sábado, 28 de fevereiro de 2015

Conto "O Duelo" - Guimarães Rosa

Do site "Arte Médica" , de Renata Calheiros Viana - espetacular!

Cardiopatia Reumática em Conto de Guimarães Rosa



Uma apetitosa aula de insuficiência cardíaca congestiva conseguinte a cardiopatia adquirida da febre reumática é encontrada no conto O Duelo (Sagarana), de Guimarães Rosa. 


A cardiopatia reumática crônica (CRC) é uma complicação da faringoamigdalite causada pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A e decorre de resposta imune tardia a esta infecção em populações geneticamente predispostas. A febre reumática afeta especialmente crianças e adultos jovens. O acometimento cardíaco é caracterizado pela pancardite, entretanto são as lesões valvares as responsáveis pela síndrome e prognóstico.

[...] porque o Cassiano Gomes não dera baixa da polícia à toa, e sim excluído pela junta médica; e, apesar do seu garboso aspecto, não lhe prestava para muito o coração.

Não é à toa, porém, que um cavaleiro, excluído das armas por causa de más válvulas e maus orifícios cardíacos, se extenua em raids tão penosos, na trilha da guerra sem perdão.

O personagem roseano Cassiano Gomes, dispensado do exército devido às "más válvulas e maus orifícios cardíacos", teria o coração acometido pela cardiopatia reumática, evoluindo mais tarde para um quadro de insuficiência cardíaca congestiva: 

Pois foi lá que Cassiano Gomes teve o seu desarranjo, com a insuficiência mitral em franca descompensação. Desceram-no do cavalo e deram-lhe hospitalidade.

A lesão mitral descrita por Rosa corrobora com o diagnóstico de febre reumática, sendo esta valva a mais frequentemente acometida na doença. 

Cassiano, perseguindo por vingança Turíbio Todo durante longas cavalgadas, manifesta o edema em membros inferiores e a dispneia aos esforços característica da insuficiência cardíaca congestiva:

Cassiano sentiu que, agora, ao menor esforço, nele montava a canseira. E, do meio dia para a tarde, não podia mais ficar calçado, porque os tornozelos começavam a inchar.
Foi ao boticário e pediu franqueza. – Franqueza mesmo, mesmo, seu Cassiano? O senhor... Bem, se isso incha de tarde e não incha nos olhos, mas só nas pernas, é mau sinal... - Pra morrer logo? - Assim sem ser ligeiro... Lá pra o São-João do ano que vem...Mas já indo empiorando um pouco, aí por volta do Natal.

Mas não pode dar mais de três passos: cambaleou e teve de sentar-se à porta do cafua; e foi ali sentado que passou a passar todo o tempo, dia pós dia, com o peito encostado nos joelhos e, por via dos hábitos, com a winchester transversalmente no colo e a parabellum ao alcance da mão.

A posição “tronco elevado” assumida pelo personagem, evitando a horizontalização do corpo, aliviaria a dispneia pela melhora da capacidade respiratória. O edema, devido a gravidade, fica mais pronunciado nos pés, acometendo menos a face. 

E ele foi para um Jirau, com a barriga de hidrópico e a respiração difícil de um cachorro veadeiro que volta da caça. [...] Em volta dos lábios laivos azulados, e a doença lhe esgarçava o coração.

A cianose (“lábios lavios azulados”, a dispneia em repouso (“respiração difícil de um cachorro veadeiro”) bem como a ascite ("barriga de um hidrópico") faz parte do quadro terminal da insuficiência cardíaca. 

A poética descrição clínica da doença exala a essência médica no escritor Guimarães Rosa que, mesmo após abandonar o exercício da medicina, conserva a sensibilidade diagnóstica tão viva quanto suas personagens.
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Postado por Renata Calheiros Viana às 16:03 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

HIRONDINA JOSHUA - As águas do tempo

Da página 'CONTI OUTRA arte e afins'

Gorongosa, Moçambique
AS ÁGUAS DO TEMPO
Hirondina Joshua (*)

Chegamos cedo ao Parque Nacional de Gorongosa. Queríamos anteceder o Sol que naquele dia se fazia primeiro.
─ …Eu definiria a água deste lugar, como a água que já tivesse percorrido o Universo, mas sem que ela própria o tivesse feito. O olhar me leva à posição de uma tal capacidade metafísica de ver e compreender a maravilhosa paisagem do conhecimento absoluto: entender a linguagem da água, o corpo e o verbo da sua molécula.
Sentei no horizonte como se Ser do horizonte fosse, estendendo distâncias à Vida.
A água me significou tudo. Era o planeta todo em estado de transcendência, mundos em estado de (di) fusão. 
Aconteci. Todo o instante que ali me fiz, inventou-se em mim a Terra : e crescia dentro e fundo e imaculado na razão mística da existência. Olhava o azul em todos os seus tons alguns até que se confundiam com o verde, os sons eram música sem pauta. Rítmicas e de uma tal perfeição que movia os ouvidos da emoção.
Enquanto pensava alto, ouvia o som da água, relaxando a carne interior. 

─ Vamos para outra direcção…há mais coisas fascinantes do outro lado. O meu colega já vinha a incomodar com aquele ar grave e irritado.

Eu não podia crer no que via, nem muito menos deixar de o fazer. As águas azuis transcendiam o verde que prezo, os montes, e todo o resto…Era a água a falar, eram os sons a dialogar, eu não via mais nada diante de mim senão o Ser azulado em que transformava. 

─ Vou mesmo embora. Estás a ouvir-me? 

Aquela voz irritante voava no azul das águas, fazia-se paz em toda a extensão da palavra. 

De olhos fitos no azul, retornei-me mar, rio, lago…esculpindo a beleza interior por via exterior. 

─ A água é certamente a coisa mais bela que Deus criou. Pensei com medo e receio mas eu gosto de sentir esta verdade que traço. Ainda que de forma escorregadia.
─Phiu phiu phiu phiu…ouvi um animal ao alto, parecia uma garça eu não sei diferenciar o canto das aves… distraída vi-me sozinha naquele espaço. 

Já o meu colega tinha ido embora, certamente à procura de uma outra maravilha naquele gigantesco Parque. Sacudi as calças; percorri o tempo com a mesma velocidade com que se percorre a luz. 
E pela primeira vez na vida; corri…
*        *        *


Hirondina Joshua nasceu em Maputo, Moçambique, a 31 de Maio de 1987. 
Está integrada em várias antologias, revistas, jornais, sites, blogues nacionais e internacionais.
 Teve Menção Extraordinária no Premio Mundiale di Poesia Nósside 2014.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

MANUEL BANDEIRA - Mundo de Chagall

Tela de Marc Chagall
Mundo de Chagall
Manuel Bandeira

Ao diabo a crônica que eu deveria escrever hoje!  Sinto o corpo cansado, o espírito deprimido, a vontade incerta.  Estou precisando de um banho de poesia.  Não de poesia participante ou de pesquisa, concreta ou neoconcreta ou eletrônica, mas de poesia levitativa, astronáutica, poesia que me leve a outros mundos longe deste, ao mundo de Chagall, por exemplo.
Chagall é de profissão pintor.  Sem embargo, de vez em quando desabafa em poemas tão lenitivos nas suas imagens quanto a sua pintura em cores inocentes e frescas.
Ao banho pois:

"Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta,
Me cobre com uma pedra perfumada.
Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
à procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis por que sorrio
Quando mal brilha o meu sol.
Ou choro
Como uma chuva leve
Na noite.
Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas faces
Se cobriam de um orvalho amoroso,
Se fundiam como o perfume de uma rosa.
Hoje em dia me parece
Que até quando recuo
Estou avançando
Para uma portada
Atrás da qual se estendem muralhas
Onde dormem trovões extintos
E relâmpagos partidos.
Só é meu
O país que trago dentro da alma."

(20.IX.1961)
*            *            *

No livro "Andorinha, andorinha" - Seleção e coordenação de textos de Carlos Drummond de Andrade. Círculo do Livro, por cortesia de José Olympio Editora S.A.