até o cinturão de asteroides e voltou. 
Ao sobrevoar da Terra, ela usa o campo gravitacional do planeta para acelerá-la, qual fosse um estilingue, na direção de seu destino final: Júpiter.

Lá, a Juno entrará em órbita polar ao redor do maior dos planetas do Sistema Solar, com o intuito de revelar os segredos das entranhas desse mundo, permanentemente escondidos por nuvens espessas. 
Daí a escolha do nome para a missão. Na mitologia romana, Juno era a esposa de Júpiter, sempre a vigiar e desfazer o véu de trapaças criado por seu marido insistentemente infiel. (Na mitologia grega, os dois deuses eram conhecidos como Hera e Zeus.)

A sonda deve chegar a Júpiter em 5 de julho de 2016. 



*            *            *

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Aniversário Nascimento de CLARICE - 93 anos


Clarice Lispector
Tchetchelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977

Uma Aprendizagem: Amar é...Ser
Carol Lobo -  in "Obvious"

, abraços partidos, beijos emprestados, mãos espalmadas tornam-se espanto, e o riso de ontem é a lágrima trágica de hoje. 
Assim os relacionamentos modernos acabam, líquidos escorrendo entre os dedos. 
Mas não, isso não é um texto de análise sobre o amor contemporâneo, nem uma crítica aos relacionamentos da pós-modernidade. 
Esse é um relato apaixonado sobre aprendizagem, ou melhor, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector.

Mais do que um romance sobre o encontro com a cara-metade, a alma gêmea ou qualquer propaganda enganosa dessas, é uma narrativa sobre a espera, o autoconhecimento, a iniciação naquilo que talvez seja a procura de toda uma vida: o amor. 
Não importa tanto o “encontrar” e sim a “aprendizagem” experimentada vertiginosamente durante a busca. 
Engraçado porque eu percebo um desespero das pessoas em encontrar o amor, como se isso fosse resolver todas as faltas e buracos existenciais, quando o mais prazeroso, para Clarice e para Lóri (a personagem em formação), é a aventura da busca, para encontrar-se consigo mesmo em face do outro.

E é para realizar esse encontro que Clarice inverte a história da Odisseia clássica e coloca Ulisses (o personagem mitológico transformado em simples homem) à espera de Lóri. 
Sim, é ela quem faz uma viagem ao mais profundo de si mesma, para se conhecer, se amar, ter consciência de Ser para ser ao lado de outra pessoa. 
Essa aprendizagem é que a coloca em contato consigo, compreendendo-se e amando-se intensamente para, então, olhar e enxergar o amor no outro.

O amor, portanto, começa em cada um para depois encontrar-se no e com o outro. 
Difícil empreitada para aqueles que acreditam que amar é apenas gostar do outro, com força, pra sempre e blábláblá, que a vida só faz sentido com a presença do ser amado, que essa pessoa é a inspiração de toda uma existência… Não. 
Repito: O coração tem que se apresentar Sozinho diante do nada. 
É amando-se sozinho, flertando com a solidão, que podemos então dá-la de presente a alguém. Temos que aprender a ficar sozinhos e a ouvir o silêncio, afinal “o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.”

Ainda perguntam para que serve Literatura? Para aprender a ser. E aqui aprender a aprender.

Lóri sabe que sua busca não é fácil. 
Como ser o que se é? Ela não quer cair nos braços de Ulisses antes de conhecer os seus limites como mulher e como ser humano. E, quando se encontra consigo mesma e com o amor, ainda assim, sua história não termina com ponto final. 
Ela já começou com vírgulas – pois cada um viveu seu antes, seus pedaços de pequenas histórias -, e termina com dois pontos, ou seja, os caminhos de Lóri e Ulisses encontraram-se e chegaram ao fim, o que, para Clarice, é a porta de um começo.

Amor é isso:
*            *            *

ARY DOS SANTOS - Quando um homem quiser

Quando um Homem Quiser
Ary dos Santos
Portugal, 1937 - 1984

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão 

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão 

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher 

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão 

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão 

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

*            *            *

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

RAIMUNDO CORREIA - Mal Secreto

Mal Secreto
Raimundo Correia

Se a cólera que espuma, a dor que mora
n’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
tudo o que punge, tudo o que devora
o coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
ver através da máscara da face,
quanta gente, talvez, que inveja agora
nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
guarda um atroz, recôndito inimigo,
como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
cuja ventura única consiste
em parecer aos outros venturosa!

*               *               *

domingo, 8 de dezembro de 2013

HELENA KOLODY - Nunca e Sempre

Nunca e Sempre
Helena Kolody 

Sempre cheguei tarde 
ou cedo demais. 
Não vi a felicidade acontecer.

Nunca floresceram 
em minha primavera 
as rosas que sonhei colher.

Mas sempre os passarinhos 
cantaram e fizeram ninhos 
pelos beirais 
do meu viver. 

*        *       *

sábado, 7 de dezembro de 2013

Sobre CHICO BUARQUE - Luciana Chardelli

Foto

EU NÃO SOU SUA MENINA, VIU? MAS ADORO QUANDO ME ROÇAM A NUCA.
Luciana Chardelli - "Obvious", 07 de dezembro 2013

Adoro os olhos de Chico Buarque, mas não dou gritinhos quando os vejo, não vou a seus shows, nem compro seus CDs. 
Na verdade não sei se gosto de Chico Buarque, entretanto, não posso negar que Chico com suas letras pariu todas as mulheres em canto e em verso, inclusive a mim que já invejei Beatriz.

As mulheres dos versos de Chico pulsam, derramam leite. 
São mulheres que, amam, choram, gozam, têm um tufão nos quadris e cortam cebolas. 
Mulheres de Atenas, de Ipanema, do trem lotado, do asfalto, do morro carioca.

Já descobriram que Chico não é mulher, mas seu olhar, definitivamente, está inteiro sobre as mulheres, contrário fosse não conseguiria cantar em tons tão seus, dimensões absolutamente femininas.

De Beatriz a Yolanda, todas são um pouco Rosa. 
Atire o primeiro CD, Vinil ou Ipod aquela que nunca desejou, depois de noites mal dormidas, dizer ao pé do ouvido de quem um dia lhe disse adeus, a frase cortante: “Quantos homens me amaram bem mais e melhor que você”. Aliás, esta é aquela frase que uma mulher não esquece e espera o tempo que for pra dizer, ainda que só possa ser dita para as amigas no lanche da tarde.

Chico sabe, e quem um dia amou sabe também que por vezes amamos devagar e urgentemente, como em uma despedida moto contínuo. Sabe que é preciso não dormir até se consumar o tempo
No embalo de tamanha delicadeza até quem não é sua menina cede a seus encantos.

Há algo de misterioso em Chico Buarque, essa condição de falar pelas mulheres e também pelos homens chama mais a atenção do que seus olhos. 
Com seu paletó, Chico, enlaça vestidos e despe delicadamente todas as mulheres. 
Com frases nascidas com a vocação de declarar, confessa como uma mulher arrebatada.

Chico me confunde. Eu realmente não sei se gosto de Chico Buarque. 
Sei que não preciso saber, mas fico um pouco afobada com esses descompassos, com esses despropósitos, digo para mim mesma: “Não se afobe não que nada é pra já”, mas acho bastante confuso não gostar gostando ou gostar não gostando. 
Não tenho nenhuma de suas músicas em meu carro, Ipod, Vitrola ou CD. Não vou a seus shows, não frequento o bloco Mulheres de Chico, mas sei cantar todas as suas músicas, as músicas de Chico todas as mulheres sabem cantar. 
A propósito sei que Chico nunca cantou meu nome. 
Pode ser que eu goste de Chico, não sei. Talvez eu goste muito de Chico. Gosto dos olhos de Chico, “na soma do seu olhar” gosto de Chico inteiro. 
Talvez eu até assuma no último momento “feito uma gema me desmilinguindo toda” que realmente gosto muito de Chico.

Tantas palavras que ela gostava e repetia só por gostar”.

*            *            *
Foto
Agora, eu:
Eu gosto muuuuito do Chico compositor, do Chico letrista, do Chico intérprete;  não gosto muito do Chico cantor, do Chico escritor (embora tenha lido dois dos seus livros: "Estorvo" e "Leite derramado").
Não me interessam suas convicções políticas nem sua vida pessoal.
Gosto de ouvi-lo falar, sendo entrevistado, mesmo com aquela fala entrecortada, mesmo gaguejando, se enrolando todo, gosto de ouvi-lo.
Sim, eu gosto MUITO do Chico Buarque.

*            *            *

A Estátua - Augusto Sérgio Bastos


drummond_33
A Estátua
Augusto Sérgio Bastos


          “No mar estava escrita uma cidade.” 
           Carlos Drummond de Andrade


Ser estátua 
não é pedido que se faça. 
E ele nem pediu.

No banco de pedra, de costas pro mar, 
pensa a cidade. 
Acolhe pombos e aves agourentas.

No meio-dia branco de luz, 
o menino permanece sozinho. 
O homem atrás dos óculos 
quer a sombra de amendoeiras. 
Tem oitenta por cento de ferro na alma. 
Cem por cento de bronze na eternidade.

Alguns anos viveu no Rio de Janeiro, 
serviu à cidade 
que agora de nada lhe serve.

Ao povo sem memória, 
a história mais bonita, 
comprida história que não acaba mais.

*            *            *

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PARA NELSON MANDELA - André J. Gomes

Nelson+Mandela-620x400
Canto de gratidão àquele que parte 
e de boas-vindas àquela que chega
André J. Gomes - Revista Bula, 06 de dezembro 2013


Dali, do alto de sua casa minúscula, suspensa, entupida de papéis e sombras, roupas e móveis, sonhos e esperanças, achados e perdidos, ele olha a gente que caminha lá embaixo. 

Entre um edifício e outro, homens e mulheres atravessam a avenida correndo na frente dos carros, as bolsas a tiracolo, o coração na boca, os projetos de vida parcelados a perder de vista.

Seu olhar passeia pela rua como quem agradece a Deus pela cor azul e a jabuticaba, corre em ziguezague, pisa nas poças, sobe nas árvores, pula por sobre os latões de lixo. 

Seus olhos destemidos entram e saem, vão e voltam, fazem e acontecem feito dois pistoleiros gêmeos do velho oeste, corajosos, incansáveis. 
De repente, ele para o olhar ofegante sobre um pai amoroso que joga bola com o filho pequeno, e aquele amor operário, cuidador, sublime e verdadeiro lhe espeta a membrana suave que envolve a alma. Até perfurá-la profundamente.

Agora, a ele só resta ver vazar-lhe pelo furo o conjunto de suas lembranças e sonhos, suas faltas e seus acertos, seus amores, suas saudades, suas dúvidas e suas dívidas. 

Um a um, vê surgirem lá de dentro seus pesares e alívios, sua vergonhas, seus orgulhos. Enfurecida, forte e resoluta, a corrente de sentimentos represados alarga o furo, rompe o dique e inunda o mundo inteiro que vai até onde a vista alcança.

Enquanto sente a alma esvaziar aos poucos, ele espreita lá embaixo os cachorros em suas coleiras, dispensando suas misérias na calçada sob o olhar dissimulado de seus donos prontos a esquecer a própria sujeira para trás.


Olhando os catadores de papel e sucata, as carroças repletas de entulho, ele pensa em seu próprio lixo. 

Observa suas lembranças ressentidas caindo de suas gavetas, seus rancores liberados, suas inseguranças, sua incapacidade de dizer tudo, seus pequenos desastres domésticos, sua vergonha na cara. Sua dolorosa dificuldade de aceitar o que é pouco e raso e pequeno.

E assim, com os olhos ora na vida que passa lá embaixo, ora em seu mundo que lhe escapa liquefeito formando uma imensa poça no chão, ele pensa naqueles que partem sem avisar. 

Pensa em todos eles, relembra seus rostos, resgata suas vozes, restaura sua importância. 
E se dá conta do quanto todos eles sempre estiveram ali, impregnados no conteúdo simples de sua alma.

Olhando a rua e ouvindo a vida, ele pensa nos que já foram, nos que estão e nos que ainda virão. E sonha com uma linda menina de Aquário que ora existe, ora não. 

Em pensamento, diz seu nome sonoro como um canto e acha engraçado seu apelido. 
A moça linda que mora em outra cidade e sorri apertando os olhos e o empurra para a vida, como criança que brinca de assoprar um fiapo de algodão para o vento.

E quando toda a sua alma se esvazia, ele olha a rua lá embaixo e se sente leve, e se vê livre.


Ele, o velho pássaro negro que passara a vida preso na gaiola apertada de uma varanda ridícula olhando a vida lá fora, do alto de sua casa minúscula, suspensa e entupida de papéis e sombras, roupas e móveis, sonhos e esperanças, achados e perdidos. 

Ele agora está livre de olhar o mundo de dentro das suas grades. 
Livre para estar com aqueles que caminham lá embaixo. 
Livre para esperar a menina de Aquário que vive em outra terra. 
Ele agora está livre. 
Fly, blackbird. Fly.

Para Nelson Mandela.



*            *            *

MIGUEL TORGA - Abre a janela

Abre a janela
Miguel Torga

Abre a janela, e olha!
Tudo o que vires é teu.
A seiva que lutou em cada folha,
E a fé que teve medo e se perdeu.

Abre a janela, e colhe!
É o que quiser a tua mão atenta:
Água barrenta,
Água que molhe,
Água que mate a sede…
Abre a janela, quanto mais não seja
Para que haja um sorriso na parede!

*            *            *

RUBEM ALVES - Pensamento e problema

Todo pensamento começa com um problema 
Rubem Alves

Note algo muito curioso. O defeito é que faz a gente pensar. 
Se o carro não tivesse parado, você teria continuado sua viagem calmamente, ouvindo música, sem sequer pensar que automóveis têm motores. 
O que não é problemático não é pensado. 
Você nem sabe que tem fígado até o momento em que ele funciona mal. Nem sabe que tem coração, até que ele dá umas batidas diferentes. 
Você nem toma consciência do sapato, até que uma pedrinha entra lá dentro. 
Quando está escrevendo, você se esquece da ponta do lápis até que ela quebra. 
Você não sabe que tem olhos — o que significa que vão muito bem. Você toma consciência deles quando começam a funcionar mal. 
Da mesma forma que você não toma consciência do ar que respira, até que ele começa a cheirar mal... Fernando Pessoa diz que “pensamento é doença dos olhos”. É verdade, mas nem toda. O mais certo seria “pensamento é doença do corpo”.
A gente pensa porque as coisas não vão bem — alguma coisa incomoda. 
Quando tudo vai bem, a gente não pensa, mas simplesmente goza e usufrui...

Todo pensamento começa com um problema.

Quem não é capaz de perceber e formular problemas com clareza não pode fazer ciência.
Não é curioso que nossos processos de ensino de ciência se concentrem mais na capacidade do aluno para responder? 
Você já viu alguma prova ou exame em que o professor pedisse que o aluno formulasse o problema? 
O que se testa nos vestibulares, e o que os cursinhos ensinam, não é simplesmente a capacidade para dar respostas? 
Frequentemente, fracassamos no ensino da ciência porque apresentamos soluções perfeitas para problemas que nunca chegaram a ser formulados e compreendidos pelo aluno.

Qual é o problema?
O carro parou. Você deve descobrir o que está errado.
Mas o que é isso?
Você sabe que o automóvel, tal como foi planejado, é uma máquina ideal que funciona perfeitamente. Antes de ser transformada em peças, engrenagens, tubos, parafusos, ela foi construída idealmente, na imaginação, por pessoas que foram capazes de simular o real. 
Esta é a grande função e o poder mágico do pensamento: ele pode simular o real, antes que as coisas aconteçam. 
Mas nesse modelo ideal do automóvel não há defeitos. Eles aparecem quando a máquina real se desvia do plano ideal. 
Ora, seu problema é fazer com que o carro ande novamente, isto é, fazer com que funcione conforme foi idealmente planejado. 
Isso significa que você só pode resolver seu problema se for capaz de reconstruir, idealmente, o plano da máquina. 
A partir desse modelo você poderá inspecionar, mental­mente, os possíveis defeitos no funcionamento do automóvel.
*            *            *