sábado, 8 de junho de 2013

CECÍLIA MEIRELES - por ela mesma (parte II)


"Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde. 
Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de me ausentar em meu mundo e construir. 
Aos poucos pude criar a minha Ilha de Nanja, a São Miguel transfigurada pelo sonho. 
Acho linda a continuidade humana através da poesia. 
Só viajo com a Bíblia. A Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo: história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário."
'Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.'

"Mas comigo aconteceu uma coisa deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta minha casa (Cecília vive ao lado do bondinho que sobe pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as raças e religiões. Todos unidos pelo Natal. E o mais curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia comigo mesma: “Fulano talvez não combine com Beltrano, mas eu servi de elo entre os dois. A mim eles escreveram!” Me fez um bem enorme aquele meu Natal atrasado!"
'Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.'

"Se eu inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há um certa dose de vaidade. “In­ventei. É meu”.
O que me fascina é a palavra que descubro, uma palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e sofreu!
No “Romanceiro do Rio de Ja­neiro”, que estou preparando para o IV Centenário, procuro usar, em cada capítulo, a linguagem da época."
'Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…'

"Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!"
'Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.'

Tenho pena de ver uma palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. “Solombra”, meu novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.
Que procuras? Tudo. Que desejas? — Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.'

"Cada lugar aonde chego é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas.
Viajar para mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é alongamento de horizonte humano.
Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu mundo interior. As canções de Tagora, que tanta gente canta como folclore, tudo na Índia me dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali nem templos nem faquires.
O impacto de Israel também foi muito forte. De um lado, aqueles homens construindo, com entusiasmo e vibração, um país em que brotam flores no deserto e cultura nas universidades. Por outro lado, aquela humanidade que vem à tona pelas escavações. Ver sair aqueles jarros, aqueles textos sagrados, o mundo dos profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou Jeremias … Visitar Nazaré, os lugares santos!
A Holanda me faz desconfiar de que devo ter parentes antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias sem dormir. Me dava a impressão de que não estava num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro de gravuras.
Quanto a Portugal, basta dizer que minha avó falava como Camões. Foi ela quem me chamou a atenção para a Índia, o Oriente: “Cata, cata, que é viagem da Índia”, dizia ela, em linguagem náutica, creio, quando tinha pressa de algo, chá-da-Índia, narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo à Índia e a Portugal."
'Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.'

"A babá Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o partiram em mil pedaços."
'Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.'

"Viagens, folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito.
O desejo de ler Goethe no original me obrigou a estudar alemão.
Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos."

Cecília conhece uma meia dúzia de línguas mais.

"Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão. Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta."
'Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.'

"Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguma coisa.
Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas.
Mas aprendi também a renunciar.
Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes, um poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não lhe dou muita importância, vai embora. 
Tenho muita pena dos poemas que não escrevo. E também muita dos que escrevo."
E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará…

A juventude de hoje? Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade, as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova mensagem.
'Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.'

"A arte abstrata? Nós, pouco a pouco, vamos caminhando para o subentendido, não é?
A arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si. Muita gente faz coisas com nomes concretos que geram um mundo abstrato e vice-versa."
'Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.'

Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.
'Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.'

"Educação, para mim, é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor."

Em prosa Cecília dá lições de grandeza.
Vejam como descreve o barquinho Elenita: “parece uma nuvenzinha a correr por um espelho”.

E o “Anjo da Noite”: “À noite o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Há muitos sonhos em cada casa. O gato volta apressado, com certo ar de culpa”.

“Chuva com Lembranças”: “Começaram a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam”.

Outro: “Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa de jardim zoológico”.
**
"Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e me sentia completamente feliz.
Mas houve épocas em que a janela abria para um canal em que oscilava um barco carregado de flores. Outras em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade de giz, para um jardim que parecia morto. "

Outras vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor, nuvens espessas ou crianças que vão para a escola, pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas, marimbondos, um galo que canta, um avião que passa. E Cecília se sente completamente feliz.
E conclui: “Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.

Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul!
Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo porque continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”.
“Solombra”, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra.
Cecília, para nós. é só luz.



*            *            *

Entrevista publicada na revista “Manchete”, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. E posteriormente no livro “Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.


Fonte: 'Revista Bula'

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