terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

F. DOSTOIÉVSKI - "Noites brancas" (trechos)


Se não há outra vida, então é preciso construí-la a partir desses pedaços. 
E no entanto, é uma outra coisa que a alma pede e quer! 

E em vão o sonhador remexe, como que nas cinzas, em seus velhos sonhos, procurando nessas cinzas ao menos uma centelha para soprá-la e, através do fogo renovador, aquecer o coração esfriado e ressuscitar novamente nele tudo o que antes era tão belo, que tocava a alma. (...)

E me pergunto: onde é que estão os seus sonhos? 
E balançando a cabeça digo: como os anos passam depressa!
E novamente me pergunto: mas o que você fez dos seus anos?
(p. 43 e 44)

**
Que seja claro o seu céu, que seja luminoso e sereno o seu lindo sorriso; abençoada seja você pelo momento de júbilo e felicidade que concedeu a um coração solitário e agradecido!
Meu Deus! Um momento inteiro de júbilo! Não será isto o bastante para uma vida inteira?...
(p. 82)
*            *            *

Fiódor Dostoiévski in "Noites Brancas" - Ed. 34

sábado, 22 de fevereiro de 2014

FLORBELA ESPANCA - Nocturno

Foto: Testamento
_____________Alda Lara
À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...

Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
______________________
Biografia de Alda Lara

Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu em Benguela (Angola), em 9 de Junho de 1930 e ali passou grande parte da sua infância, por certo a coligir sentimentos que, mais tarde, exalaria pela poesia que escreveu.

Nascida numa família abastada, foi criada no característico meio crioulo da urbe das Acácias Rubras da década de 30, onde apesar da circunstância colonial não faltavam cultores da velha escola republicana portuguesa anterior ao Estado Novo, a par de remanescentes dos tempos da tipoia e do comércio sertanejo.

Teve, como era próprio do seu tempo, uma educação profundamente cristã, o que lhe conferiu "um vincado espírito de liberalismo".

Depois de ter concluído o sexto ano num colégio de madres em Sá da Bandeira (actual Lubango), partiu para Lisboa, onde terminaria os estudos liceais e frequentou a Faculdade de Medicina.

Durante este período manteve uma estreita ligação com a Casa dos Estudantes do Império - CEI, tendo sido igualmente colaboradora em jornais e revistas de relevância na época, tais como Revista Mensagem- CEI, o Jornal de Benguela, o Jornal de Angola, o ABC e Ciência. 

Nessas publicações, surgiram os seus primeiros escritos poéticos, também publicados em várias antologias, até surgir o seu primeiro livro, intitulado Poesias, em 1960.

Poeta da Geração Mensagem, A sua poesia transpira exílio, saudade obsessiva da terra e suas gentes, os lugares da infância, os amigos e as expectativas de um futuro em que pretendia participar logo que possível faz de Alda Lara, uma mensageira da sociedade civil, lutando com as armas de que dispunha a sua poesia, onde a política, estando implícita, é sobretudo do foro dos sentimentos.

Alda Lara, irmã do também notável poeta Ernesto Lara Filho, a poetisa de Benguela que faleceu prematuramente em 1962, anda algo esquecida em Angola por uma certa intelectualidade que, não obstante, não desconhece a importância da sua obra literária e o lugar de excelência que lhe cabe na literatura angolana, mas que persistem em fazer vista grossa à importância do seu testamento de (também ela) precursora de uma pré-poesia angolana que à época despontava, e que foi e é até hoje a voz feminina de maior sensibilidade, aliando ao acervo poético significativo que deixou, uma oficina de escrita passível de ser classificada já na década de 60 do século findo como de modernidade.

Após a sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira, atual Lubango, decidiu instituir o Prêmio Alda Lara de Poesia.

NOCTURNO
Florbela Espanca

Amor! Anda o luar, todo bondade,
Beijando a Terra, a desfazer-se em luz...
Amor! São os pés brancos de Jesus
Que anda pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade
Das ilusões e risos que em ti pus!
Traças em mim os braços duma cruz,
Neles pregaste a minha mocidade!

Minh'alma que eu te dei, cheia de mágoas,
É nesta noite o nenúfar de um lago
Estendendo as asas brancas sobre as águas!

Poisa as mãos nos meus olhos, com carinho,
Fecha-os num beijo dolorido e vago...
E deixa-me chorar devagarinho...

*            *            *

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

ESCOLA NAVAL Turma Feminina

Post facebook, 18 de fevereiro 2014


Primeira Turma Feminina da Escola Naval - 2014


Ao ver a foto da jovem aspirante já com o uniforme branco, uma delas escreveu um dos textos mais belos e atuais que li ultimamente. 
Ele não é apenas sobre Marinha, mas sim sobre o Brasil e os dias que vivemos.
Com a devida permissão da autora, Sra. Carla Andrade, encaminho o texto para sua apreciação.

Uma Foto e Vários Sentimentos
Carla Andrade

De todas as transformações que o nosso país enfrenta, não tenho dúvida que a pior delas é inversão de valores.
Não estou falando dos atores, mas da plateia.
Quem determina o sucesso de um espetáculo é o público. Por melhor que sejam os atores e o enredo, se o público não aplaudir, a turnê acaba.
Nós somos a sociedade, nós somos a plateia, nós dizemos qual o espetáculo deve acabar e qual precisa continuar.
Se nós estamos aplaudindo coisas erradas, se damos ibope a pessoas erradas, de que estamos reclamando afinal?
Somos nós que continuamos consumindo notícias de bandidos presos e condenados.
Somos nós que consumimos notícias de arruaceiros que ganham mesada para depredar o nosso patrimônio.
Somos nós que damos trela para beijaços, toplessaços, marcha de vadiaças, dos maconheiraços, dos super-heróis que batem ponto em “manifestações” (e que gostam de cozinhar-se dentro de uma fantasia num sol de 45 graus), e todos os tipos de histéricos performáticos que querem seus 15 minutos de fama.
Quando fazemos isso, estamos dando-lhes valores que não têm. Estamos dando-lhes atenção. Estamos dedicando-lhes o nosso precioso tempo.
Passou da hora de dar um basta nisso!
Por que os nossos jornais estão recheados de funkeiros ao invés de medalhistas olímpicos do conhecimento?
Por que vende-se mais jornal com notícia de um funkeiro que largou a escola por já estar milionário, do que de um aluno brilhante que supera até seus professores?
Por que sabemos os nomes dos BBBs e não sabemos os nomes dos nossos cientistas que palestraram no TED?
Por que muitos não sabem nem o que é o TED? Ou Campus Party? 
Por que um evento histórico para o Brasil como o ingresso da primeira turma feminina da Escola Naval não é noticiado?
Por que um monte de alienadas com peitos de fora, merecem mais as manchetes do que as brilhantes alunas, que conquistaram as primeiras 12 vagas, da mais antiga instituição de ensino superior do Brasil?
Por que nós continuamos aplaudindo a barbárie, se ainda temos valores?
O país não mudará se nós não mudarmos o foco!
Os políticos não mudarão se nós não refletirmos a sociedade que queremos!
Já passou da hora de nos posicionarmos!
Ostracismo a quem não merece a nossa atenção e aplausos para quem faz por merecer.
Merecer! Precisamos devolver essa palavra para o nosso dicionário cotidiano.
Meu coração ao olhar essa foto hoje, se divide em vários sentimentos distintos.
Muito orgulho de ser mulher e me ver representada por essas guerreiras.
Elas não estão fazendo arruaça pleiteando igualdade. Elas conquistaram a igualdade estudando e ralando muito.
Elas tiveram que carregar na mão as suas malas pesadas no dia que entraram na Escola Naval. Não puderam puxar na rodinha não! Tiveram que carregar na mão igual aos aspirantes masculinos. 
Elas foram e fizeram.
Mas ao contrário das feministas de toddynho, não estarão nas manchetes dos jornais de hoje. E isso me evoca outros sentimentos. 
Sentimentos de revolta, de vergonha, e de constrangimento frente a essas mulheres, que não serão chamadas de heroínas por apresentadores de televisão. Mas estão dispostas a morrer como heroínas por nosso país.

Parabéns Primeira Turma Feminina da Escola Naval, em 2014!
Vocês são a dúzia que vale muito mais que milhares!


*            *            *

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

LEONARDO SAKAMOTO - Pequenos contos...


Aos sábados, vovô colocava seu terno mais bonito e seguia para o baile. 
Escolhia sempre o mesmo banco e lá ficava, esperando.

Uma noite, o porteiro o viu saindo de mãos dadas com alguém. Descreveu a imagem que eu tinha da minha avó, das histórias que ouvia desde pequeno.

Uma hora depois, papai foi chamado ao baile porque vovô resolvera dormir para sempre, sentado no banquinho. Parecia feliz.

28 de janeiro 2014
**


Vovô, um dia, parou de falar. 
Zenaide dizia que tinha esgotado as palavras. 
Dr. Roberto, lá da cidade, explicava que foi grande trauma. 
Minha avó resmungava que era mula empacada. 

Na surdina, fui vê-lo roçar e, surpresa, dei com ele tagarelando com andorinhas, aconselhando saguis e fofocando com o gado. 
Já de volta, quando a primeira lua cheia do ano surgiu, acenou a todos com a aba do chapéu e se retirou - para nunca mais ser visto.

Herdeiro do silêncio dele, só eu sei que vovô não morreu. 
Mora, agora, dentro de mim.

17 de fevereiro 2014
*            *            *

Leonardo Sakamoto é jornalista e Doutor em Ciências Políticas.
Blog do Sakamoto - UOL

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Da Telma

Da página "A louca da biblioteca" - facebook


Em quantas promessas você acreditou antes de acordar? 
Quantas vezes você foi uma tola criança demais? 
Uma hora que alguém esqueceu
e que seria a eternidade pra você. 
Tome um café enquanto chove.
Tome um café enquanto outras palavras soam mais importantes que as suas,
por isso aquele tempo não lhe foi dado.
Sim, deixe gotejar uma lágrima, isso você sabe fazer muito bem. 
Dispense o abraço na hora da partida, já não importa. 
O que você queria saber jogue no esquecimento, 
já não importa. Você não importa.
Aprenda você também a não mais se importar.(TELMONT)

Em quantas promessas você acreditou antes de acordar? 
Quantas vezes você foi uma tola criança demais? 
Uma hora que alguém esqueceu
e que seria a eternidade pra você. 
Tome um café enquanto chove.
Tome um café enquanto outras palavras soam mais importantes que as suas,
por isso aquele tempo não lhe foi dado.
Sim, deixe gotejar uma lágrima, isso você sabe fazer muito bem. 
Dispense o abraço na hora da partida, já não importa. 
O que você queria saber jogue no esquecimento, 
já não importa. Você não importa.
Aprenda você também a não mais se importar.

(TELMONT)

*            *            *

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

ALEXANDRE O'NEILL - Há palavras...

Há Palavras que Nos Beijam
Alexandre O'Neill
Portugal, 1924-1986

Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 
Quando a noite perde o rosto; 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama 
Letra a letra revelado 
No mármore distraído 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte. 

* *

Amigo
Alexandre O'Neill

Mal nos conhecemos 
Inaugurámos a palavra «amigo». 

«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão! 

«Amigo» (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
«Amigo» é o contrário de inimigo! 

«Amigo» é o erro corrigido, 
Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada. 

«Amigo» é a solidão derrotada! 

«Amigo» é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa! 

*            *            *

In "No Reino da Dinamarca"

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

ANDRÉ J. GOMES - A chuva que varre...

Tela de Leonid Afremov
A chuva que varre os velhos ódios 
e a vida que brota em cada um de nós
André J. Gomes - "Revista Bula",

E no fim do trigésimo terceiro dia de calor desumano, uma chuva impetuosa varreu as ruas e as praças e os telhados das casas na terra abatida pela seca, a burrice e a falta de amor. 

Lá de cima, um batalhão de nuvens robustas disparava toneladas de água fria sobre a vida inflamada aqui embaixo, levantando do solo outras nuvens grossas de vapor e alívio em franca liberdade de volta ao céu.

Na eternidade de um instante, só a chuva se fez existir no conjunto da vida. 

Não havia mais o mundo e sua gente, suas regras e seus empregos, suas certezas e verdades absolutas, suas cargas horárias e tributárias, suas chantagens e mesquinharias. 
Só havia a água que caía e se esparramava em enxurradas, ondas, espirros e torrentes desmedidas.

Era só uma chuva. 

Mas enquanto caía, operava nas coisas uma inusitada transformação. 
Em vez das carreiras para debaixo das marquises, dos pedestres se escondendo em lojas e das senhoras abrindo suas sombrinhas, o pé d’água arrancou toda a gente de seus abrigos e as levou para fora. 
E foi como se todas as pessoas boas tivessem combinado de sair às ruas na mesma hora. 
De repente, a vida foi violentamente invadida por boas intenções e ações generosas. Estranhamente, o aguaceiro inundou o mundo de pequenos milagres.
Rios de gentileza desceram barulhentos as grandes avenidas e desembocaram em afluentes de compreensão e amizade, invadindo as ruas e suas casas, encharcando as famílias de amor, embebendo suas roupas de novas motivações, arrebentando as paredes que separam as pessoas de seus sonhos.

Velhos inimigos se deram conta do quanto são ridículas as suas rixas, maridos dominadores tremeram de vergonha ao perceber o quanto são patéticos ao subjugar suas companheiras de tantas formas. 

No trânsito, motoristas deram e receberam passagem em largos sorrisos. 
Por todos os lugares, as palavras mais ouvidas foram “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “por favor” e “obrigado”, num burburinho gentil e interminável de bondade e festa.

Entre todos os seres humanos, estabeleceu-se um novo conjunto de regras tácitas, sendo a mais interessante aquela que determina nosso dever absoluto de, sem nenhuma recompensa ou qualquer represália, avisar discretamente a todo semelhante, sobretudo os desconhecidos, sobre o advento de um incidente estético não percebido, como uma alface presa ao dente depois do jantar e a bunda que se prenuncia à apreciação pública involuntária no chamado cofrinho.


A chuva dissipou generosa em sua fúria os velhos ódios e rancores impregnados no solo como velhos chicletes. 

Limpou do coração dos homens a empáfia e a maldade, libertou os devedores de suas contas correntes e os inseguros de seus amores impostos. 
Firme em seu estado democrático natural, o temporal desabou com justiça sobre nossa série interminável de pequenas infelicidades e nossas alegrias rotineiras que, de tão recorrentes, já nem notamos.

Assim choveu por dias e noites ou minutos e segundos. Não importa. 

Só importa a chuva e o que ela trouxe. E quando a última nuvem esgotou seu derradeiro pingo, o sol retornou manso ao seio da terra e fez brotar o amor em todos os cantos.
Nas rachaduras do asfalto, nos jardins abandonados, nas sombras de um bosque, entre os bichos que nascem nas cascas das árvores, o amor renasceu forte e fecundo.

Como a festa de sons e cheiros e luzes que tem início nos corações refeitos, renovados e sãos, tão logo termina a chuva e recomeça a vida.


*            *            *

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

ARTUR XEXÉO - Santos

Trouxe esta crônica porque gosto de santos, gosto das delicadezas e ternuras familiares. 
Além de gostar também da escrita do cronista.

Coluna da  Revista  "O Globo" (26/1/2014)
Santos
Artur Xexéo
O Rio é uma cidade de santos. 
Não, não falo de nossos administradores, de nossos políticos, que esses têm muito pouco de santidade.
Falo de santos mesmos. Daqueles que nos protegem. Daqueles a quem fazemos promessas. Daqueles que respeitamos. 
Esta semana mesmo homenageamos São Sebastião. Com feriado e procissão. Ele merece. Afinal, é o santo cujo nome se mistura ao de nossa cidade - a mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro -, é o nosso padroeiro. Digamos que é o nosso santo oficial. 
Mas, verdade seja dita, ele tem seus rivais. Como São Jorge, que é tão popular que ganhou um feriado só para ele também. Não é padroeiro da cidade - na verdade, ele é o patrono do Reino Unido e, por aqui, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros - , não é nosso santo oficial, mas é, por lei, lembrado por todos os habitantes do Rio a cada 23 de abril. Tal feriado foi obra de um vereador e, depois, deputado do PT que usava o santo como cabo eleitoral. 
A lei instituindo a folga obrigatória no seu dia foi uma espécie de retribuição santificada. 
Não sei se o santo gostou. 
O deputado acabou condenado por crime de formação de quadrilha e foi expulso do partido. 
São Jorge é muito seletivo na escolha de suas companhias. 

Tem também o São José, que, coitado, mesmo sendo popularíssimo ainda não ganhou um feriado só para ele. 
Mesmo assim, a cidade para no dia 19 de março e muita gente não vai trabalhar sem antes dar uma passadinha na igreja que leva seu nome.

Lá em casa, nenhum desses três santos tem muito ibope. 
O santo protetor na minha família sempre foi Santo Antônio. 
Não sei por quê. Quer dizer, sei muito bem que nos tornamos devotos do santo por influência da minha avó. 
Já como começou a devoção de minha avó, isso eu nunca soube. Não tem nada a ver com as capacidades casamenteiras do santo. Lá em casa, ele era muito mais solicitado por outra qualidade, a de ajudar a encontrar coisas perdidas.

Quando vim para o Rio, para fazer vestibular, morei um tempo com essa avó. 
Não me lembro de ter saído de casa uma vez sequer sem que ela gritasse quando eu chegava à porta: “Vai com Deus, nossa Senhora e Santo Antônio.” 
Sempre que eu viajava, ela dava um jeito de enfiar na minha bagagem uma imagem em miniatura do santo. Eu nem percebia. Ficava surpreso, quando desfazia a mala, ao encontrar, a imagem, que, com o tempo, foi se tornando familiar.

Na primeira vez em que fui à Europa, minha avó me deu uma nota de dez cruzeiros e me fez um pedido. 
- Passa na igreja de Santo Antônio e deixa essa esmola. 
Não tinha intenção de perder tempo com esse desvio na minha passagem pela Itália. Mas prometi a ela que cumpriria a tarefa. 
Durante minhas férias, foi batendo um sentimento estranho. 
Passei por Roma, por Siena, por Florença... e, a cada cidade que eu visitava, aumentava a minha culpa por não estar cumprindo o desejo da minha avó. Em Ferrara, entreguei os pontos. 
Acordei cedo, fui de trem até a cidade de Pádua, procurei pela igreja do santo que protegia a cidade, deixei os dez cruzeiros. 
Voltei em paz e pude aproveitar o resto das férias.

Mesmo depois de minha avó morrer, continuei incluindo uma imagem de Santo Antônio nas bagagens de minhas viagens. 
Não sei quando parei de fazer isso, mas, recentemente, percebi que não viajo mais com ela. Na verdade, nem tenho mais imagens de Santo Antônio em casa.

Mas tem algo que não mudou. Sempre que saio, logo depois de fechar a porta de casa, ainda ouço em algum lugar do meu coração uma voz que grita: “Vai com Deus, nossa Senhora e Santo Antônio.” 

Minha vó deixou o santo me acompanhando.


*            *             *

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

IVAN MARTINS - A sombra que nos habita

Foto: A sombra que nos habita
Há uma tristeza em nós que precisa ser respeitada

IVAN MARTINS
13/11/2013 09h02

Há uma tristeza em nós que sobrevive às maiores alegrias. Todo mundo sabe disso. Freud, Shakespeare, Paulo Leminski. 
Um dia, inevitavelmente, os neurocientistas irão localizar, com ajuda de ressonância magnética, o vão do cérebro que permanece cinza mesmo no auge da euforia e no ápice da paixão. Então saberemos, com rigor científico, o que sempre soubemos: que a sombra e a melancolia são partes inseparáveis de nós.

Ter isso claro ajuda a entender o que nos passa. Ajuda a compreender nossos humores estranhos. Ajuda a entender uma tarde sombria no auge do verão. Ajuda a aceitar uma noite em claro, o silêncio no meio da festa, a vontade irresistível de chorar ouvindo uma canção no rádio. Também somos assim.

Às vezes temos sonhos de abandono em momentos serenos da vida. Neles, a pessoa que a gente ama vai embora, nos vira as costas, torna-se repentina e irremediavelmente inacessível. A gente acorda de um sonho desses com a alma turva, tomado de desconfiança. Olha cheio de ressentimento para a outra, adormecida ali ao lado, e se pergunta: por quê?

Não acho que exista uma resposta, mas eu tenho uma teoria.

A mim parece que a natureza nos dotou de alarmes. De quando em quando, um deles dispara para nos lembrar, realisticamente, que não há bem que sempre dure. É como se algo em nós dissesse (através do sonho, da inexplicável melancolia, de um pressentimento repentino), “Por favor, não se acostume. As relações não são eternas, a vida não é simples, a dor é inevitável.” Algo em nós avisa que a tristeza faz parte da vida.

Muita gente não está interessada, claro. A moda é parecer feliz e bem-sucedido. Tem mais de um rei do camarote dando pinta por aí. Mas essa fachada social sorridente precisa ser posta de lado na intimidade - ou a intimidade não existe. No aconchego de uma relação verdadeira, tem de haver espaço para os nossos medos, as nossas falhas e as inconfessáveis inseguranças. O lado B da alma humana precisa aparecer, nem que seja no escuro. Sem ele a gente não se entende, nem entende o outro.

Isso não cabe na trama das novelas, mas pessoas de verdade têm sonhos e dias ruins. Gente de carne e osso frequentemente parece incompreensível. Certas manhãs, elas nos olham com tanta tristeza que dá vontade de escrever um poema, de abraçar apertado, de segurar pelas bochechas e dizer “Eu sei como é. Eu estou aqui”. Talvez nem adiante, mas faz parte. Estamos nesse mundo também para nos consolar mutuamente.

Por isso acho bacana respeitar minha tristeza e a dos outros. Ela faz parte. Nos livra da idiotia de um sorriso permanente. Nos coloca em harmonia com um mundo nem sempre gentil. Reflete algo de profundo e inexorável da nossa biologia. No final das contas, é parte de nós. Como a alegria. Se não ligarmos para ela durante o dia, virá nos visitar durante a noite, num sonho – do qual sairemos de olhos molhados e sozinhos, até que um abraço nos resgate.
 
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras na Revista "Época")
A sombra que nos habita
Há uma tristeza em nós que precisa ser respeitada


Ivan Martins - Revista "Época", 13/11/2013 

Há uma tristeza em nós que sobrevive às maiores alegrias. Todo mundo sabe disso. Freud, Shakespeare, Paulo Leminski. 
Um dia, inevitavelmente, os neurocientistas irão localizar, com ajuda de ressonância magnética, o vão do cérebro que permanece cinza mesmo no auge da euforia e no ápice da paixão. Então saberemos, com rigor científico, o que sempre soubemos: que a sombra e a melancolia são partes inseparáveis de nós.

Ter isso claro ajuda a entender o que nos passa. Ajuda a compreender nossos humores estranhos. Ajuda a entender uma tarde sombria no auge do verão. Ajuda a aceitar uma noite em claro, o silêncio no meio da festa, a vontade irresistível de chorar ouvindo uma canção no rádio. Também somos assim.

Às vezes temos sonhos de abandono em momentos serenos da vida. Neles, a pessoa que a gente ama vai embora, nos vira as costas, torna-se repentina e irremediavelmente inacessível. 
A gente acorda de um sonho desses com a alma turva, tomado de desconfiança. Olha cheio de ressentimento para a outra, adormecida ali ao lado, e se pergunta: por quê?

Não acho que exista uma resposta, mas eu tenho uma teoria.

A mim parece que a natureza nos dotou de alarmes. De quando em quando, um deles dispara para nos lembrar, realisticamente, que não há bem que sempre dure. É como se algo em nós dissesse (através do sonho, da inexplicável melancolia, de um pressentimento repentino), “Por favor, não se acostume. As relações não são eternas, a vida não é simples, a dor é inevitável.” 
Algo em nós avisa que a tristeza faz parte da vida.

Muita gente não está interessada, claro. A moda é parecer feliz e bem-sucedido. Tem mais de um rei do camarote dando pinta por aí. Mas essa fachada social sorridente precisa ser posta de lado na intimidade - ou a intimidade não existe. 
No aconchego de uma relação verdadeira, tem de haver espaço para os nossos medos, as nossas falhas e as inconfessáveis inseguranças. O lado B da alma humana precisa aparecer, nem que seja no escuro. Sem ele a gente não se entende, nem entende o outro.

Isso não cabe na trama das novelas, mas pessoas de verdade têm sonhos e dias ruins. Gente de carne e osso frequentemente parece incompreensível. Certas manhãs, elas nos olham com tanta tristeza que dá vontade de escrever um poema, de abraçar apertado, de segurar pelas bochechas e dizer “Eu sei como é. Eu estou aqui”. Talvez nem adiante, mas faz parte. Estamos nesse mundo também para nos consolar mutuamente.

Por isso acho bacana respeitar minha tristeza e a dos outros. Ela faz parte. Nos livra da idiotia de um sorriso permanente. Nos coloca em harmonia com um mundo nem sempre gentil. Reflete algo de profundo e inexorável da nossa biologia. 
No final das contas, é parte de nós. Como a alegria. 
Se não ligarmos para ela durante o dia, virá nos visitar durante a noite, num sonho – do qual sairemos de olhos molhados e sozinhos, até que um abraço nos resgate.

*            *            *

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

SAUL DIAS - Todos os dias

Todos os Dias 
Saul Dias
Júlio Maria dos Reis Pereira (ou Júlio, como artista plástico e Saul Dias como poeta
 (Portugal,Vila do Conde, 1902 — 1983), pintor, ilustrador e poeta.


Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas...

Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo...

Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações...

Todos os dias
nascem risos, canções...

Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs...

Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs...

*            *            *

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

RUBEM ALVES - sobre Política...

Estou enjoado de política
Rubem Alves 

Olho para as notícias da política com absoluta indiferença. 
Por vezes o absurdo é incomum e se torna ridículo. Aí o humor me provoca, por um curto espaço de tempo, mas logo retorno à realidade. 
As notícias são de uma mesmice sufocante. Os mesmos rostos, os mesmos lugares-comuns, as mesmas frases batidas que nada dizem. 
Sou tomado por uma sensação física de paralisia e impotência. Nada posso fazer, em nada posso acreditar. 
Meus pensamentos ficam pesados como blocos de concreto: entidades inertes, mortas, das quais não surge nenhuma vida. 
Nietzsche confessava haver se encontrado com o demônio, e que sempre que isto acontecia todas as coisas leves ficavam pesadas e caíam. O que o levou a afirmar que o demônio era o espírito da gravidade. 
Sinto o mesmo quando vejo as notícias da política. O que me leva a suspeitar que é aí que o demônio mora. 
Por mais que me esforce não consigo me lembrar da última vez que ouvi alguma coisa inteligente da boca de um político. Pois a marca de uma coisa inteligente é o seu poder para fazer o pensamento voar, abrir horizontes, tornar luminoso o mundo, sugerir alternativas e abrir caminhos novos para o pensamento e a ação.

Não estou sozinho neste desencanto. Guimarães Rosa sentia a mesma coisa. Dizia que jamais poderia ser um político “com toda esta charlatanice da realidade. O curioso”, ele continua, “é que os políticos estão sempre falando de lógica, razão, realidade e outras coisas do gênero e ao mesmo tempo vão praticando os atos mais irracionais que se possam imaginar. Ao contrário dos legítimos políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. Sou escritor e penso em eternidades. O político pensa apenas em minutos. Eu penso na ressurreição do homem.”

Confesso que a minha alma gozava melhor saúde no tempo da ditadura.
Naqueles anos sombrios o pensamento brincava com a certeza de que aquilo não poderia durar para sempre. Era impensável que o horror durasse para sempre.

Dietrich Bonhoeffer, numa das cartas que escreveu da cela da prisão de um campo de concentração nazista, conta que o prisioneiro desconhecido que o antecedera escrevera, na parede, a sua mensagem de esperança desesperada: “Dentro de cem anos tudo isto terá terminado.” 
Muitas vezes repeti a mesma frase, embora não me atrevesse a imaginar que o medo pudesse persistir por tanto tempo. O horror chegaria ao fim e, com ele, um novo tempo. “Apesar de você amanhã há de ser novo dia...” 
O pensamento dançava entre o absurdo e a esperança. De um lado o noticiário político anunciava o presente. Mas os poetas cantavam um futuro. O que fazia com que o presente fosse vivido como tempo de espera, como gravidez, expectativa escatológica.

“Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena,/ embora o pão seja pouco e a liberdade pequena./ Como teus olhos são claros e a tua pela morena,/ como azul é o oceano e a lagoa serena,/ como um tempo de alegria e por trás do terror me acena,/e a noite carrega o dia no seu colo de açucena,/ como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena...”
(Ferreira Gullar) 

Era noite mas se podiam ver no horizonte as cores da madrugada.

Por isto o pensamento era leve! Por isto as idéias voavam! Por isto se geravam utopias! Por isto - apesar de tudo - os poetas falavam e o povo cantava: “Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, somos todos irmãos...”. Não havíamos sido abandonados pela beleza.

Mas este tempo passou. O tempo do horror chegou ao fim mas o que nasceu foi um novo horror.

Nosso tempo está vazio. Os poetas estão silenciosos. É noite, sem nenhum anúncio de madrugada.

Noite sem canções, noite sem sonhos.

A psicanálise descobriu que nós somos sonhos feitos carne.
Músculos, ossos, sangue: sólidas realidades físicas que não podem viver sem pão. 
Mas, como dizem os textos sagrados, “o homem não viverá só de pão”
Nossa carne precisa de sonhos para viver. 
São os sonhos que moram neste corpo que desenharão os seus gestos: se ele voará, leve, na direção das suas esperanças, construindo caminhos e pontes e plantando jardins, ou se se deixará afundar no charco da tristeza, fazendo apenas aquilo que a dura luta pela sobrevivência exige. “Sonho, logo existo.”

Aquilo que é verdadeiro para os indivíduos também é verdadeiro para os povos. 
Santo Agostinho já sabia disto e dizia que um povo é o conjunto de pessoas que amam as mesmas coisas, que têm sonhos comuns. 
Muitos séculos mais tarde o sociólogo Durkheim iria repetir a mesma coisa, dizendo que um povo não se faz com coisas materiais. Um povo se faz com ideais, com esperanças partilhadas. 
Estava certo o poeta Tagore quando dizia que o povo pedia canções. 
Há de haver visões de beleza, utopias de jardins e de harmonia entre os homens e a natureza, esperanças de paz e tranqüilidade, e o sentimento bom de que se está construindo um mundo amigo a ser legado como herança aos nossos filhos.

É por isto que os noticiários políticos só me causam náusea. Pois se noticia como se o destino do povo se tecesse nas artimanhas do poder. Mas um povo não nasce do poder; ele é uma criatura do amor. E o poder só tem sentido quando é uma ferramenta para a realização do amor.

Daí a nossa tristeza, pois o povo não acredita que o poder esteja a serviço dos seus sonhos. E de tanto ver os seus sonhos abortados achou melhor deixar de sonhar. 
Mas não é isto que deveria ser um político? Aquele que, por ser do povo, sonha os seus sonhos e se dedica a transformá-los em realidade. 
Lembro-me das palavras de Miguel de Unamuno: “Pelo que me diz respeito, jamais de bom grado me entregarei, nem outorgarei a minha confiança a condutores de povos que não estejam penetrados na ideia de que, ao conduzir um povo, conduzem homens, homens de carne e osso, homens que nascem, sofrem e, ainda que não queiram morrer, morrem; homens que são fins em si mesmos, e não meios; homens enfim, que buscam a isso a que chamamos felicidade.”

A esperança é de que, distantes da pantomima do poder, os sonhos não tenham morrido. 
Como na história da Bela Adormecida, eles dormem, mais profundos que pesadelos do cotidiano. E um dia acordarão. 
E o povo, possuído pela sua beleza esquecida, se transformará em guerreiro e se dedicará à única tarefa que vale a pena, que é a de transformar os sonhos em realidade. 
Esta é a única política que me fascina. 
Como o Guimarães Rosa, vivo na esperança da ressurreição dos mortos.

Rubem Alves 
(Correio Popular, 28/01/1991)
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