domingo, 22 de novembro de 2015

Sobre a escrita - Guimarães Rosa



Em entrevista ao escritor e jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. 

Guimarães Rosa — Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. 
Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. 
Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. 

Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. 

E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardo Gomes de Brito e publicados em 1735). 
Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me se­para dos portugueses.
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Guimarães Rosa Quando escrevo, não pen­so na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva.

Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo.

Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. 
Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. 
Escrever, para mim, é como um ato religioso.

Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. 
Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. 
Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. 
A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.
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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Frases de Drummond - Revista Bula



50 FRASES DE DRUMMOND PARA CARREGAR NO BOLSO
Ademir Luiz - 'Revista Bula- colunistas'

A vida do poeta interplanetário Carlos Drummond de Andrade, nascido sob a proteção de um anjo torto na cidadezinha mineira de Itabira, de besta não teve nada. 
Além de ter colocado uma pedra no caminho (e no sapato) de muitos poetas municipais (e de bairro) Brasil afora, Drummond foi contista, cronista e um frasista de abalar a máquina do mundo. 
A Revista Bula selecionou 50 das mais belas, instigantes e provocadoras frases do mestre. Frases que podem ser levadas no bolso, na bolsa, na carteira, tatuadas ou escritas com esferográficas na mão, para serem lidas e relidas. 
E agora, José, qual frase você escolhe?

Tudo é possível, só eu impossível.
Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.
Precisamos educar o Brasil.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Podemos beber honradamente nossa cerveja.
Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante.
O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé.
A liberdade é defendida com discursos e atacada com metralhadoras.
A minha vontade é forte, porém minha disposição de obedecer-lhe é fraca.
Crimes suaves, que ajudam a viver…
O povo toma pileques de ilusão com futebol e carnaval. São estas as suas duas fontes de sonho.
Tristeza de ver a tarde cair como cai uma folha.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Há muitas razões para duvidar e uma só para crer.
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.
No adultério há pelo menos três pessoas que se enganam.
Como as plantas a amizade não deve ser muito nem pouco regada.
As dificuldades são o aço estrutural que entra na construção do caráter.
Os que amam sem amor não terão o reino dos céus.
Depressa, que o amor não pode esperar!
O cofre do banco contém apenas dinheiro; frustra-se quem pensar que lá encontrará riqueza.
Não é fácil ter paciência diante dos que têm excesso de paciência.
Meu verso é minha consolação.
Stop. A vida parou ou foi o automóvel?
A terra não sofreu para dar essas flores.
Ora afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber.
Deus me abandonou no meio de uma orgia, entre uma baiana e uma egípcia.
E o amor sempre nessa toada: briga perdoa briga perdoa.
Não se deve xingar a vida, a gente vive, depois esquece.
Os homens são como as moedas; devemos tomá-los pelo seu valor, seja qual for o seu cunho.
Necessitamos sempre de ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos torna sem ambição.
A educação para o sofrimento, evitaria senti-lo, em relação a casos que não o merecem.
Sexo, esse minúsculo ponto feminino, em torno do qual gira a máquina do mundo.
O amor no escuro, não, no claro, é sempre triste, meu filho.
O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia.
Há vários motivos para não se amar uma pessoa e um só para amá-la.
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens — e te descobriram e salvaram-se.
A poesia é incomunicável.
Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força jamais o resgata…
Os homens distinguem-se pelo que fazem, as mulheres pelo que levam os homens a fazer.
Os desiludidos seguem iludidos, sem coração, sem tripas, sem amor.
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.
Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.
Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo.
Que o poeta nos encaminhe e nos proteja.
Em vão assassinaram a poesia nos livros.
A soma da vida é nula.
E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.

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