segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

PIADA DE MAU GOSTO - Helio Schwartsman

Piada de mau gosto – Hélio Schwartsman – Folha.com, 29/07/2010



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À medida que os indivíduos crescem, vão --espera-se-- buscando formas mais sofisticadas e cerebrais de humor.
Essa "gramática" dá conta da estrutura intelectual das piadas, mas há outros aspectos em jogo. O humor também encerra dinâmicas emocionais. Ele de alguma forma se relaciona com a surpresa. Kant diz que o riso é o resultado da "súbita transformação de uma expectativa tensa em nada" ("Crítica do Juízo", I, 1, 54). Rimos porque nos sentimos aliviados. É nesse contexto que se torna plausível rir de desgraças alheias. Em alemão, até existe uma palavra para isso: "Schadenfreude", que é o sentimento de alegria ou prazer provocado pelo sofrimento de terceiros. Não necessariamente estamos felizes pelo infortúnio do outro, mas sentimo-nos aliviados com o fato de não termos sido nós a vítima.

Mais ou menos na mesma linha caminha Sigmund Freud, que também é autor de um livrinho sobre o humor ("O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente"). Para o pai da psicanálise, gracejos funcionam um pouco como os sonhos. Teriam força orgásmica e também revelariam impulsos inconscientes.


É o aspecto emocional, acredito, que torna muito frequente no humor um elemento menos bonito: a crueldade. Como observa Bergson, muitas piadas exigem "uma anestesia momentânea do coração". Nos gracejos mais elaborados essa crueldade quase desaparece, mas ainda deixa algum traço, na forma de "malícia", "esperteza" ou mais simplesmente na suspensão da solidariedade para com a vítima (sim, piadas geralmente têm vítimas). Bergson vê o riso como um "gesto social". Para o filósofo, o temor de tornar-se objeto de riso reprime as excentricidades do indivíduo. É uma espécie de superego social portátil.


Na visão bergsoniana, o riso deixa assim de ser um movimento puramente estético, à medida em que visa também ao aperfeiçoamento da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, conserva algo de puramente estético, porque os homens, quando já não se preocupam unicamente com sua sobrevivência individual e do grupo, podem "dar-se como espetáculo aos homens".


Numa abordagem mais contemporânea, o psicólogo evolucionista Steven Pinker também parte em busca de funções sociais. A exemplo do que ocorre com nossos primos símios, o riso e o humor são uma forma de comunicar estados internos à prova de fingimento (quem não reconhece uma risada forçada?). Isso é particularmente útil quando nos dedicamos a atividades que podem ser mal interpretadas, como as brincadeiras de luta. Elas exigem um equilíbrio delicado. Devem ser realistas o suficiente para que cumpram o objetivo de nos adestrar para batalhas de verdade, mas não a ponto de desandar para um conflito real, no qual os riscos de alguém se ferir seriamente aumentam bastante. O riso é a resposta, diz Pinker em "How the Mind Works" (como a mente funciona). Enquanto rimos, revelamos a nosso companheiro/adversário que não temos a intenção de feri-lo. Podemos seguir nos exercitando e, talvez ainda mais importante, forjando alianças políticas --que é outro nome para amizades.


É nesse contexto que se enquadra a escola judaica (desculpem, não resisti à piada) do humor autodepreciativo. Quaisquer dois indivíduos que tomemos, sempre haverá diferenças entre eles. Um será mais forte que o outro, que pode, por seu turno, ser mais bonito e inteligente, ainda que perca em riqueza e conexões sociais. Quando uma pessoa troça moderadamente de si mesma (nesse gênero, as pilhérias nunca são aniquiladoras), ela sinaliza que está disposta a diminuir um pouquinho a si própria para obter a cumplicidade do outro e rirem juntos. É, como diria Woody Allen em "Play it Again, Sam", o começo de uma bela amizade.


Só que o riso também pode ser uma arma, especialmente em ambientes mais civilizados, que trocaram pauladas e pedradas por debates. Um bom exemplo lembrado por Pinker é o gracejo antiaborto de Ronald Reagan: "--Noto que todos os que são favoráveis ao aborto já nasceram!".


Numa primeira leitura, o raciocínio seria trivial demais. É tão óbvio que todo ser humano já nasceu que nem faria muito sentido afirmá-lo. Assim, se o fazemos, estamos dividindo o mundo em duas categorias de indivíduos, os que já nasceram e os que não (os abortados), que é justamente os termos nos quais os antiabortistas querem colocar a discussão, de modo a aproximar aborto de assassinato. Apenas entender a piada já implica, portanto, ou coonestar esse enquadramento ou colocar-se como um hipócrita que goza de um privilégio (ter nascido) que não quer estender aos demais. Como argumento não é lá grande coisa, mas, como tirada é excelente e praticamente acaba com a discussão. Uma resposta exigiria no mínimo algumas centenas de palavras totalmente fora do "timing" do debate.


À medida em que mais indivíduos entram no jogo social, multiplicam-se as funções potenciais do humor. Sendo essencialmente uma forma de comunicação, o riso coletivo é capaz de sincronizar reações, o que o torna perigosamente subversivo. O paradigma aqui é a história de Hans Christian Andersen da roupa nova do rei. Na vida real, não é desprezível o papel que as piadas sobre as agruras do socialismo real desempenharam para a queda do comunismo no Leste europeu.


É claro que não é todo dia, observa Pinker, que nós temos de derrubar tiranos e humilhar reis. O mesmo mecanismo, contudo, também serve para diminuir as pretensões de gabolas, valentões, tartufos e, principalmente, políticos. Ao evitar que os candidatos se submetam ao teste do humor, o TSE priva a população da mais efetiva das armas de que ela dispõe para defender-se das maquinações e truques dos políticos e seus marqueteiros. É mais um pequeno desserviço do tribunal à democracia.


Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.

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