quinta-feira, 26 de março de 2015

Trocando E-mail - Joaquim Ferreira dos Santos


De: tom@arpoador 
Para: zózimo@leblon
 (15/12/2014)
Joaquim Ferreira dos Santos - colunista jornal O Globo

Meu caro Zózimo, receba daqui, diretamente da muvuca do Arpoador, toda a minha invejinha branca por você estar aí, no outro lado do calçadão, no cantinho discreto do Leblon. 
Que sossego deve ser essa vida de estátua longe das multidões!
Não sei se você tem lido jornal, mas me colocaram no meio de uma cena infernal, na esquina dos arrastões e dos turistas internacionais. 
Eu virei aquela pedra no caminho de que falava o Drummond, outra vítima, coitado, dessa mania de fazerem estátua para todo mundo.

Estou no meio da calçada atravancando ainda mais a vida de quem quer a simplicidade feliz de andar de um lado para o outro, sem ter que desviar de um cara feito de pedra, paradão na tua frente.
Pois saiba, meu bom Zózimo, que me botaram num lugar cheio de fradinhos, antenas de operadora de celular, latões de lixo, aqueles bancos desconfortáveis para mendigo não sentar, enfim, uma confusão de obstáculos. 
Como se fosse pouco este caos de atrapalhamentos, agora colocaram mais um cotoco para o cidadão tropeçar. Eu!
Você que é jornalista, me diga: quem teve essa ideia maluca?

Estou de costas para o mar, servindo de enfeite para que gente do mundo inteiro venha se apoiar no meu ombro, se tome de intimidades com minha pacata figura tijucana e me compartilhe em milhares desse negócio que eles agora pedantemente chamam de selfie.

Como eu te invejo, querido Zózimo! O tempo todo olhando a sinuosidade do Leblon, as dunas de Ipanema. 
A vista alcançando daí até o nascer do sol aqui na praia do Diabo, um deslumbramento de cores que agora está nas minhas costas e eu para sempre fiquei condenado a nunca mais ver.
Você é um felizardo, meu caro! Te colocaram de olho direto sobre a areia, para você seguir apreciando o cenário tão ao seu gosto, o mais impressionante espetáculo sobre a terra – a eterna melhoria das sucessivas gerações de moças que vão à praia.
Elas continuam basicamente as mesmas, com todos os mesmos acessórios de sempre, mas como é que elas conseguem? Como é que o Divino lá em cima consegue? Mexem no cabelo aqui, no músculo ali, redesenham as redondilhas, as panturrilhas, aperfeiçoam minúcias que ninguém imaginava poderem ser aprimoradas – e a cada safra, a cada geração, elas se apresentam para o banho de mar com uma arte final mais espetacular do que nunca.
Pois, Zózimo, me deixaram de costas para tudo isso!
Me fizeram na medida para servir de cenário, uma curiosidade carioca a mais para que as pessoas coloquem no tal do Instagram e digam aos amigos distantes que estão no Rio e tropeçaram com o Tom Jobim. 
As operadoras de celular estão faturando às minhas custas e eu, duro de pedra, tenho que permanecer em silêncio.

Essas são as notinhas que eu tenho aqui do outro lado da praia, meu caro colunista.

Que saudade do tempo em que a gente ficava na Cobal do Leblon jogando conversa fora, resenhando a Humanidade. 
Ninguém chegava para fotografar. Grandes charutos, grandes chopes, papos intermináveis.
Uma vez você aproveitou na coluna uma das loucuras que saíam nessas horas. 
A gente conversava sobre um amigo, bom de copo, que se internara para uma temporada de 30 dias de desintoxicação. Aí eu disse, “pois é Zózimo, a gente passa a vida inteira construindo uma reputação pra ver tudo se perder em um mês”. 
No dia seguinte estava no jornal, em três linhas, com aquela tua classe redacional.

Pois é, meu caro, do cantinho discreto da Cobal eu vim parar no calçadão do Arpoador. 
Como se não bastasse ser abraçado o dia inteiro por gente que nunca vi mais gorda e cheia de areia, colocaram para me proteger dos vândalos um carro da Guarda Municipal estacionado do meu lado. Em cima da calçada!
Um repórter veio cobrir a inauguração daquilo a que agora estou condenado e me disse. No Rio já somos 312 bustos e, com a minha, 98 estátuas fincadas. É quase a população de um bairro. 
Imagino que em breve um decreto municipal vai nos dar vida e começar a cobrar o IPTU.

Enfim, eu agradeço a intenção de quem o fez, inclusive de terem me esculturado jovem. 
Mas quem ouviu a bossa nova sabe que eu sou zero de pompa e pose. 
A grande homenagem seria cuidar da minha sumaúma no Jardim Botânico. Conservar as praias do Oceano Atlântico sem estátua na frente ou sem a favela de quiosques escondendo as Cagarras. 
Meu negócio é a poesia do urubu solto, o resto é a lama, é a lama.
A propósito, meu bom Zózimo, eu temo que agora, com a estátua plantada no meio da calçada, comecem a cantar uma nova versão da minha música – e ela passe a ser “é pau, é pedra, é o Tom no caminho”
**
De: zózimo@leblon 
Para: tom@arpoador
04/03/2015
Joaquim Ferreira dos Santos 

Meu caro Tom Jobim, antes de mais nada seguem, de estátua para estátua, do fundo do meu coração de bronze, as desculpas por ter demorado tanto tempo, lá se vão três meses, desde que o amigo me mandou aquela carta tão simpática aí da ponta do Arpoador. 
Como vão as coisas? Muito pau de selfie? 
Parece que agora você foi cercado por hippies estrangeiros vendendo anel de lua e estrela. Muito cheiro de mato?
Seja bem vindo ao clube, Tomzinho. 
Antes, seres ambulantes, nós éramos sol, sal, sul, sexo e social. Agora, fixos nessas calçadas, somos só sol, susto e sereno. É o que rola. 
Chuva tem tido pouca. A propósito, prepare-se. São Pedro, pelo andar da carruagem e do movimento das nuvens, não vai mandar as águas de março que você tão bem cantou e fechavam o verão. 
Aposto que neguinho (escapou o politicamente incorreto!) vai aproveitar para dizer que a tua obra está superada e, se bobear, faz manifestação aí na tua frente para exigir as tuas promessas.
É, meu bom Tom, foi você quem disse: no Brasil, sucesso é ofensa pessoal.

Eu não posso reclamar da vida de estátua aqui no Leblon. 
Me colocaram de olho na praia, o que me permite dar uma geral nessa nova geração de gatinhas – a propósito, onde vai parar a evolução da espécie com esse interminável aperfeiçoamento do layout das moças? 
A Duda Cavalcanti era linda, mas no outro dia passou por aqui a Paolla Oliveira e, posso estar errado, havia nela uns músculos ainda não desenhados pelos deuses do design feminino nos anos 1960. Espero que a maresia não me enferruje as retinas e eu possa ver onde elas e o lápis divino vão parar.

Não reclamo, Tomzinho. Eu estou na estátua um pouco menor e mais magro do que era. 
O ar de severidade do rosto também não parece ser capaz de a qualquer momento soltar uma gargalhada, e era o que eu mais fazia. 
Mas tive minhas compensações. Fiquei num cantinho discreto, fora da muvuca. A toda hora chega alguém para se apoiar em mim e começar o alongamento para a corrida, mas fazer o quê? É dura a vida de estátua ao rés do chão, obrigada ao corpo a corpo com as multidões. 
Ah, que inveja dos generais, quase cutucando o céu com suas espadas, todos sobre cavalos e pedestais.

O Drummond, coitado, que teve a sorte de ficar sentado, no outro dia me escreveu dizendo que confundem poeta com psicanalista. 
Homens e mulheres sentam ao seu lado e sussurram horas e horas de desditas amorosas, como se procurassem no silêncio dele uma inspiração para sair das armadilhas em que se meteram com seus pares. “Amor é estado de graça e com amor não se paga”, me disse o Drummond. “Virem-se, que eu já virei estátua.”

Não é fácil pra ninguém, Tonzinho, e eu, se não tenho os paus de selfie me cutucando o juízo, tenho aqui atrás uma fábrica de esgoto que de vez em quando lança uma fedentina que vou te contar.
Não reclamo, vou ficando. 
Eu sou do Jardim Botânico, nasci lá, morei 25 anos na Frei Leandro. 
Poderiam ter me posto ali onde está o Otto Lara Rezende, na esquina com a Pacheco Leão. Mas seria pior – fica na frente do supermercado, cercado da barulheira infernal dos ônibus. 
No outro dia, o Otto me escreveu. Um sujeito aproveitou a mesa do escritório – é quase um carro alegórico a estátua dele – e ficou ali tomando uma cervejota. Lambuzou tudo.

Enfim, Tomzinho, se está difícil para os que andam de um lado para o outro – a seca! a Dilma! – imagina para nós, que não temos saída. 
Estou bem. Olho as moças, vejo as novidades na praia e, esticando a vista, alcanço até o Arpoador, onde consigo perceber o seu vulto, meu amigo compositor, no meio da calçada, cercado pela multidão.

Quando a gente se encontrava na Cobal, você falava de ter passado 30 anos construindo uma reputação, músicas geniais etc, e que estava na hora de vender tudo, chutar o balde. 
Vamos reivindicar ao prefeito. Já imaginou se cada selfie abraçado com nossas empostadas figuras de bronze fizesse pingar uma moeda aos nossos pés? 
Com a chegada do metrô aqui ao Leblon, a multidão tomando o bairro, eu posso ficar rico, algo que não consegui depois de ralar 33 anos e escrever 150 mil notinhas no Globo e no Jornal do Brasil.

No outro dia quem passou por aqui foi o Boechat, todo pimpão dentro do seu inevitável sungão vermelho. Vai dar uma estátua ótima. 
Eu narrei a tua odisseia aí, meu bom Tomzinho, e falei da tua camisa branca desbotada no ombro de tanto o pessoal se apoiar para a selfie. 
O Boechat, então, repetiu o bordão que usava para fechar a coluna quando faltava só uma linha: “É dura a vida da bailarina!”. Conversamos ao nosso jeito. 
Eu reclamei que a cidade anda violenta (da mesma maneira que tiraram os óculos do Drummond, andaram me grafitando o paletó) e lancei a desconfiança de que essas estátuas, em meio à corrupção generalizada, devem servir para alguém ganhar algum por fora na licitação da obra.

É isso aí, Tomzinho, qualquer dia chega a polícia e nós vamos continuar firmes, bronzeadíssimos, olhando na direção de sempre. Quem não deve, não treme. 
Nada a declarar, a não ser, e com essa divulgação de princípios me despeço, de que enquanto houver champanhe, há esperança. Abraço firme.

PS. O Vinícius diz que quando lhe fizerem a estátua, ele precisa estar sentado. Quer que as moças façam selfies sentadinhas em seu colo calorosamente poético.


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