terça-feira, 13 de novembro de 2018

Sobre 'Macunaíma',de Mário de Andrade

"Muito mais do que um livro de vestibular"
Edison Veiga
De Milão para a BBC News Brasil 
Fonte: Jornal UOL – 15 de setembro 2018

Grande Otello no filme Macunaíma
Adaptada para o cinema, em filme considerado por críticos
um dos cem melhores da filmografia nacional

"Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são" - esse slogan de Macunaíma pode ajudar a explicar metaforicamente o país até hoje, na opinião de muitos. 
Mas não é só isso que faz a grandeza dessa obra-prima, o romance rapsódia 'Macunaíma - O herói sem nenhum caráter', que o modernista Mário de Andrade (1893-1945) publicou em 1928, há 90 anos.

O escritor criou um anti-herói marginal que nasce com preguiça na Amazônia e apronta tantas traquinagens que acaba abandonado pela mãe. 
Macunaíma é erotizado e, a todo custo, busca prazeres sexuais. Ainda na floresta, ele ganha um talismã indígena, a muiraquitã. Depois perde a pedra e então viaja para São Paulo e Rio de Janeiro a fim de tentar recuperá-la. No percurso, o protagonista - que nasce negro e vira branco - vive peripécias e confusões, revelando suas falhas de caráter.

"O livro reúne uma vasta pesquisa da linguagem, das práticas narrativas e das músicas, das falas, ditos, contos e cantos populares do Brasil", enumera o antropólogo Paulo Santilli, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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"Com muita pesquisa, argúcia e inventividade, Mário introduziu linguagens populares nos centros urbanos e os ambientou, amalgamados, em uma inventiva criação, tecendo uma crítica, de modo tão irreverente quanto irônico, aos cacoetes das elites."
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Uma obra 'deslumbrante e triste, como o Brasil'

A primeira edição, com 283 páginas, foi impressa nas Oficinas Gráficas de Eugenio Cupolo, em São Paulo. Saiu do prelo em 26 de julho de 1928 e, nos meses seguintes, foi assunto entre os principais expoentes da cultura nacional. "A obra apresentou uma grande renovação estética. E isso provocou uma reação irada da crítica conservadora", diz Santilli.
Capa da primeira edição de Macunaíma, de 1928, hoje em domínio público
"É um marco do modernismo, o primeiro movimento literário realmente brasileiro e, dessa forma, ele dá resposta ao anseio do brasileiro entender quem somos, afinal, como povo. Essa é uma questão eterna para um país que surge do encontro - ou desencontro - de centenas de etnias indígenas e africanas, por causa da colonização europeia. Um país que é miscigenado, que se ama e se odeia por isso", comenta a antropóloga Deborah Goldemberg, curadora de um evento promovido pela organização social Poiesis para celebrar os 90 anos do livro.

"Desde que foi lançado, o livro significou isso - um marco na literatura brasileira, algo genuinamente brasileiro, com estética e linguagem próprias e não comparáveis ao cânone europeu que influenciava a literatura brasileira até então. Sempre encantou porque ele é ao mesmo tempo deslumbrante e triste, como o nosso país."
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Macunaíma já foi pintado, aliás, por uma gigante da história das artes plásticas do Brasil. É de Tarsila do Amaral (1886-1973) o quadro O batizado de Macunaíma, que hoje pertence a uma coleção particular.
Resultado de imagem para tela Macunaíma Tarsila do Amaral

Em 1969, Macunaíma virou filme - dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e com Grande Otelo (1915-1993) no papel principal. A obra é considerada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como uma das cem melhores da filmografia nacional.

Filme Macunaíma
Para especialistas em literatura e sociólogos, Macunaíma é uma obra que convida a refletir sobre a identidade nacional.

Gestação longa, nascimento rápido
Mário de Andrade costumava dizer que escreveu Macunaíma em apenas seis dias - "deitado na rede em Araraquara", frisa o poeta e crítico literário Frederico Barbosa. "No entanto, a obra revela uma enorme pesquisa e profunda reflexão do escritor sobre a identidade nacional. Ou seja, demorou muito tempo para ser gestada, embora tenha saído de forma bastante natural ao ser escrita."
Barbosa acredita que é isso que faz de Macunaíma um livro "sempre interessante e vivo".

"É erudição com naturalidade e humor. É muito sério em sua essência, mas muito engraçado e divertido na leitura. Em outras palavras, Macunaíma é, antes de tudo, uma obra gostosa de se ler que abre um vasto leque de reflexões sobre nossa identidade nacional", explica.

"Segue sendo importante porque diz muito do Brasil do início deste século e também do século passado", afirma Santilli.

"A maestria de Mário de Andrade ao mesclar a língua coloquial e a escrita demonstra a distância entre esses falares e confere um efeito estético. Essa trama ilustra a distância tanto no léxico quanto na política entre as elites e a população. Significa muito mais do que as listas de vestibulares. É um livro necessário para compreender o Brasil, a riqueza e a diversidade linguística e cultural do Brasil, e ao mesmo tempo a mediocridade e a avidez mesquinha da elite que marca a história do Brasil."

"Noventa anos depois, continuamos buscando uma identidade cultural nacional, algo que nos una enquanto nação. Mas continuamos divididos e sem conhecer nossa história - o que pode ajudar a entender todas as tensões atuais", comenta o editor e poeta Eduardo Lacerda.
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Poeta, escritor, crítico literário, musicólogo, historiador da arte, folclorista e ensaísta, ele gostava de ir a campo em busca das experiências dos brasileiros reais. Foi uma das mentes por trás da Semana de Arte Moderna de 1922, que deu início ao movimento Modernista e mudou a arte no país.

Em 1935, tornou-se diretor-fundador do Departamento de Cultura de São Paulo, um órgão que seria o embrião da atual Secretaria de Cultura. Em 1937, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) foi criado, Mário de Andrade foi incumbido de peregrinar pelo interior paulista a fim de identificar e mapear tudo aquilo que merecia ser protegido como bem cultural no Estado.

Nessas viagens, ele acabou se tornando o primeiro a olhar com interesse histórico para as hoje reconhecidas "casas bandeiristas", construções coloniais paulistas pobres e rudimentares, de estruturas simples e feitas de taipa de pilão. "Casas velhas", era como o poeta as chamava - sem que isso fosse algum demérito, muito pelo contrário.

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