domingo, 1 de fevereiro de 2015

MANUEL BANDEIRA - Mundo de Chagall

Tela de Marc Chagall
Mundo de Chagall
Manuel Bandeira

Ao diabo a crônica que eu deveria escrever hoje!  Sinto o corpo cansado, o espírito deprimido, a vontade incerta.  Estou precisando de um banho de poesia.  Não de poesia participante ou de pesquisa, concreta ou neoconcreta ou eletrônica, mas de poesia levitativa, astronáutica, poesia que me leve a outros mundos longe deste, ao mundo de Chagall, por exemplo.
Chagall é de profissão pintor.  Sem embargo, de vez em quando desabafa em poemas tão lenitivos nas suas imagens quanto a sua pintura em cores inocentes e frescas.
Ao banho pois:

"Só é meu
O país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
Como em minha casa.
Ele vê minha tristeza
E a minha solidão.
Me acalanta,
Me cobre com uma pedra perfumada.
Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
à procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis por que sorrio
Quando mal brilha o meu sol.
Ou choro
Como uma chuva leve
Na noite.
Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas faces
Se cobriam de um orvalho amoroso,
Se fundiam como o perfume de uma rosa.
Hoje em dia me parece
Que até quando recuo
Estou avançando
Para uma portada
Atrás da qual se estendem muralhas
Onde dormem trovões extintos
E relâmpagos partidos.
Só é meu
O país que trago dentro da alma."

(20.IX.1961)
*            *            *

No livro "Andorinha, andorinha" - Seleção e coordenação de textos de Carlos Drummond de Andrade. Círculo do Livro, por cortesia de José Olympio Editora S.A.

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