terça-feira, 21 de agosto de 2012

CLARICE LISPECTOR - Dois textos instigantes...

Se eu fosse eu
Clarice Lispector


Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.

Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.

No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos emfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

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Tempestade de almas
Clarice Lispector

Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia.
A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.
Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente.
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que amam.
A cadeira me é um objeto. Inútil enquanto a olho.

Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora.
A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida. Nada mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida.

Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.

O objeto cadeira sempre me interessou. Olho esta que é antiga, comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho.
Amo os objetos à medida que eles não me amam.

Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha.
Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amordaçaram a boca. O que é que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?"
Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criadora inconsciência do mundo.

Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.

Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não vejo nem sinto.

A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música.
Aliás, música é uma abstração do pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel.

Só posso escrever se estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo.

Olho a cadeira estilo império e dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto.

O futuro é meu enquanto eu viver.
No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada escrever.
No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia.

Marli de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada.

Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia?
O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o humano do homem se refugia.

Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas.
Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias.
Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano.
Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana.

Quantas mentiras sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o resíduo final de todas as coisas, e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo.

A Lua é, como diria Paul Éluard, éclatante de silence.
Hoje não sei se vamos ter Lua visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu.
Uma vez eu olhei de noite para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo.

Não há lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da natureza. Da natureza humana também.
O que seria do mundo, do cosmos, se o homem não existisse.

Se eu pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa brainstorm.

Quem terá inventado a cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então um maior conforto para o seu corpo.
Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é apenas automático.

É preciso ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar.

O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha.

Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.


In "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed. - Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994
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