terça-feira, 30 de agosto de 2016

Carta de um novo mundo - Dani Fechine em 'Obvious'

CARTA DE UM NOVO MUNDO
Dani Fechine - em 'Obvious - recortes'


E se o mundo passasse por uma transformação? E se houvesse um explosão (ou implosão) e o nosso planeta simplesmente mudasse da água para o vinho? Como seria o mundo que merecemos ter?


“Venho, por meio desta, informar que uma mudança drástica aconteceu no nosso mundo. 
Logo após a implosão que sucedeu por aqui algo novo surgiu. Um novo planeta renasceu, com novas árvores, novas terras, novos mares, novo céu, novas pessoas. 
Esse é o ponto principal. Novas pessoas. 

Caro amigo, sei que não lerá esta carta, mas faço questão de relatar para as gerações futuras sobre o futuro grandioso que o nosso passado obteve e ninguém melhor do que você para ser o meu destinatário.
Pois é, você é uma das poucas coisas do mundo velho que ainda restam nesse paraíso, porque permanece por todos os lugares.

Hoje saí pra trabalhar a pé, para sentir um pouco a brisa fria da manhã de junho e algo incrível aconteceu: durante os 15 minutos de caminhada até o escritório, recebi cinco cumprimentos de bom dia. 
Agora todos se cumprimentam na rua, mesmo que não se conheçam. Acenam, sorriem e as vezes até desejam coisas boas pra gente, sem se importarem com quem estão falando. 
Chamaram essa prática de educação. Achei fantástico e estão até ensinando nas escolas.

Lembra-se dos noticiários sanguinários que você detestava? Faliram. 
Pouco se vê de violência por aqui. Todos me parecem humanos, diferentemente do mundo antigo, onde a briga diária por bens materiais, pela vida e pela paz alheia, era pauta principal de quase todos os jornais da cidade. 
Agora a gente sai pra beber um vinho durante a noite e não nos assusta mais deixar o carro em casa e caminhar um pouco até o bar. 
Voltamos alegres, pisando as poças d’água, sem disparar o coração ou sermos surpreendidos com algum assalto a mão armada. E quando raramente isso acontece, esses cidadãos um pouco desprovidos das coisas boas que a vida pode nos dar, são reabilitados em casas especializadas nesse tipo de problema. Recebem a chance de voltar ao mercado de trabalho e passam a viver novamente como nós. 
Quem diria, hein, que essa paz seria possível? 
O segredo foi investir na prevenção do mal. Remediar se tornou obsoleto.

Uma novidade digna de comemoração é que preconceito pouco se conhece por essas bandas de cá. Comemos bananas e ninguém nos chama de macaco, por exemplo. 
Não somos todos iguais, mas nos respeitamos igualmente. Não temos a mesma origem, mas somos um mesmo povo. Não fomos criados da mesma forma, mas lutamos para uma mesma causa. Não gostamos das mesmas coisas, mas compartilhamos nossos saberes. Não nos ensinaram como seguir, nós simplesmente seguimos. E fizemos o certo.

Por falar nisso, aqui sobra honestidade. Se esse mundo para o qual escrevo ainda houvesse salvação, mandaria um pouco dentro desse envelope. 
Quem não tem nada, o pouco já é suficiente. 
Políticos a gente também tem, sabe? Mas como diria Thomas Hobbes, esse governo é um mal necessário para conter o caos. Alguém tinha que pôr ordem nisso tudo e, por incrível que pareça, está dando certo. 
Educação não nos falta, meu amigo. As crianças estudam sustentadas pelo governo e estas são as melhores escolas do nosso país. Há briga para conseguir matrícula. Abastados ou não, todos frequentam o mesmo colégio. 
A saúde gratuita também virou acesso fácil e eficiente. Os médicos aqui gostam de trabalhar e o fazem por amor. Nenhum cidadão morre em cima de uma maca no corredor da emergência. Nenhum idoso perde sua vida por recusa de atendimento. 
Somos todos prestativos. E fazemos isso porque queremos o mesmo em troca.

E por fim, meu caro, aqui o respeito é mútuo. Das crianças aos idosos, todos fazem parte de uma mesma massa regida pela educação. 
Alguns ainda não descobriram seus destinos, mas todos sabem que a base para construí-los está no que plantamos por aqui: respeito. 
A dignidade, a coragem de seguir em frente e o sucesso da realização nós cultivamos pouco a pouco e acreditamos que no fim seremos cada vez melhores. 

É com uma saudade imensa de você que me despeço de uma vez por todas. 
O mundo que ficou não mais nos pertence e dele não queremos nem uma folha para plantar por aqui. O mal se dissemina com uma frequência maior que o bem e é isso o que menos queremos no nosso planeta que não mais se chama Terra. 

Um abraço saudoso e repleto de boas energias. Quem sabe não nos encontremos em outro mundo.”


*            *            *

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O que há de gente em Nós? - Erik Morais

O que há de Gente em Nós?
Erik Morais (*) - segunda-feira, 8 de agosto de 2016



A vida contemporânea parece estar imbricada com um certo estado de desumanização, no qual perdemos a capacidade de observar aquilo que acontece ao nosso redor. É como se tivéssemos perdido a sensibilidade e, assim, tornamo-nos ocos e frios. 
Transformados em homens de olhos secos que não possuem rios de lágrimas, deixamos a triste condição Severina se instalar e criar morada. Deixamo-la tornar-se habitat natural dessa desumanização. 
Diante disso, uma pergunta tem me incomodado: o que há de gente em nós?

Somos seres precários e finitos, de tal maneira que a vida nunca se apresentará em condições normais de temperatura e pressão. 
No entanto, dada as condições, através do modo como nos comportamos, conseguimos piorar a situação exposta, inclusive, levando a ideia de Aldous Huxley de que este mundo seja o inferno de outro planeta.

Em larga medida o inferno que habitamos está alicerçado no nosso egoísmo e individualidade, os quais nos tornam personagens de Saramago, indivíduos com a cegueira branca, isto é, cegos que nunca cegaram, mas cegos que podendo ver, não enxergam, já que estão envoltos por uma segunda pele bem mais forte que a outra, que por qualquer coisa sangra, chamada egoísmo.

Uma segunda pele que nos aliena das labaredas em cada esquina e dos espinhos que ferem a cabeça de outro ser que poderia ser chamado de humano. Uma segunda pele que banaliza o mal e nos torna apáticos diante do horror que fingimos não ver todos os dias.


Em que ponto nos perdemos? Como podemos achar o mundo exterior tão desinteressante, tão insosso, a ponto de não nos indignarmos quando uma pessoa morre em uma fila de hospital por falta de atendimento? Ou pior, quando centenas de pessoas morrem porque existe um hospital pronto, mas o aparelho burocrático não o deixa funcionar? 
Será que as regras são mais importantes que os jogadores? Qual o valor de um ser humano? O que há de gente em nós?

Parece que estamos tão saturados com o mal, que sequer percebemos ao andar na rua que existem crianças pedindo dinheiro no sinal, enquanto outras passeiam na Disney; que, enquanto milhares de pessoas morrem de fome, outras tantas fazem dieta. 
Como aceitamos tamanha paradoxalidade, tamanho absurdo?

Mundo do absurdo, da intolerância, da falta de empatia, do egoísmo, em que nada nos incomoda, nada nos comunica, nada nos incita, no qual o horror se torna show e é espetacularizado diariamente, como no mundo distópico de Laranja Mecânica de Anthony Burgess
Mundo em que pessoas morrem tentando sair de um país à procura de um novo lugar para chamar de lar, enquanto outras escolhem onde querem morar. 
E nós passando por esse mundo, como se estivéssemos em uma Timeline, apenas “curtindo” ou não situações, sem de fato refletir, se indignar e, sobretudo, se incomodar.

Incomodar, verbo repetido intencionalmente até aqui, para que percebamos o quanto ele está em extinção, já que não queremos nos incomodar. 
Queremos sentir prazer, sorrir o tempo inteiro, sem qualquer tipo de dor ou “incômodo”, acima de tudo, se ele vier de outra pessoa que queira romper a nossa segunda pele, que nos “protege” e nos faz mais “fortes”.

Tudo o que queremos, como diz Clarice em “O Mineirinho”, é manter as nossas casas presas ao terreno, a fim de que elas não estremeçam. 
É continuar fabricando deuses à imagem do que precisarmos para continuar dormindo tranquilamente, os quais sempre tratam de nos acalmar com o sentimento de que não há nada a fazer.

Tudo o que queremos é continuar sendo os sonsos essenciais, os baluartes de alguma coisa e os cegos que podendo ver não enxergam, para que não corramos o risco de nos entendermos. “Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende”. E essa coisa que desorganiza tudo é aquilo que há de gente em nós, é aquilo que rasga a segunda pele chamada de egoísmo e faz com que a nossa primeira pele se incomode, é aquilo que faz com que os leitos dos olhos voltem a ter lágrimas, para que possamos dar de beber a quem sofre, porque mesmo quando a água é pouca, continuamos sabendo o que é sede e mesmo quando não nos perdemos, também experimentamos a perdição.

Talvez Huxley esteja certo e este mundo seja mesmo o inferno de outro. Acho que ele não tinha certeza, mas estava incomodado com a ordem posta e procurava, como Clarice, a coisa que desorganiza tudo, a coisa que entende, o que há de gente em nós. 
Ele deve ter encontrado a humanidade no Selvagem do seu Admirável Mundo Novo; ela encontrou no Mineirinho, mas foram necessários treze tiros até que ela se tornasse o outro, para que ela quisesse ser o outro, para que fosse o próprio Mineirinho. 
Resta saber, quantos tiros são necessários para que sejamos o outro e, então, saibamos, o que há de gente em nós.


*            *            *
(*) Erik Morais escreve na página 'Conti outra e afins'

sábado, 20 de agosto de 2016

Frutos - Luiz Medina

FRUTOS
Luiz Coelho Medina


Tenho em meu
quintal,
um pé de Quintana.
Sempre quando
está Rubem Fonseca,
rego com Vinicius
e Drummond.
Aí começam a brotar
Cecílias Meireles
e Clarices Lispectores.
No outono, as folhas
caem, escritas de poemas.
Quando comemos seus
frutos,
alimentamos a mente,
a alma
e fertilizamos
o futuro. 
Ficamos mais frondosos,
como uma espécie
de árvore.
Ficamos também,
um pouco mais
do que meros
seres humanos.

*        *        *

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Passagem da Noite - Drummond

PASSAGEM DA NOITE
Carlos Drummond de Andrade



É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.


Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
**

Carlos Drummond de Andrade em "A Rosa do Povo"

terça-feira, 16 de agosto de 2016

O mundo da gente morre... - Eliane Brum

Hoje, 16 de agosto 2016, morreu Elke Maravilha, estrela da TV brasileira.

O mundo da gente morre
 antes da gente
Eliane Brum - "El País", agosto 2014

A expressão mais perfeita que conheço para explicar a brutalidade do acaso em nossas vidas é ainda a de Joan Didion. Ela disse, em simplicidade exata: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Joan, jornalista e escritora americana, escreveu essa frase em seu livro O ano do pensamento mágico, no qual narra a morte repentina do marido e a sua busca para compreender o incompreensível.
Renata, a mulher de Eduardo Campos, repetiria aos amigos: “Não estava no script”.
(...)

De fato, a morte – repentina ou penosa, como nas doenças prolongadas, precoce ou tardia – é, como sabemos, a única certeza do nosso script.
Um dia, simplesmente, já não se está. Como na cena do documentário de João Moreira Salles em que Santiago, o mordomo que dá título ao filme, cita o cineasta Ingmar Bergman: “Somos mortos insepultos, apodrecendo debaixo de um céu cruento e vazio”.

Se fizéssemos um retrato agora, de todos os vivos, teríamos também um obituário: daqui a 100 anos estaremos todos mortos.
Olhamos pela janela e todos os que vimos em seu esforço cotidiano, carregando-se para o ponto de ônibus, sintonizando a rádio preferida ao sentar-se no carro, puxando assunto na padaria ou desferindo seu ódio e seu medo em pequenas brutalidades serão finados (palavra de tanto simbolismo), em menor ou maior prazo.
Assim como finado será aquele que espia a única paisagem que não muda numa vida humana, a de que, para o indivíduo, o futuro está morto.

A verdade, que talvez nem todos percebam, é que se morre aos poucos. Não apenas pela frase clássica de que começamos a morrer ao nascer. De que cada dia seguinte arrasta o cadáver do dia anterior. De que cada amanhã é um dia a mais – mas porque é um dia a menos.

Ao entrevistar os que envelheceram, descubro-os surpreendidos pelo drama menos nítido, aquele se infiltra lentamente nos interstícios dos dias: o de que o mundo da gente morre antes da gente.
Esse é o susto de quem alcançou a promessa da nossa época, a de uma vida longa. A de morrer só, mesmo quando cercado por filhos e netos.
Só, porque aqueles que sabiam dele, aqueles que compartilharam o mesmo tempo, morreram antes. Aqueles que conheceram o menino, o levaram embora ao partir.
Os que o viram jovem carregaram a sua juventude em lembranças que desapareceram porque já não há quem delas possa lembrar.
Só, porque um certo modo de estar no mundo acabou antes.
A solidão de estar vivo numa vida que já morreu.

Pouco antes de lançar O ano do pensamento mágico, Joan Didion perdeu a única filha. Depois do marido, a filha.
Era a dor não nomeável da inversão da lógica, a de sepultar aquela que deveria sepultá-la.
Mas era algo ainda além, o de se tornar a mulher que restou.
Seu livro seguinte, Noites Azuis, fala dessa condição, a de ter sobrado viva ao envelhecer. A de se descobrir só e frágil, atenta aos degraus para não cair.
Para mim, é um livro melhor do que o primeiro, mas diz de algo ainda mais duro do que a perda do companheiro de uma vida. Talvez tenha feito menos sucesso por falar dessa dor insuportável, em que viver mais do que os seus afetos é ter de viver a morte que ultrapassa a morte.
Pensava que essa era uma condição restrita à velhice.
A surpresa final de que o melhor cenário, o de viver mais, era também o de perder mais.
Mas descobri que esse morrer começa muito antes. E de forma ainda mais insidiosa.
(...)

Há algo de desestabilizador no ato de testemunhar o momento exato em que um imortal morre
Cada um tem seu susto.
Acho que o meu foi com Nico Nicolaiewsky, que levava junto com ele momentos em que fui completamente feliz – e são tão raras as vezes em que somos completamente felizes – assistindo a Tangos &Tragédias no Theatro São Pedro, em Porto Alegre.
Morreu cinco dias depois de Eduardo Coutinho e Philip Seymour Hoffman, dois gigantes. Cada um com sua tragédia, abriram um buraco na paisagem do mundo.
Depois, José Wilker um dia não acordou. E não haveria Vadinho para me assombrar.
Não parou mais.
De repente o mundo já não tinha mais Gabriel García Márquez, Jair Rodrigues, Alan Resnais, Paco de Lucia, Shirley Temple, Luciano do Valle, Nadine Gordimer, Paulo Goulart, Bellini, James Garner, Rose Marie Muraro, Max Nunes, Plinio de Arruda Sampaio, Lauren Bacall.
No espaço de seis dias de julho, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna desapareceram.
Rubem Alves, que desfazia anos nos aniversários e dizia que “a hora para comer morangos é sempre agora”.
De repente o mundo já não tinha Vange Leonel. Como é possível? Eu a tinha lido no Twitter um instante atrás. E Nicolau Sevcenko se foi horas depois de Eduardo Campos.

Nenhuma dessas pessoas convivia comigo, eu não frequentava a casa de nenhuma. A maioria delas nunca sequer vi. De fato, o que delas vive em mim independe de sua existência física.
Algumas são apenas flashes de um cotidiano em que por décadas elas apareceram, seja em novelas, na narrativa de um jogo de futebol, num debate político.
Outras, me constituem. Seus livros e músicas não têm idade, nos filmes ainda são jovens e belas. Concretamente, deveria fazer tão pouca diferença estarem ou não aqui, na miudeza dos dias, numa rotina que de qualquer modo não faria parte da minha, quanto Sófocles, que morreu mais de dois mil e quatrocentos anos atrás, ou Shakespeare ou Beethoven ou Picasso. Ou Machado de Assis. Ou mesmo Garrincha.
Estes, que conseguiram transcender sua vida ao proporcionar transcendência pela grandeza de sua obra, para as sucessivas gerações, ao infinito, são imortais. É um fato, todo mundo sabe, mas descubro que não é bem assim.

Qual é a diferença de Gabriel García Márquez estar vivo ou morto, se a chance de eu tomar um café com ele era remota e sempre vou ter meu O amor nos tempos do cólera na estante, para que ele possa reviver em mim?
O que percebo é que há uma diferença. Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um imortal morre.

Suspeito que, naquele momento-limite em que a vida se extingue, a permanência da obra faça pouca diferença.
Talvez o imortal que morre trocasse toda a sua imortalidade por dividir uma última vez uma garrafa de vinho com o melhor amigo ou por mais uma noite de amor lambuzado com a mulher que ama ou apenas para ler o jornal na mesa da cozinha no café da manhã.
Talvez o imortal fique mortal demais nessa hora, fique parecido demais com todos os outros.
Como disse Woody Allen: “Não quero atingir a imortalidade através de minha obra. Quero atingi-la não morrendo”.
E desde então temo me confrontar com seu obituário numa manchete na internet.

De certo modo, é assim que o mundo da gente começa a morrer antes da gente.
Não apenas pela perda dos nossos afetos de perto, mas também pelo filme que Philip Seymour Hoffman não fará ou pelo livro que Ariano Suassuna não escreverá enquanto dividimos com ele o mesmo tempo histórico.
Ou simplesmente por nenhum deles poder dizer mais nada de comezinho ou mesmo fazer alguma besteira, qualquer coisa de humano. Deles ficaremos só com o que foi grande, mesmo a bobagem terá de ser relevante para merecer permanecer na biografia.
Ao mesmo tempo em que a morte os devolve de imediato à condição humana, os tira para sempre dela. E logo o boteco de João Ubaldo já não terá cheiro.

A primeira vez que senti a infiltração de algo irreversível no meu mundo foi a morte de Marlon Brando, dez anos atrás.
A morte ainda não me bafejava como hoje, mas passei alguns dias prostrada por alguém que para mim já tinha nascido imortal. Percebi então que fazia diferença lembrar dele berrando “Steeeeeeeela” em Um bonde chamado desejo e, ao mesmo tempo, poder mencionar qualquer coisa boba como: “Nossa, como ele está gordo agora”.
De repente, ele não podia mais engordar nem nos espantar com sua existência descuidada. Só restaria grandioso. E, portanto, fora da vida. (Da nossa vida.)

Marlon Brando, como García Márquez, como Ariano Suassuna, como tantos agora, não se sabiam meus, mas eram. Ao me deixarem, morro um pouco.
Uma versão de nós morre sempre que morre alguém que amamos e que nos ama, porque essa pessoa leva com ela o seu olhar sobre nós, que é único.
Uma parte de nós também morre quando não podemos mais compartilhar a mesma época com quem fez do nosso mundo o que ele é.
E agora, fico esperando a cada momento uma nova notícia, porque sei que elas não mais deixarão de chegar.

Tive uma reação estranha ao saber da morte de Robin Williams.
Quantos anos ele tinha?, perguntei primeiro. Sessenta e três. E me senti apunhalada com a resposta. Muito cedo, muito cedo. De que morreu? Parece que foi suicídio. E me senti de imediato aliviada. Pode parecer surpreendente, mas meu alívio se deu porque de que alguma maneira era uma escolha. Não era coração, não era câncer, não era AVC, não era avião.
Por mais terrível que seja o ato de interromper a vida, ele pressupõe, em alguma medida, uma potência e um controle.
Ao mesmo tempo em que a morte devolve aqueles que admiramos à condição humana, os tira dela para sempre
Pode-se argumentar que uma depressão ou um desespero impede a escolha, mas acho que essa não é toda a verdade.
Nossas escolhas nunca são consumadas em condições ideais nem nosso arbítrio é totalmente livre.
Só conseguimos fazer escolhas determinadas pelas circunstâncias do que vivemos e do que somos naquele momento.
Por mais que nos surpreenda a escuridão do homem que nos deu tanta alegria, de algum modo ele elegeu a hora de morrer.
O que para muitos foi razão para aumentar a dor pela sua morte, porque ela poderia ter sido evitada, para mim foi alívio por ele não ter sua vida interrompida à revelia.
De algum modo, me soaria mais insuportável se Robin Williams tivesse morrido tão cedo por um infarto ou um acidente.
Acredito mais na interpretação do jornalista americano Lee Siegel, quando ele diz que “talvez tenha sido a empatia que o matou – e não seu desespero com o diagnóstico recente de Parkinson”.
A capacidade de Robin Williams para vestir a pele do outro, de todos os outros, levada por ele a patamares quase insuperáveis. “Sua necessidade passional de se transformar em todos que ele encontrava, qualquer que fosse sua origem étnica ou social – como se com isso pudesse vencer sua solitária e irreversível finitude humana.”
Há algum tempo o lento morrer do seu mundo o assombrava, segundo os mais próximos Robin parecia incapaz de superar o desaparecimento do amigo e do homem que o inspirou, o comediante Jonathan Winters, que se foi em abril.
Seus fãs, as pessoas cuja vida a sua vida tornou melhor, deixaram flores nos lugares em que viveram seus personagens. Um banco de praça em que gravou cenas de O Gênio Indomável, com Matt Damon. A casa em que foi Ms. Doubtfire, a babá.
Era ali que ele morria para nunca morrer. Era ali que ele jamais deixaria de estar.

Não há lugar para a morte. Como haveria lugar para a morte? Mas é preciso dar um lugar à morte para que a vida possa continuar.
É para isso que criamos nossos cemitérios dentro ou fora de nós. Em geral, mais dentro do que fora. A vida é também carregar os mortos no último lugar em que podem viver, em nossas memórias.
E aos poucos nos tornamos um cemitério cada vez mais habitado por aqueles que só vivem em nós.

A morte de Robin Williams, Gabriel García Márquez, Ariano Suassuna e de tantos levou um pouco de mim.
Minha morte levará um pouco deles e de tantos, como a lembrança das lágrimas que chorei ao ver Sociedade dos poetas mortos ou a imagem de Aureliano Buendía que só eu tinha ou a minha pedra do reino. Morro um pouco com cada um deles porque vivi um pouco com cada um deles.

É essa a morte silenciosa que vai se alastrando pelos dias. Conto meus imortais ainda vivos, os de longe e os de perto. Digo seus nomes, como se os invocando. Peço que não se apressem, que não me deixem só, que não me deixem sem saber de mim.

O acaso, a vida que muda num instante, me assusta tanto quanto esse meu mundo que morre devagar. É essa a brisa quase imperceptível que adivinho soprando nos meus ossos. Muitas vezes finjo que não a escuto. Mas ela continua ali, intermitente, sussurrando para eu não esquecer de viver.


*            *            *

A delicadeza dos dias - Eliane Brum

A delicadeza dos dias
Eliane Brum - Jornal "El país"

“Mãe, sabia que, quando a gente cresce, pode voltar a brincar com os brinquedos de criança?”, anunciou minha afilhada Catarina, três anos e oito meses. E seguiu, em sua primeira declaração de Ano-Novo. “A gente precisa dos brinquedos pra ir na faculdade. Eu vou ser escrevista." Escrevista?, pontuou a mãe, interrogativa. "Escrevista, mãe. Aquela pessoa que escreve pra ler."

Catarina é assim. Cercada de princesas, porque ela também é uma princesista praticante, ela às vezes silencia os adultos ao redor, arrancando-nos da repetição neurótica dos dias. 
É visível que sente compaixão por nós, a ponto de, neste Natal, ter fingido acreditar no Papai Noel para não nos decepcionar. 
Fizemos coisas ridículas, na falta de chaminés o Papai Noel teria descido por uma janela pela qual não passaria um duende com anorexia, e ela deixou passar. Mas, juro, seus olhos eram tão céticos quanto os de Humphrey Bogart em Casablanca.
Dias antes ela já havia simulado crer numa carta que o velho teria lhe escrito de próprio punho, na qual, por uma incrível coincidência, lhe dava conselhos iguaizinhos aos que a mãe lhe dá todo dia. Catarina mal continha o riso quando lhe perguntei sobre a carta. Mas fingiu acreditar, por amor. Mentiras sinceras já lhe interessam.

É preciso desacontecer para alcançar a delicadeza dos dias

Passou a virada do ano vestida de Alice, a do País das Maravilhas. Percebo que, para ela, somos todos o coelho branco. “Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, tarde é tarde. Não, não, não, eu tenho pressa, pressa....” 
De tanto nos observar, percebeu que precisamos muito de nossos brinquedos na vida adulta. E nos autorizou. Por isso nos mandou brincar.

Há quem se engane e pense que as crianças falam “errado” por não conhecerem ainda as palavras “certas”. Não. Elas chegam às palavras exatas e depois nós as encaixotamos com a uniformidade do dicionário, “corrigindo-as”. 
Alguém pode se confundir e achar que Catarina queria dizer “escritora” e não “escrevista”, como disse. Nada. Escrevista era a palavra exata. Aquela pessoa que escreve não para ser lida, mas para ler, como Catarina mesmo esclareceu. Ler a si mesma. Uma vista de si.
E Catarina já é uma escrevista. 
O que pode ocorrer é que, na faculdade, talvez ela deixe de ser. Mas apenas se esquecer de levar seus brinquedos. Espero estar viva para lembrá-la.

Catarina já se conta, passa os dias se contando, em longas narrativas. Ela sabe o que Fernandes, o personagem do filme indiano “Lunchbox”, de Ritesh Batra, descobriu quando já começava a envelhecer: “Acho que esquecemos das coisas se não tivermos a quem contá-las”.

Um dia, por engano, Fernandes recebeu no seu escritório uma marmita que não era para ele, mas era para ele: “O trem errado às vezes leva ao destino certo”. 
A partir desse desacerto tão acertado, iniciou-se uma correspondência entre a mulher que cozinha e o homem que come. 
Fernandes, que se limitava a repetir os dias, passou a enxergar os dias quando começou a escrever para ela. 
A cor, o cheiro, o sabor da comida onde ela escondia as palavras despertaram seus sentidos, até então embrutecidos pela repetição. 
Ele era um contador – um contador de números que não contava os sentimentos. Nem contava, não era importante, para ninguém. 
Ao se contar, finalmente contou, em mais de um sentido. Contou para ela, contou para si mesmo.

Há um momento nesse filme tão bonito em que Fernandes pela primeira vez se detém para observar os quadros de um pintor de rua pelo qual passa todo dia sem parar. 
O pintor pinta sempre a mesma paisagem. Mas, se olhar bem de perto, Fernandes descobre, não é a mesma paisagem. 
Como o dia dele, que só parece ser o mesmo. Ou só é o mesmo se ele não for capaz de enxergar a delicadeza, as infinitas pequenas mudanças, a eterna novidade do mundo de que falava Fernando Pessoa, aquele que precisou de pelo menos três heterônimos para dar conta de si.

De repente, Fernandes descobre-se numa das telas. Sem o véu enganador da rotina, que até então o cobria, consegue se reconhecer na paisagem. Ele agora é um homem que está. Decide pegar um riquixá para revisitar as paisagens da sua vida, ver os lugares que via sem ver, agora vendo. Ao final desse percurso, ele é outro. Um outro que, agora descoberto, terá de se descobrir novamente em cada dia seguinte.

Os robôs já existem, é preciso reinventar os humanos

Foi o Papai Noel da Catarina quem me deu esse filme no Natal. E eu acreditei nesse Papai Noel. Ou fingi acreditar, por compaixão de mim. 
Me lembrou de um outro filme, mais antigo, “Cortina de Fumaça”, dirigido por Wayne Wang e Paul Auster. Nele, Auggie Wren, dono de uma tabacaria, há anos tira todo dia, às oito da manhã, uma fotografia da mesma esquina do Brooklin, em Nova York. 
Ele mostra esse álbum com 4 mil fotografias a um de seus fregueses, Paul Benjamin, que depois de virar algumas páginas diz: “São todas iguais”. Auggie responde: “Sim, 4 mil dias comuns”. 
Paul ainda está confuso, um pouco condescendente. Ele é um escritor de romances diante do dono de uma tabacaria: “Acho que ainda não entendi direito...”. Auggie tenta lhe explicar: “É a minha esquina, nessa pequena parte do mundo também acontecem coisas”. E vai colocando mais um álbum diante de Paul, que folheia entediado e cada vez mais rapidamente. Auggie adverte: “Você não vai entender se não folhear mais devagar, amigo”.
Ele sabe que, se olhar bem, Paul vai reconhecer a esquina. O homem diante dele é um escritor, mas Auggie, como Catarina, é um escrevista. 
Então, Paul finalmente descobre. Ele vê Ellen, a mulher que amou e que morreu, numa das fotos. Ela está lá, na mesma esquina que agora já não poderia ser a mesma. 
Ao ver a foto, Paul reencontra a si mesmo num outro tempo, porque, quando perdemos alguém que amamos, nosso luto também se dá por aquele que éramos com aquela pessoa. E que, sem ela, já não podemos ser. 
Um luto pelo outro é sempre também um luto de si. 
E lá ficou Paul, em lágrimas, diante da esquina que finalmente enxergou, com saudades dela e dele com ela. O álbum, agora, já não tinha a mesma foto repetida centenas de vezes, mas centenas de fotos de esquinas diferentes.

Temos vivido nesse mundo de acontecimentos, de espasmo em espasmo. Estamos intoxicados por acontecimentos, entupidos de imagens. Há sempre algo acontecendo com muitos pontos de exclamação – ou fingindo acontecer para que de fato nada aconteça. E há a nossa reação nas redes sociais – às vezes uma ilusão de ação. E nas viradas de ano há ainda as resoluções, que também pressupõem uma ação.

Mas o que é preciso para, de fato, se mover? Penso que, para que exista uma mudança real de posição e de lugar, é preciso perceber o pequeno, o quase invisível de nossa realidade externa e interna. 
É pelos detalhes que enxergamos a trama maior, é na soma das sutilezas que a vida se desenrola, são as subjetividades que determinam um destino. 
É preciso desacontecer um pouco para ser capaz de alcançar a delicadeza dos dias.



Nesse tempo em que ninguém tem tempo para ter tempo, a delicadeza de uma vida parece ter sido relegada à ficção. 
É no cinema e na literatura que nos enternecemos e derrubamos nossas lágrimas ao testemunhar as sutilezas que esquecemos de enxergar ou não somos capazes de enxergar nos nossos dias de autômatos. 
Os personagens da ficção têm mais carne que nós, precisamos deles para nos lembrar de quem somos. 

O exemplo extremo talvez seja o dos pais que se esquecem dos filhos trancados no carro, bebês que acabam morrendo por asfixia ou por insolação no banco de trás. Já foi dito que esse fenômeno seria uma marca do autocentrismo ou do narcisismo que assinalaria a paternidade desse momento histórico. O filho como uma desimportância, um atrapalho, no máximo um troféu da potência do pai. Minha hipótese é outra.
Acho que esses pais estão automatizados, como estamos todos. 
Tão incapazes de enxergar as diferenças de dias que parecem iguais, que acabam deixando de ver algo tão grande quanto a presença de um bebê no banco de trás. 
Não é que se esqueçam dos filhos, porque para esquecer, assim como para lembrar, é preciso estar presente. Presos no pesadelo de estarem vivendo sempre o mesmo dia, esses pais estão ausentes de si, numa espécie de transe mortífero. São despertados para a vida pela morte do filho.

O título do comovente filme do brasileiro Caetano Gotardo é expressivo: “O que se move”. 
Ele conta três histórias baseadas em notícias de jornais. 
Numa delas, alcançamos os detalhes e os acasos de um pai que, no primeiro dia de férias da mãe, carrega o filho no banco de trás do carro. Com o balanço, o bebê acaba dormindo, e o pai o “esquece”. Ele passa a manhã no trabalho sentindo-se perturbado, doente, mas não consegue identificar o que está errado. 
É de novo no cinema, muito mais do que nas notícias, que conseguimos enxergar esses pais na delicadeza monstruosa da tragédia.

Em algum momento esquecemos do que sabe Catarina, paramos de nos contar. 
Alguém pode argumentar que nunca tantos falaram sobre si e se registraram em selfies em todas as situações. Mas o que o selfie conta? Penso que há algo no selfie para além da crítica que em geral lhe fazem, a de ser um mero registro do autocentrismo ou do narcisismo dessa época. 
O mesmo vale para muitos Tweets e posts no Facebook. Há qualquer coisa de pungente no selfie, uma expressão de nosso desespero por tentar provar que existimos, já que não conseguimos nos sentir existindo. 
Melhor ainda se for um autorregistro com alguém famoso, detentor de um certificado de existência validado pela mídia, que então seria estendido ao seu autor. 
Nesse sentido, o selfie não me exaspera, mas me emociona. Cada selfie é também a imagem de nossa ausência.


O contar de que fala Catarina, a escrevista, é outro. 
É por esse contar que sugiro que façamos não uma lista de resoluções de Ano-Novo, mas uma lista de delicadezas que estiveram presentes mas que não vimos e não reconhecemos por termos nos tornado seres condenados à repetição.

Esse mundo que criamos nos brutaliza de tantas formas ao nos reduzir a consumidores, e também a consumidores de acontecimentos. 
Diante da brutalidade das horas, a delicadeza é um ato de insubordinação e um ato de resistência. 
Desejo a todos um reencontro com a delicada trama dos dias. 
E, não esqueçam, levem seus brinquedos.


*            *            *

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Eu odeio Pokémons... - Revista Bula

EU ODEIO POKÉMONS E QUANDO DESCOBRIR PARA QUE ELES SERVEM, VOU ODIAR MAIS AINDA

Paulo Lima - 'Revista Bula'


Pior que se sentir um analfabeto digital é, de fato, ser um.
Eu descobri isso da pior maneira: sendo.
O bê-á-bá é o seguinte… Duas da madruga, meu vizinho que deveria estar dormindo faz tempo acorda meio mundo aos gritos: “Peguei mais um! Peguei mais um!”.
Pra complicar, o filho dele se revelou ainda mais escandaloso: “Eu também! Um Pikachu!”.
Era um sábado e eu só queria chegar até as oito da manhã babando no travesseiro. Mas a gritaria continuou lá fora, agora acrescida de novas vozes desenfreadas. Sim, era isso: o mundo que eu conhecia tinha virado de cabeça pra baixo.

Olhos vermelhos e roxo de raiva, no café da manhã ouvi uma explicação da patroa sobre do que se tratava: um fenômeno em forma de jogo virtual que acabara de chegar no Brasil. Não entendi nada, claro.
Hora então de pedir ajuda aos universitários, ou melhor, a uma criança do ensino fundamental: minha filha de dez anos, uma nerdinha cujo smartphone já parecia ser uma extensão das próprias mãos.
A contragosto, me deu aquela aulinha básica e bem humilhante para um sujeito nascido nos anos 1960, cansado de guerra, mal dormido e mal-humorado.
Pokémon Go é um game em forma de aplicativo, para celulares com sistemas Android e iOS, baseado numa tecnologia chamada realidade aumentada. Por meio de geolocalização, usando o GPS, usuários mobile saem capturando monstrinhos pela cidade, em todo o tipo de lugar: calçadas, restaurantes, praças, lojas, pontos de ônibus, repartições públicas, etc.”
Saquei que aquela sequência de orações foram decoradas só pra me sacanear. A abusada ainda falou coisas do tipo Niantic, Pokémon Company, Nintendo. E o sabichão só repetindo: Ã-hã…

Muito pra minha cabeça… Senti minha realidade diminuída com tantas definições boiando naquela sopa de letrinhas, e embaralhei tudo. Imaginei um androide — quer dizer, um robô — passando gel no meu calção enquanto eu ia de ônibus tentar capturar meu FGTS numa repartição pública onde um monstrinho desinteressado me atendia ao mesmo tempo em que usava o celular; aí eu saí pelas ruas e calçadas pedindo SOS pra pagar a conta do restaurante, etc.
Eu precisava retornar o quanto antes ao planeta Terra…

Pedi um tempo para ir ao banheiro.
Estratégia! Para não parecer tão perdido, fui pesquisar na internet.
Fiquei besta, mais do que aquele substantivo que minha esposa vivia me jogando na cara — sempre acompanhando de um “sua” antes e um “quadrada” depois.
As notícias pipocavam. Antes de me dar tamanha dor de cabeça, o game já tinha virado febre. Sintomas que, somados ao transtorno de personalidade coletivo, levariam uma cidade inteira ao postinho mais próximo do SUS, meu próximo destino.
Olha só: na Nova Zelândia, um homem decidiu largar o emprego para realizar seu sonho de capturar todos os pokémons disponíveis, acho que uns 150, e uma professora britânica foi pelo mesmo caminho e se tornou uma jogadora em tempo integral.
Um adolescente com autismo, que passou os últimos cinco anos em casa, comendo e respirando Minecraft (argh! outro jogo), não conseguia ficar muito tempo na rua. Tremia e passava mal com dores de estômago, apenas por estar entre pessoas e todo o barulho que elas fazem. Me identifiquei! O jogo estimulou o garoto a botar os pés pra fora do portão e a interagir com pessoas desconhecidas, inclusive com os familiares.
Calma lá…

O game começou a influenciar até na escolha de nomes de bebês.
Dá um frio na barriga só de pensar no próximo membro da família sendo batizado de Rattata, Zubat, Snorlax, Bulbasaur, Charmander ou Squirtle. O horror!
Zés, Joões e Paulos, assim como as Marias, Anas e Isabelas, pelo visto serão raridade nas futuras certidões de nascimento.
Em tempo: esses nomes estranhos, coisa de japonês, tinham origem nos episódios do desenho animado veiculado nos anos 1990. É, acho que perdi também essa parte…

E havia mais: meliantes atraindo ingênuos caçadores para roubar seus celulares, pessoas caindo de penhascos, atropelamentos por desatenção, gente exposta ao sol escaldante por horas seguidas. Ei!, não contaram para esse povo que tanta exposição causa câncer de pele? Ah, e um homem capturou um pokémon durante o parto da esposa: apareceu um Pidgey (nome de um monstrinho, não confundir com um Ricardinho) na cama da patroa. Ele prendeu o bicho enquanto seu filho nascia, e antes que sua paternidade fosse questionada.

Neuras à solta. Teorias da conspiração também já devidamente publicadas: “o sistema rastreia o usuário e controla todos os seus passos, como um Big Brother planetário”, “rouba seus dados para usá-los contra você num futuro não tão distante”, “o governo mundial (hã?) está preparando o espírito humano para uma invasão alienígena”.
A besta, o anticristo, o Apocalipse!

Voltei do banheiro pra retomar a conversa com a mocinha.
“Então, como se joga isso mesmo?” Ela respondeu de pronto: “Temos que sair de casa!”
Entendi. O desafio estava lançado. E bem ao estilo manifestante-coxinha-batedor-de-panela, ou mesmo militante-antigolpe-de-camiseta-vermelha, fiz a única coisa que um cidadão-de-bem-revoltado-contra-vizinhos-escandalosos-e-fulaninhos-virtuais poderia fazer: fui pra rua!

Foi assustador o que vi. Ninguém escapava.
Todas as idades estavam ali representadas: crianças, adolescentes, adultos e velhinhos da terceira à ultima idade (não existe quarta, certo?), suficientemente ocupados.
Gente andando em círculos, tirando fotos do nada em qualquer lugar.
Fiquei sabendo que um mendigo foi desalojado do seu banquinho na praça, só porque dois pokémons lhe faziam companhia e o coitado virou alvo da mira de excitados celulares, numa patente invasão de privacidade.
Pior: vi uma senhora de saia curta com a bunda pra cima e metade do corpo dentro de um bueiro. Achei surreal, mas fiquei calado, pois ainda que eu não estivesse na posição em que Napoleão perdeu a dignidade, eu estava à procura das mesmas coisas que ela: monstrengos em miniatura.
Como explicar isso?

Minha “Ponyta” (escolhi esse nome de uma lista que vi num site, porque tinha um pônei amarelo estampado na camiseta da minha guria, mas ela não gostou) explicou que as coisinhas aparecem aleatoriamente pelo mapa. E descobri que todo estabelecimento queria virar “PokéStop”, um ponto turístico que aparece em destaque no mapa, na telinha do aparelhinho, para ali encontrarmos itens essenciais ao jogo.
Ela me ensinou a usar a pokébola, um compartimento em forma esférica criado para armazenar pokémons. Encontrou um novo pokémon? Pressione, segure e arraste a pokébola até que ela comece a girar e brilhar, lance-a sobre o bichinho e… Crau! Bola curva com faíscas eram as melhores, segundo ela.
Interessante… Aquelas bolinhas me lembravam de coisas de uma infância distante.

O joguinho é complexo. Às vezes a gente ganha ovos em pokéstops e esse ovo deve ser colocado para chocar, e com isso podemos dobrar os pontos obtidos.
Outra dica: o incenso. Não, não é aquele pauzinho colorido que a gente coloca pra queimar, mas um recurso do game que serve para atrair os personagens para perto de você. E crau!, de novo.
Naquele ritmo frenético, logo, logo eu me tornaria um “Mestre Pokémon”.
Dê um Google que ele te explica.

E assim fomos jogando… E fomos longe: de carro próprio e depois a pé, correndo de vez em quando. Andamos uns dez quilômetros colecionando bichinhos. Afinal, quanto maior a caminhada, mais raro o personagem.
A garota se divertiu como nunca e eu mais ainda. Paramos aqui e ali para almoçar, tomar sorvete, fazer selfies.
Ao longo das conversas, descobri coisas interessantíssimas: os nomes dos melhores amigos dela, seus planos de um dia tornar-se veterinária (cuidando de bichos reais, claro), sua dificuldade de se concentrar nas aulinhas chatas de inglês, sua comida preferida (pizza) e muito mais.
E ela ficou sabendo pela primeira vez e ao vivo que, quando menino, eu brincava de bolinha de gude e pique-esconde, e sonhava ser astronauta. “Tá explicado por que você vive no mundo da lua, né pai?” Rimos muito com isso também.
Voltamos ao final do dia com disposição para contar tudo para minha digníssima e passar uma noite sossegada, sem aquela vontade de brigar com a vizinhança barulhenta, não mais me sentindo a besta da vez.
O domingo prometia.

Com tantas lembranças, demorei pra pegar no sono.
Me lembrei que um dia perguntei a um nerdinho pra que servia a tal da internet.
Um absurdo, eu sei, mas esse foi apenas um da minha coleção de absurdos, muito maior do que a de criaturas disponíveis para captura no smartphone.
E agora posso dizer, sem medo: Eu amo pokémons e quando descobrir pra que eles servem, vou amar mais ainda.
Minto. Eu já sei pra que servem: passei um dia inteiro com minha filha, coisa que não fazia há anos, e conheci uma outra filha que, por eu viver no mundo da lua, não conseguia ver.
Paixão à primeira vista.

Então, pensando bem, embora tenha seu lado ruim, essa nova febre pode ser uma coisa boa. Depende do uso que se faz da tecnologia e — por que não? — de com qual monstro queremos interagir.
O que eu descobri é que não mais consigo viver sem ela. Estou falando da minha Ponyta, cujo coração de pokébola capturou minha atenção com aquele brilho que só o olhar e o sorriso de uma menina conseguem.
Finalmente eu aterrissei na Terra, me sentindo o pai mais feliz do mundo.

*            *            *

Notinha:
Tá bom , a crônica é bonitinha, o texto é engraçadinho. 
Claro que apenas para aqueles que estão muito envolvidos com o 'admirável mundo novo'. Tão envolvidos a ponto de se esquecerem das coisas comuns e simples da vida como sair com a própria filha e conversar.
Não é o meu caso.