domingo, 21 de outubro de 2012

MANUEL BANDEIRA - 'Pernambucano, sim, senhor'


Pernambucano, sim, senhor
Manuel Bandeira

Acordei, tomei o meu café, puxei para a cama a minha Hermes Baby e disse muito decidido:: vou bater uma crônica sobre o Natal.
Mas aconteceu-me a mim o mesmo que ao poeta no famoso soneto (*): a folha branca pedia inspiração e ela não vinha.  Não fiquei perplexo, porém.  Sei que mudei, que o Natal mudou, que todos mudaram, que tudo mudou, e isto é sem cura... No meu tempo de menino não havia Papi Noel, esse grande palerma francês de barbaças brancas, havia era "a fada", assim, sem nome, o que lhe aumentava ainda mais o encanto.

Mudei. Mudei muito. Menos numa coisa: continuo me sentindo profundamente, de raiz, de primeira raiz, pernambucano (com  bem aberto - pérnambucano).  No Itinerário de Pasárgada escrevi ter nascido para a vida consciente em Petrópolis, frase que alguns interpretam erradamente como atestado de verdadeiro nascimento fora do Recife.  No entanto, a oração seguinte explicava cabalmente: "pois de Petrópolis datam as minhas mais velhas reminiscências".

Dizer-se que nasci no Recife por acidente quando sou filho de pais recifenses, neto de avós recifenses e por aí acima, é inverter as coisas: digam antes que por acidente deixei o Recife duas vezes, aos dois anos para voltar aos seis, e aos dez para só o rever de passagem.  Mas esses quatro anos, entre os seis e os dez, formaram a medula do meu ser intelectual e moral, e disso só eu mesmo posso ser o juiz.  Me sinto tão autenticamente pernambucano quanto, por exemplo, Joaquim Cardozo, Mauro Mota e João Cabral de Melo.  Se não fosse assim, não poderia jamais ter escrito a "Evocação do Recife", poema do qual disse Gilberto Freyre (e que maior autoridade na matéria?) que cada uma de suas palavras representa "um corte fundo no passado do poeta, no passado da cidade".  Alegam que é sermão de encomenda.  Mas a encomenda veio por causa de uma carta escrita a Ascenso Ferreira, carta essa que foi a matriz do poema.  O poema já se gestava no meu subconsciente.  E, aqui chego ao cerne da minha verdade: sou pernambucano na maior densidade do meu subconsciente.

Estas linhas vão como amical protesto à entrevista dada a José Condé pelo poeta Carlos Moreira dos belos sonetos e das encantadoras poesias.  Compreendi que ele me quis honrar mais do que mereço dando à homenagem do meu busto no Recife um sentido mais largo, ainda que para mim menos amorável.  Carlos amigo, pode acreditar que nestes meus quase setenta e três anos de vida virei e mexi, andei certo, andei errado, corri, parei, prossegui, quis voltar, não pude não, que os caminhos percorridos prenderam meus pés no chão carioca.  Chão de asfalto - este terrível asfalto carioca onde tudo pode acontecer, até morrer-se afogado, como nas enchentes do Capibaribe!

(24.XII.1958)

Do livro "Manuel Bandeira - Andorinha, andorinha", seleção e coordenação de textos de Carlos Drummond de Andrade, edição integral, Círculo do Livro por cortesia da Livraria José Olympio Editora S.A. - 1978
***


(*) "Soneto de Natal". Ver, neste blog, marcador Machado de Assis.

O sublinhado significa, para mim, um poema pronto, em ritmo e rima:

"Nesta vida virei e mexi.
Andei certo, andei errado,
corri, parei, prossegui.
Quis voltar, não pude não
que os caminhos percorridos
prenderam meus pés no chão."

*            *            *

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