domingo, 15 de junho de 2014

EDUARDO GALEANO - Outro músculo secreto

Outro músculo secreto 
Eduardo Galeano – In: “O livro dos abraços”

Nos últimos anos, a Avó estava se dando muito mal com o próprio corpo. 
Seu corpo, corpo de aranhinha cansada, negava-se a segui-la. — Ainda bem que a mente viaja sem passagem — dizia. 
Eu estava longe, no exílio.

Em Montevidéu, a Avó sentiu que tinha chegado a hora de morrer. 
Antes de morrer, quis visitar a minha casa com corpo e tudo. 
Chegou de avião, acompanhada pela minha tia Emma.

Viajou entre as nuvens, entre as ondas, convencida de que estava indo de barco; e quando o avião atravessou uma tempestade, achou que estava numa carruagem, aos pulos, sobre a estrada de pedras. 
Ficou em casa um mês. 
Comia mingaus de bebê e roubava caramelos. 
No meio da noite despertava e queria jogar xadrez ou brigava com meu avô, que tinha morrido há quarenta anos. 
Às vezes tentava alguma fuga até a praia, mas suas pernas se enroscavam antes que ela chegasse na escada. No final, disse: 
— Agora, já posso morrer.

Disse que não ia morrer na Espanha. 
Queria evitar que eu tivesse a trabalheira burocrática, o transporte do corpo, aquilo tudo: disse que sabia muito bem que eu odiava a burocracia. 
E regressou a Montevidéu. 
Visitou a família toda, casa por casa, parente por parente, para que todos vissem que tinha regressado muito bem e que a viagem não tinha culpa. 

E então, uma semana depois de ter chegado, deitou-se e morreu.
Os filhos jogaram as suas cinzas debaixo da árvore que ela tinha escolhido. 

Às vezes, a Avó vem me ver nos sonhos. Eu caminho na beira de um rio e ela é um peixe que me acompanha deslizando suave, suave, pelas águas.


*            *            *

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