sexta-feira, 30 de março de 2012

PAULO LEMINSKI - Erra uma vez

Erra uma vez
Paulo Leminski


Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez

*    *    *

de 'La vie en close' (1991), livro póstumo

quinta-feira, 29 de março de 2012

MANOEL DE BARROS - Mundo pequeno

Tela de Almeida Jr

Mundo Pequeno
Manoel de Barros


VI

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.

Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.

- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.

Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma

Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

*        *        *

In:  “O Livro das Ignorãças”


quarta-feira, 28 de março de 2012

MILLÔR FERNANDES - RIP


Millôr Fernandes
Escritor, desenhista, dramaturgo, humorista, poeta, jornalista
1924-2012

Luis Fernando Verissimo, escritor: "O que me impressionava no Millôr era que ele era um sujeito brilhante em qualquer situação. Não só escrevendo, mas produzindo ou numa simples conversa do dia a dia. Ele tinha uma mente realmente brilhante, era interessado por tudo e comentava todos os assuntos sempre de um jeito diferente e genial mesmo. O curioso é que os humoristas costumam ser pessoas tristes, mas o Millôr, não. Era uma pessoa absolutamente interessada pela vida. Houve uma vez em que fomos convidados para um encontro literário, em Passo Fundo, e o Millôr fez uma participação que foi absolutamente educativa. Ele deu um discurso que era um elogio à democracia, uma defesa aos direitos humanos. Então, assim que ele terminou a sua palavra, nos disse que o que ele havia lido era o discurso de posse do general Médici. Ou seja, disse para a gente não se empolgar muito com as palavras, que é para termos cuidado, porque nem sempre elas passam ou representam a realidade. E esse ensinamento veio de um homem que era apaixonado e um estudioso das palavras."
**

Ziraldo, cartunista: "Uma vez me deparei com um quadro do Magritte, que era um homem de terno e gravata, num plano americano, e no lugar da cabeça, um sol.


Peguei aquela imagem e mandei para o Millôr com um recado: 'Millôr, achei o seu retrato, foi o Magritte que te pintou'. O Millôr era isso: no lugar da cabeça, uma explosão de luz. Uma luz que se apagou. Para mim, ele era essa imagem. O Millôr detestava essa coisa de falar da pessoa depois da morte. Então é difícil acrescentar alguma coisa sobre o que ele foi. E é difícil porque não tenho nada de novo para dizer, entende? Éramos amigos, trabalhamos juntos... A gente estava esperando... A bruxa está solta. Na semana passada foi o maior humorista da TV, agora o maior humorista da imprensa... Acho que eu não estou me sentindo bem. É como a frase que ele dizia: 'Cristo morreu, Newton morreu, Einsten morreu... E eu não estou me sentindo muito bem'.
**


Algumas frases do MILLÔR

"Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar.”

“O cadáver é que é o produto final. Nós somos apenas a matéria prima.”

“O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é.”

“Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”

“Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem.”

“O otimista não sabe o que o espera.”

“Eu também não sou um homem livre. Mas muito poucos estiveram tão perto.”

“Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.”

“Brasil, condenado à esperança.”

“Brasil; um filme pornô com trilha de Bossa Nova.”

“Todo homem nasce original e morre plágio.”

“O dedo do destino não deixa impressão digital.”

“Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?”

"Repito um velho conselho, cada vez mais válido, sobretudo pro Congresso: Quando alguém gritar “- Pega ladrão”, finge que não é com você"

"Quando os eruditos descobriram a língua, ela já estava completamente pronta pelo povo. Os eruditos tiveram apenas que proibir o povo de falar errado".

"A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude é passageira. A velhice sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho."

"Não devemos odiar com fins lucrativos. O ódio perde a sua pureza".

"Um Homem só é completo quando tem família; mulher e filhos. Desculpe: completo ou acabado?"

"Deus é realmente um ser superior. Não há nada nem parecido no Governo Federal".

"Prudência: E devemos sempre deixar bem claro que nenhum de nós, brasileiros, é contra o roubo. Somos apenas contra ser roubados".

"Feliz é o que você percebe que era, muito tempo depois".

"Aprenda de uma vez: Se você acordou de manhã é evidente que não morreu durante a noite. A felicidade começa com a constatação do óbvio".

"Nem só comer e coçar é questão de começar. Viver também".

"Os ateus têm um Deus em que nem eles acreditam".

"Tudo na vida tem uma utilidade - se não fosse o mau cheiro quem inventaria o perfume?"

"Voto de pobreza, obviamente só pode ser feito por rico".

"Errar é humano. Botar a culpa nos outros também".

"Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor".



*       *       *

'PARA CRIAR PASSARINHO' - Bartolomeu Campos de Queirós


Bartolomeu Campos de Queirós
25 de agosto de 1944 – 16 de janeiro de 2012



Escritor mineiro da cidade de Papagaios, Região Central de Minas Gerais, ocupava a Cadeira 26 na Academia Mineira de Letras (AML).



Para bem criar passarinho é bom ter asas na alma, imensa inveja dos voos e viver leve com as penas. Isso se consegue descobrindo a alegria de possuir um céu aberto como casa e ter como caminho a distância do nascente ao crepúsculo, sempre.
(...)

Para bem criar passarinho há que se sonhar borboleta, anjo ou estrela cadente. É importante ter imensas intimidades com o nada, admirar o vazio e um especial encantamento pelo azul que existe muito depois das nuvens, infinito adentro.
(...)

Para bem criar passarinho é bom visitar as montanhas para deixar repousar as penas. E depois de altos passeios, sem deixar marcas de passagem, descansar entre montes e distância. Por ser assim, contemplar com o coração o além, onde só as rezas enxergam.
(...)

Para bem criar passarinho é necessário prender o universo - dos mares ao firmamento - em uma gaiola respirando azul e infinito por todos os lados. É seguro declarar que nenhum espaço é demais para os voos. Para bem criar passarinhos é preciso experimentar as asas, sempre.


*            *            *
 
Do livro: 'Para criar passarinho'

SPINOZA - (pegando pesado...)

DEUS,
Segundo SPINOZA

Bento de Espinoza - filósofo panteísta 
(Holanda, 24 de novembro de 1632, Amsterdã — 21 de fevereiro de 1677, Haia)
 

"Para de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que
Eu fiz para ti.

Para de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.

Para de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau.

O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.

Para de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho... Não me encontrarás em nenhum livro!

Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?

Para de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.

Para de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz... Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?

Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti.

Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.

Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso.

Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.

Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro.

Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.

Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse.
Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei. E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste?

Para de crer em mim - crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.

Para de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam.

Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo.

Te sentes olhado, surpreendido?... Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.

Para de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas.

Para que precisas de mais milagres?

Para que tantas explicações?

Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro... aí é que estou, batendo em ti."


*            *            *

terça-feira, 27 de março de 2012

MARIO BENEDETTI - Da gente que eu gosto

Da gente que eu gosto
Mário Benedetti
Paso de los Toros, 14 de setembro de 1920 — Montevidéu, 17 de maio de 2009


Eu gosto de gente que vibra, que não tem de ser empurrada, que não tem de dizer que faça as coisas, mas que sabe o que tem que fazer e que faz. A gente que cultiva seus sonhos até que esses sonhos se apoderam de sua própria realidade.

Eu gosto de gente com capacidade para assumir as conseqüências de suas ações, de gente que arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, que se permite, abandona os conselhos sensatos deixando as soluções nas mãos de Deus.

Eu gosto de gente que é justa com sua gente e consigo mesma, da gente que agradece o novo dia, as coisas boas que existem em sua vida, que vive cada hora com bom animo dando o melhor de si, agradecido de estar vivo, de poder distribuir sorrisos, de oferecer suas mãos e ajudar generosamente sem esperar nada em troca.

Eu gosto da gente capaz de me criticar construtivamente e de frente, mas sem me lastimar ou me ferir. Da gente que tem tato. Gosto da gente que possui sentido de justiça. A estes chamo de meus amigos.

Eu gosto da gente que sabe a importância da alegria e a pratica. Da gente que por meio de piadas nos ensina a conceber a vida com humor. Da gente que nunca deixa de ser animada.

Eu gosto de gente sincera e franca, capaz de se opor com argumentos razoáveis a qualquer decisão.

Gosto de gente fiel e persistente, que não descansa quando se trata de alcançar objetivos e idéias.

Eu gosto da gente de critério, a que não se envergonha em reconhecer que se equivocou ou que não sabe algo. De gente que, ao aceitar seus erros, se esforça genuinamente por não voltar a cometê-los. De gente que luta contra adversidades. Gosto de gente que busca soluções.

Eu gosto da gente que pensa e medita internamente. De gente que valoriza seus semelhantes, não por um estereotipo social, nem como se apresentam. De gente que não julga, nem deixa que outros julguem. Gosta de gente que tem personalidade.

Eu gosto da gente que é capaz de entender que o maior erro do ser humano é tentar arrancar da cabeça aquilo que não sai do coração.

A sensibilidade, a coragem, a solidariedade, a bondade, o respeito, a tranqüilidade, os valores, a alegria, a humildade, a fé, a felicidade, o tato, a confiança, a esperança, o agradecimento, a sabedoria, os sonhos, o arrependimento, e o amor para com os demais e consigo próprio são coisas fundamentais para se chamar GENTE.

Com gente como essa, me comprometo, para o que seja, pelo resto de minha vida... já que, por tê-los junto de mim, me dou por bem retribuído.

Impossível ganhar sem saber perder.
Impossível andar sem saber cair.
Impossível acertar sem saber errar.
Impossível viver sem saber reviver.

A glória não consiste em não cair nunca, mas em levantar-se todas as vezes que seja necessário.

E isso é algo que muito pouca gente tem o privilégio de poder experimentar.

Bem aventurados aqueles que já conseguiram receber com a mesma naturalidade o ganhar e o perder, o acerto e o erro, o triunfo e a derrota...

*            *            *

segunda-feira, 26 de março de 2012

ELLA FITZGERALD - Ev'ry time we say goodbye

Ev'ry time we say goodbye
Cole Porter

Ev'ry time we say goodbye I die a little,
Ev'ry time we say goodbye I wonder why a little,
Why the gods above me
Who must be in the know
They think so little of me
They allow you to go.
 when you're near
There's such an air
Of spring about it,
I can hear a lark somewhere
Begin to sing about it,
There's no love song finer,
But how strange the change
From major to minor...
Ev'ry time we say goodbye

* * *

LAO-TSÉ

A Sacerdotisa - Carta do Tarot Mitológico
Assim falou Lao-Tsé

O lendário patriarca do taoísmo escreveu máximas sobre a arte do bem viver que continuam valendo, pelo menos na minha opinião...

O PODER DA SUAVIDADE

No mundo inteiro
não há nada mais fluido e suave do que a água.
No entanto, para atacar o que é duro
nada se iguala a ela.
Nada pode mudar isso.
A fraqueza vence a força,
a suavidade vence a dureza.
Todos na Terra o sabem.
Mas ninguém é capaz de agir assim.
**

O AMOR E O COMBATE

Se para combater tivermos amor,
sairemos vencedores.
Se usarmos amor na defesa,
seremos invencíveis.
Aquele a quem o Céu quer salvar,
ele o protege pelo amor.
**

AUTOCONHECIMENTO

Quem conhece os outros é inteligente.
Quem conhece a si mesmo é sábio.
Quem vence os outros é forte,
Quem vence a si mesmo é poderoso.

*            *            *

Trechos de "O Livro do Sentido e da Vida" - Ed. Pensamento

domingo, 25 de março de 2012

DRUMMOND - A casa do tempo perdido

A casa do tempo perdido
Carlos Drummond de Andrade

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.

A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.

Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

*            *            *

In: 'Farewell', Record. 1997, p.15

FERNANDO PESSOA - Cansaço

Grafite de Marcelo Ment
Cansaço
Fernando Pessoa

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

*            *            *

sábado, 24 de março de 2012

MACHADO DE ASSIS - A importância dos olhos...

Trechos de "Dom Casmurro" em que se evidencia a importância dos olhos na escritura de Machado:

Capítulo XXXII – Olhos de ressaca

"(...)
Tinha me lembrado a definição que José Dias dera deles, 'olhos de cigana oblíqua e dissimulada'. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim.  Capitu deixou-se fitar e examinar.  Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. (...)"
* *

“ (...)
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca, É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me, tragar-me. “ (...)
* *

Capítulo CXVIII – A mão de Sancha


“(...)
Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar pensativo. A noite era clara.


Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. (...) E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto.”
* *
Capítulo CXXIII – Olhos de ressaca

“Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a tinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”
* *

Capítulo CXXXI – Anterior ao anterior

“ (...)
Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa, mas, dizendo-lhe eu que, na beleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitu sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição da gente (...)”
* *


Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?


“Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. (...)

*            *            *

sexta-feira, 23 de março de 2012

CHICO ANYSIO

Mais uma notícia triste, embora já esperada...Ele estava muito doentinho.

Toda a minha família gostava muito da 'Escolinha do Professor RAIMUNDO", essa, sim,  uma sátira bem feita sobre a situação do professor num país que precisa tanto de Educação.

As outras 'escolinhas' que compraram o formato do programa e tentaram imitar a criação de Chico Anysio não chegaram nem perto.

Enfim, vá em paz, Chico. Você alegrou e alertou várias gerações.
*            *            *

quinta-feira, 22 de março de 2012

ROSEANA MURRAY - Paul Klee

Tela de Paul Klee
Paul Klee
Roseana Murray

Os olhos como barcos,
entro escondida
num quadro do Klee.

O céu é a rua,
e o equilibrista,
quase sem respirar,
me ensina os segredos da vida.

Sobretudo, ele me diz,
é preciso saber conservar
as pernas no ar
e manter o olhar perdido;
Carregar pedaços de lua
no pensamento e sonhar.

A vida é pura navegação
e saio do quadro
como um pássaro invisível.

*        *        *
In: 'Residência no Ar', ed. Paulus, 2007

ERICO VERÍSSIMO - 'Olhai os lírios do campo'

"Olhai os Lírios do Campo"
Érico Veríssimo
Escrito em 1938, 'Olhai os Lírios do Campo' conta a história do dr. Eugênio Fontes, que, menino pobre, estuda medicina, apaixona-se por uma idealista colega, Olivia – mas opta por uma vida de conforto, casando com Eunice, filha de um rico empresário.
Desgostoso com a existência fútil, volta a exercer a medicina, mas agora encarando a profissão por seu lado social e humano.

“Ele principiava a ser um médico de verdade, estava diante da vida, atendia os seus clientes com toda a solicitude e às vezes tinha de esforçar-se para ser delicado e não se encolher diante de criaturas que, pelo aspecto físico ou pela natureza de seus males, lhe inspiravam repugnância ou mal-estar. Fazia-lhes perguntas, interessava-se pela vida deles. Aos poucos ia perdendo os velhos temores de fracasso e aquela sensação de que os outros não tinham confiança nele. Atirava-se à clínica cheio de coragem e isso já era a metade da vitória.”
**
"A vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitava-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam".
**
"Não fomos consultados para vir para este mundo e não seremos consultados quando tivermos que partir. Isto dá bem a medida da nossa importância material na terra, mas deve ser elemento de consolo e não de desespero."
**
"Precisamos dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu."

**
"Olívia se aproximou de Eugênio e com um lenço enxugou-lhe o suor da testa. Estava terminada a traqueotomia. A enfermeira juntava os ferros. Ruído de metais tinindo, de mesas se arrastando. Eugênio tirou as luvas e foi tomar o pulso do pequenopaciente. A criança como que ressuscitava. A respiração voltava lentamente, a princípio superficial, depois mais funda e visível. O rosto perdia aos poucos a rigidez cianótica.
Eugênio examinava-lhe as mudanças do rosto com comovida atenção. Vencera! Salvara a vida de uma criança!
A vida é boa! - pensava Eugênio. Ele tinha salvo uma criança.
Começou a cantarolar baixinho uma canção antiga que julgava esquecida.
Sorvia com delícia o refresco impregnado do cheiro da gasolina
queimada. Sentia-se leve e aéreo. Era como se dentro dele as nuvens de tempestade se tivessem despejado em chuva e sua alma agora estivesse límpida, fresca e estrelada como a noite.
- Por que será - perguntou ele a Olívia - por que será que às vezes de repente a gente tem a impressão de que acabou de nascer... ou de que o mundo ainda está fresquinho, recém-saído das mãos de quem o fez?"
**
"Se naquele instante - refletiu Eugênio - caísse na Terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles 'Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de sol?' - ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida'. E no entanto a vida estava ali a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa".

**
"Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época. Eles esquecem o que têm de mais humano e sacrificam o que a vida lhes oferece de melhor: as relações de criatura para criatura. De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?

**

 
*        *        *

quarta-feira, 21 de março de 2012

GRAMÁTICA EM CORDEL


Autor: Prof. Janduhi Dantas Nóbrega
Cidade: Patos, a 300 km de João Pessoa - PARAÍBA

Não basta a preposição

Há muita gente que pensa
que basta a preposição
para o 'a' ser craseado,
mas não é bem assim, não:
- preposição mais artigo -
crase só nessa união!
**

Antes do verbo, não

A crase antes do verbo
não há como colocar:
verbo não aceita artigo
(é por isso que não dá) -
"Com dinheiro a receber,
tenho contas a pagar."
**

Verbo vira substantivo

(Aqui eu faço parênteses
pra uma observação:
quando o verbo aceita artigo
já não é mais verbo não;
passa a ser substantivo -
"O viver é ilusão.")

*            *            *

DIA MUNDIAL DA POESIA

MANOEL DE BARROS - Um vidro mole

Um vidro mole
Manoel de Barros

O rio que fazia uma volta
atrás da nossa casa
era a imagem de um vidro mole...

Passou um homem e disse:
Essa volta que o rio faz...
se chama enseada...

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.

*        *        *

terça-feira, 20 de março de 2012

PAULO LEMINSKI - Desarranjos florais

Desarranjos Florais
Paulo Leminski


abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri
antigamente eu era eterno

*         *         *
In: Distraídos Venceremos

CECÍLIA MEIRELES - Canção de Outono


Canção de Outono
Cecília Meireles

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão...

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

*        *        *

segunda-feira, 19 de março de 2012

QUINTANA - Hai kai de Outono

Hai-Kai de Outono
Mário Quintana


Uma borboleta amarela?
Ou uma folha seca
Que se desprendeu e não quis pousar?

*            *            *

sábado, 17 de março de 2012

ELIS REGINA - Romaria (1977)



Ela faria hoje 67 anos...

JOSÉ SARAMAGO - excertos


“Leio numa reportagem sobre o terramoto nos Abbruzzos que os sobreviventes, desesperados, impotentes, se perguntam por que foi que o destino os escolheu a eles e à sua terra para campo da tremenda catástrofe. É uma pergunta que nunca terá resposta, mas que invariavelmente fazemos quando a infelicidade nos veio bater à porta, como se em qualquer parte do universo existisse um responsável a quem pedir contas pelos males que nos sucedam. Muitas vezes não há tempo para mais que ver a morte diante, ou nem sequer para isso, quando uma bomba rebenta a dez passos ou o caiuco se desfaz em pedaços com a costa ali mesmo, ao alcance, quando a inundação arrasta casas e pontes como se de obstáculos insignificantes se tratasse, quando o alude ou o deslizamento de terras sepultam povoações inteiras. Perguntamos porquê a nós, porquê a mim, e não há resposta. Jacques Brel também tinha perguntado: “Pourquoi moi? Pourquoi maintenant?” – e morreu. É o destino, dizemos, e nele não está escrita a palavra ressurreição. É bom sabê-lo porque, em verdade, o mundo não está para ressurreições. Já basta o que basta.”
In: O caderno de Saramago

**
"Depois, como se acabasse de descobrir algo que estivesse obrigado a saber desde muito antes, murmurou, triste, É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade."
In: Ensaio sobre a cegueira

**
"De deus, que por obrigações de cargo está ao mesmo tempo no universo todo, porque de outro modo não teria qualquer sentido havê-lo criado, seria uma ridícula pretensão esperar que mostrasse um interesse especial pelo que acontece no pequeno planeta terra, o qual, aliás, e isto talvez a ninguém tenha ocorrido, é por ele conhecido sob um nome completamente diferente, mas a morte, esta morte que, como já havíamos dito páginas atrás, está adstrita à espécie humana com carácter de exclusividade, não nos tira os olhos de cima nem por um minuto, a tal ponto que até mesmo aqueles que por enquanto ainda não vão morrer sentem que constantemente o seu olhar os persegue."
In: As intermitências da morte

*            *            *

quarta-feira, 14 de março de 2012

ADÉLIA PRADO - A bela adormecida

A bela adormecida
Adélia Prado

Estou alegre e o motivo
beira secretamente a humilhação,
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.



No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa daquele que volta
e põe tudo arcaico como matéria da alma,
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.



O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom !
Namorar quem ?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja,
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço
a cada ano mais.
Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.

*        *        *

terça-feira, 13 de março de 2012

EÇA DE QUEIRÓS - atualíssimo


“Estamos perdidos há muito tempo.
O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.
Os caracteres, corrompidos.
A prática da vida tem por única direção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas, felizes, exploram.

A classe média abate-se progressivamente
 na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.

Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão
e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento
invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: o país está perdido!
Algum opositor do actual governo? Não!”

* * *
Incrível, mas esse texto é de Eça de Queirós - escritor português - foi publicado no folheto mensal intitulado "As Farpas", no distante ano de 1871!
**

segunda-feira, 12 de março de 2012

UM TEMPO SEM NOME - Rosiska de Oliveira


 Essa Pequena
Chico Buarque

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela

Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
não canso de contemplá-la

Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai

Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena
**

Um tempo sem nome
Rosiska Darcy de Oliveira, Jornal O Globo, 21/01/12

Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça do cabelo cor de abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando “eu sou tão feliz com ela” sem encontrar resposta ao “que será que dá dentro da gente que não devia”.

Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida .

Proust, que de gente entendia como ninguém, descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo “um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho“, segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.

A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida inteira.

Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes — obras na casa demolida — a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.

Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade. Quem se aposenta continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o privilégio e o susto de dela participar.

A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.

”Meu tempo é curto e o tempo dela sobra”, lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcenar.

Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição.Chico, à beira dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura , ora música, cantando um novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.
*            *            *