segunda-feira, 16 de março de 2015

"Morte e vida severina" - João Cabral de Melo Neto

"Retirantes" - Cândido Portinari

JOÃO CABRAL DE MELO NETO – A ATEMPORALIDADE DA VIDA SEVERINA
Angelo Rafael - em "Obvious - Literatura"

O auto de natal pernambucano – Morte e Vida Severina - obra do escritor João Cabral de Melo Neto (1920-1999), escrito numa conjuntura política e social de um passado marcado pela migração de retirantes, diáspora nacional de proporções bíblicas, em busca de trabalho, pouso, água, víveres, pode ser vista hoje, na aldeia sem fronteiras e demarcações, como uma tentativa de cicatrizar a chaga na veia aberta de um país desigual, em meio à dignidade ou na absoluta falta dela. 

Sair dos confins da Serra da Costela em direção ao litoral, desfiando as cinquenta e três Ave Marias de um terço, desgastado e enegrecido pelo pretume da fumaça das velas de oratório, foi a única saída para Severino retirante. Partir! 
Não sabia ele, apenas desconfiava, que o curso do rio, ora trilha de barro rachado, ora fio lamacento de um Capibaribe que desemboca nos mangues populosos e no mar, que seu nome se tornaria adjetivo e timbre para uma vida miserável, sem outro alvorecer que não o sofrimento e o sempre caminhar e sobreviver.

No “desfiar do rosário”, de povoado em povoado, a vida severina encontra sua cumplicidade nas personagens da estrada: a rezadeira, que “vive de mortos a enterrar”; carpideiras e suas incelenças pranteando à beira de um minifúndio de sete palmos de terra; degredados filhos de Eva que entoam músicas evocativas às atividades pastoris ibérico medievais, numa região digna de um dos círculos de Dante, mas querida enquanto torrão nascedouro de esperanças e milagres. 
A obra, encenada e estudada em todo o Brasil e alhures, é um ato dramático na sua composição literária, enquanto métrica arcaica, cuja entonação do grito se iguala ao desespero, sem aquele que desafia em recitá-la o perceba.

Quando o Rio Capibaribe se apresenta como fio caudaloso e lamacento, esta esperança vem a brotar como as folhas verdes de cana fina da Zona da Mata, ou como canto mavioso de um mês mariano.
Mas como Caronte, os espíritos que mantiveram Severino firme até seu último passo, oferecem o golpe mortal do desânimo e apatia, no fim de uma jornada quase inútil e desesperadamente irremediável, até que o Mestre Carpina lhe mostra, numa simplicidade invejável que não vale a pena saltar fora da ponte e da vida. 


A “explosão de uma vida severina”, mesmo com todo o peso e fatalidade do adjetivo, é suficiente para que a vida se renove e vingue. 
O nascimento de uma criança em tal cenário de palafitas assombradas se sobrepõe a todas as vicissitudes de miséria e desengano. 
Acorre ao neonato toda a sorte de presentes natalícios, vindo de quem não tem quase nada para oferecer, mas cujo ato de doar o que possui é a quintessência do que melhor e ainda tem o ser humano.

“- Minha pobreza tal é que coisa não posso ofertar somente o leite que tenho para meu filho amamentar aqui são todos irmãos, de leite, de lama, de ar. -
- Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor trago papel de jornal para lhe servir de cobertor, cobrindo-se assim de letras, vai um dia ser doutor.
- Minha pobreza tal é Que não tenho presente caro Como não posso trazer Um olho d’água de Lagoa do Carro, Trago aqui água de Olinda, Água da bica do Rosário.”

Não falta na obra o componente místico e messiânico, por meio dos oráculos e adivinhações, ora com nuances premonitórios da fatalidade da sina do retirante, ora no decretar o advir para a criança, que nasce nas palavras do embate entre as duas ciganas saídas da casa lamacenta dos caranguejos.

“-Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida deste menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar, na lama, como goiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo."

O contraponto abissal das leituras ciganas fala mais alto: o simples fato de uma vida vir à luz. 
Anos 1950, emblemático momento social, encontramos nas entrelinhas desta obra a verve do acreditar e esperar, como estigma sangrento de todo aquele que nasce sob a linha do Equador, numa terra a nordeste do continente.

“- E belo porque com o novo Todo o velho contagia... - Belo porque corrompe Com sangue novo a anemia. - Infecciona a miséria Com vida nova e sadia -Com oásis, o deserto, Com ventos, a calmaria."

Nas palavras do Mestre Carpina ancoramos toda a esperança do povo nordestino, brasileiro, construtor de cidades e vilas, de pontes e ferrovias, arautos da crença que desafia o nefasto pessimismo, protagonista da construção de uma identidade forjada a suor, sangue e lágrimas.

“— Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.”

E assim, esta vida, conduzida conta a conta como o debulhar do rosário em noite de novena, está presente de forma clara ou velada, em todos os lugares, estradas, famílias, aldeias, populações, porque ser severino é uma sina, ou mais, um estado de espírito.


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