quarta-feira, 23 de julho de 2014

ARIANO SUASSUNA - Conhecendo um pouquinho mais...

Um autor sem medo do adjetivo

Aos 80 anos, o escritor e dramaturgo experimenta o brilho de mais uma obra adaptada para a TV e diz que continua escrevendo diariamente com o mesmo cuidado, sem desprezar os adjetivos necessários

Gustavo Acioli entrevista Ariano Suassuna - REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA


O relógio aponta 16 horas, nem parece. A quentura é como a do meio-dia, úmida e sufocante. 
É quinta-feira, 
Rua da Aurora, 423, Recife. 
À beira do Capibaribe, num casarão secular, funciona a Secretaria de Cultura de Pernambuco.

Meu encontro é com o secretário, e não há espera. 
Sou levado ao gabinete de Ariano Suassuna, que me recebe com um sorriso. 
A sala é pequena, sem luxos, sem computador, sem nada demais. 
Sobre a mesa, dessas de repartição pública, um telefone e um guerreiro de lança, simbolo do maracatu.

Assumiu o posto de secretário pela segunda vez. Diz que não teve como negar convite do governador Eduardo Campos, neto do amigo Miguel Arraes. Garante que não tem o vigor do passado. Mas a capacidade de contar histórias sorrindo engana a idade.

Suassuna nasceu em 16 de junho de 1927. 
É o mais pernambucano dos paraibanos. 
Vive com Zélia, primeira namorada e mãe de seus seis filhos, e mora no mesmo casarão desde 1959, no bairro do Poço da Panela. 
A casa foi comprada com os direitos de Auto da Compadecida (1955).

Com vasta obra, Suassuna é um genuíno "parabolicamará", neologismo de Gilberto Gil que funde a imagem de um cesto à de uma antena, para ilustrar a capacidade de adaptação de um mesmo registro em caldos culturais distintos, o local e o global, a oralidade popular e a eletrônica. 
Ele é a um só tempo medieval e pós-moderno, armorial no televisivo, dinossauro em banda larga. 
A adaptação para TV de A Pedra do Reino, no mês passado, foi mostra disso. 
Nesta entrevista, ele mostra como o cuidado com o idioma ajudou sua obra a transitar por ambientes e meios tão distintos.

Língua - Como foi seu encontro com o universo da língua portuguesa?

Ariano Suassuna - Foi o contato com os livros o que começou a me despertar para a importância e a beleza da língua. 
Tanto em casa quanto na escola. Fui à escola com 7 anos, já alfabetizado. 
Lembro que tive a sorte de pegar como livro, que hoje chamaríamos de paradidático, "Através do Brasil"
Era muito bem-escrito, de autoria de Olavo Bilac e do sociólogo Manoel Bonfim. 
Ele exerceu em mim grande influência. 
Hoje, vejo que me tocou por duas coisas. Em primeiro lugar, porque na época eu lia só livros policiais cuja ação se situava em Londres. E via naquele livro, pela primeira vez, a paisagem e a cidade brasileira.

- Do que tratava o livro?

- "Através do Brasil" começava no Recife e acabava no sul do país. 
Contava a história de dois meninos à procura do pai, dado como morto. 
Meu pai tinha morrido (João Suassuna, ex-governador da Paraíba, assassinado em 1930). 
Aquilo me tocava. 
Vejo que uma das formas de interesse era essa coincidência, mas não lembro se na época isso já me tocava... Os dois passavam mil aventuras e encontravam um sertanejo, Juvêncio, nome tutelar para eles, pois era mais velho, com experiência na zona rural e disposto a ajudar. No meio da jornada, se separam. No fim, reencontram o pai, que chama Juvêncio para ficar com eles. O livro foi o meu primeiro encanto literário com a língua.

- Os livros, então, chegaram cedo à sua vida...

- Veja, meu pai era um grande leitor, bem como meus irmãos mais velhos. Enquanto eu, minha mãe e minhas duas irmãs ficávamos no sertão (fazenda Achaun, em Sousa, Paraíba), meus irmãos moravam no Recife. 
Quando passavam férias no sertão sempre me levavam livros. 
Nessa época, ganhei de presente de minha mãe as obras de Monteiro Lobato. 
Foi um deslumbramento. Aí li "Urupês", que também me encantou. 
Depois, um tio me emprestou o primeiro José Lins do Rego, "Doidinho", que logo comecei a ler. 

- E depois, mais velho?

- Ainda na biblioteca de meu pai, que era admirador de Eça de Queirós. 
Repare, me deixe fazer uma referência a um livro especial, "A Cidade e as Serras", de Eça. 
É admiravelmente bem escrito. Lia com sensação de sensualidade até. É atual, uma sátira às primeiras distorções da tecnologia sobre a personalidade do homem da cidade. 
As frases ainda hoje me lembro. (Recita
"Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar. [...] Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes". 
Li isso e a própria língua me soava como música, tá entendendo?


- Como deu valor à força da língua portuguesa?

- Quando era jovem, muita gente me dizia que o português não era língua forte, ao contrário do inglês. 
Eu precisava muito da musicalidade da língua, até porque queria escrever teatro. 
Precisava de uma língua com ritmo e plástica musical porque o teatro precisa disso. 
Acontece que comecei a ler escritores estrangeiros. 
O meu inglês é fraco: dá para a revista Time, mas Shakespeare, não. Então, li em inglês Otelo com a ajuda de cópia traduzida. Em dado momento, Otelo, cheio de cólera, diz: "Blood, blood, blood". Quando olhei a tradução, "Sangue, sangue, sangue...", eu disse: é, o português é mais fraco. 
Mas, veja, era um erro meu de interpretação. O original tinha sido escrito por um grande poeta. Se fosse brasileiro, não poria "sangue", mas uma palavra que tivesse a mesma força que senti com o inglês dele. 
Fiquei na dúvida até ler Vieira: Sermão da Quarta-feira de Cinzas (1670). 
Ali percebi o português como grande língua. Eu até poderia ser mau dramaturgo, porque era ruim mesmo, mas não por causa da língua. (Recita)
"Lembra-te homem de que és pó, e ao pó havereis de retornar / Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas certas, ambas temerosas, ambas de difícil entendimento...   Uma é presente, a outra é futura, mas a futura os nossos olhos já podem vê-la, e a presente não a alcança o nosso entendimento... E que duas coisas misteriosas são essas? Sois pó e em pó vos haveis de converter-vos. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter não precisa fé nem entendimento para o alcançar, basta assisti-lo em qualquer sepultura, aberta ou fechada, podereis pela prova de que vos digo. Que dizem aquelas letras que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser."
Pode-se traduzir Padre Vieira para o inglês, mas o que vai sair é muito mais fraco. 
Aí, vi que a língua portuguesa era fortíssima. De musicalidade e teatralidade que estão à disposição, mas é preciso ser tão bom quanto Vieira.


- O que um escritor pensa quando lembra que o Brasil é país de analfabetos?

- É muito triste. Outro dia, me acusaram de elitismo. 
Repare bem, falavam que eu era elitista porque diziam que, com o Romance d´A Pedra do Reino, é preciso fazer um esforço grande para ler. É acusação demagógica. 
Vou dizer uma coisa: o simples fato de a pessoa ser escritora deixa-a sujeita a ser chamada de elitista. 
Se você pega os números do escritor mais vendido, um Paulo Coelho, por exemplo, mesmo que venda 1 milhão de exemplares, não sei nem se ele vende, mas se vende, o país tem 180 milhões de pessoas. Se só 1 milhão lê o autor mais lido é muito triste. 
Mas é um fato com o qual a gente tem de lidar. Acredito que na Itália todos saibam ler, mas não que tenham lido a Divina Comédia.

- Depois de tantos livros, escrever é mais fácil?

- É muito prazeroso, para mim, mas fácil não diria que é. Escrevo e volto ao texto várias vezes. Escrevo todo dia, menos quando dou entrevista. (Risos)


- Graciliano Ramos dizia que escrever era sofrido, e é preciso torcer, retorcer e enxugar palavras como as lavadeiras dos rios... 

Para ele deveria ser mesmo, porque era muito conciso; eu não sou. 
Sou prolixo, falastrão, mas volto muito ao texto. 
Eu não diria retorcer, mas gosto de esculpir. Procuro sempre a expressão, não a sobriedade. Procuro usar palavras que sejam necessárias para expressar uma paixão. 
Sou um escritor apaixonado, não sou frio, não. Preciso, inclusive, de adjetivos. 
Já vi muita gente elogiando Graciliano porque não usava adjetivos, e reclamando de mim. Uso sim. 
Um dos mestres que mais admiro no Brasil, Euclides da Cunha, usava muito. 
A linhagem de Machado de Assis tem certo preconceito com o adjetivo, e Graciliano era dessa linhagem. Sou da outra, da de Euclides da Cunha.

- A academia debate o idioma, uns mais radicais em relação ao uso; outros, mais flexíveis. O que pensa disso?

- É preciso distinguir as coisas. A linguagem escrita é uma coisa, a falada é outra. 
Na escrita, você faz escolhas, às vezes se aproxima mais da fala, às vezes se afasta. 
A linguagem literária é diferente, inclusive, tenho antipatia pelos escritores que forçam uma linguagem errada para aproximar-se do linguajar do povo. Procuram imitar a letra da linguagem popular, não o espírito. É preconceito, uma discriminação. 
Quando você apresenta um personagem que pertence à classe média, não vai inventar e colocar prosódias de acordo com o que você diz. 
Eu, por exemplo, quando falo, não digo "cadeira", digo "cadêra". Mas, se a pessoa me põe como personagem, escreve "cadeira", porque a escrita é uma convenção. 
Agora, se é personagem do povo, escrevem "cadêra". Digo "nóis", não "nós". Mas se é um homem do povo põem "nóis". 
Tenho horror a isso. Acho uma falta de respeito ao povo, uma tentativa de encontrar, na caricatura, uma naturalidade diferente. 
É a mesma coisa quando me chamam de "contador de causos". 
Não é nem daqui (Nordeste), é coisa de Minas e São Paulo. Não tem nada a ver comigo.

- Como seria, então, a busca desse espírito da fala popular?

- Sem querer puxar a brasa para a minha sardinha, mas no "Auto da Compadecida" não tem um erro de português lá, mas duvido que você, ouvindo a leitura do livro, não sinta a sonoridade popular.

- O senhor é defensor da preservação e do registro das manifestações populares. Sem isso, qual o risco para o país?

O risco é enorme de o povo ir para um canto e o país, para outro. 
Toda a minha tentativa é de evitar ou resolver essa dilaceração que há no Brasil, entre uma expressão popular artística, literária e a literatura e arte que a gente faz. Procuro muito as duas coisas.

- Para a diversidade continental, qual a importância de sermos o único país que fala português na América?
(Suassuna fala sobre a obra em oficina para grupo de atores do especial da Rede Globo) 

- Primeiro, não acho que haja risco de influências negativas porque olho sempre a própria Península Ibérica como uma unidade. Espanhol, galego, português e catalão são primos legítimos e muito parecidos. 
A mesma coisa acho daqui. 
Fiquei orgulhoso quando o "Auto da Compadecida" foi encenado no México. 
Um escritor de lá se identificou tanto que publicou uma carta a João Grilo, no jornal. 
Dizia que via em João Grilo o povo mexicano. 
Quando leio Carlos Fuentes [escritor panamenho de grande projeção no México], sinto as mesmas preocupações com o México que tenho em relação ao Brasil. 
Olho Pancho Vila e Emiliano Zapata e olho os caudilhos daqui, Antonio Silvino e Lampião, e acho parentesco. Se bem que os daqui têm menos programa político. Mas há semelhança. 
Somos uma grande unidade. 
Isso não me preocupa muito, porque o próprio Brasil não é só uma unidade. É unidade de contrastes. 
Dentro do país há diferenças tão grandes quanto entre nós e a Bolívia. Da Amazônia para Minas, as diferenças são gigantes.


- Não é incrível um país do tamanho do Brasil conseguir ter apenas um idioma oficial?

- Um milagre, na verdade. Já pensei muito nisso. 
Primeiro achei que era a Igreja Católica a responsável pela unidade brasileira. Mas a Igreja sempre esteve na América espanhola, e ela se fracionou. 
Na minha visão, foi uma jogada política brilhante de um cidadão chamado José Bonifácio de Andrada e Silva. Ele teve a ideia genial, muito criticada pelos radicais e impacientes da época, de realizar a independência do Brasil tendo à frente o herdeiro da coroa portuguesa. 
Então, repare, a independência em vez de ser feita por generais nas diversas regiões, foi feita pelo príncipe, que tinha todo o interesse em manter o país. 
Dom Pedro I chamou o Brasil de Império. 
Não poderia ser um reino como Portugal, teria de ser império por causa das dimensões continentais. Dom Pedro expressou isso. 
Então, José Bonifácio fez dele o centro da independência. 
Mesmo assim, o Rio Grande quase vai embora na Revolução Farroupilha, o Nordeste quase escapa em 1824, com a Confederação do Equador. Mas a coroa sustentou. 
Tenho a impressão de que foi graças a essa jogada de Bonifácio que surgiu a unidade do Brasil.

- O senhor tem fama de radical e purista, principalmente quanto à invasão de termos estrangeiros no português...

- Reconheço que radicalizei a vida toda, mas é que precisava. 
Veja bem, não tenho preconceito contra palavras estrangeiras no idioma. Mas as palavras devem ser conformadas ao estilo da nossa língua. 
Os jornalistas esportivos do Brasil prestaram um benefício enorme. Quando eu era menino, as palavras ligadas a futebol eram em inglês. Escrevia-se football. Gol era goal, goleiro era goal keepper e escanteio, corner. 
É preciso reconhecer que os jornalistas criaram essas palavras que hoje são ditas naturalmente. Às vezes há absurdos. O plural que criaram para "gol" é louco: "gols". Quando os locutores dizem "gous", não é o mesmo que "gols".

- Projeto como o do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que cogitou a proibição do uso de termos estrangeiros, conteriam a invasão estrangeira?

- Não sei, não. O caminho para combater isso não sei, eu me limito a ridicularizar.

- O que os pernambucanos podem esperar, então, de seu secretário de Cultura?

- (Risos) Acho que os pernambucanos não podem esperar muito, não, mas o que puder fazer pela nossa cultura, vou fazer. 
Digo sempre: não me considero otimista, acho os otimistas ingênuos. Nem pessimista, acho eles amargos. Eu me considero um realista-esperançoso. 
Tenho esperança. 
A esperança é uma das três virtudes chamadas teologais (fé, esperança e caridade). Sou fraco na fé, na caridade, mas sou bom na esperança. 
Luto, sou um homem animoso. 
É possível participar das coisas e a gente não deve ter medo, mesmo que a tarefa pareça invencível. 
*            *            *

OBRAS DE ARIANO SUASSUNA:

Uma Mulher Vestida de Sol (1948); 
Ode (1955); 
Fernando e Isaura (1956); 
Auto da Compadecida (1957); 
O Casamento Suspeitoso (1961); 
O Santo e a Porca (1964); 
A Pena e a Lei (1971); 
Romance d'A Pedra do Reino 
e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971); 
Farsa da Boa Preguiça (1974); 
História d'O Rei Degolado nas Caatingas 
do Sertão: ao Sol da Onça Caetana (1977); 
Sonetos com Mote Alheio (1980); 
Sonetos de Albano Cervonegro (1985); 
A História de Amor de Romeu e Julieta (1997).

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