quinta-feira, 16 de junho de 2011

UM LUGAR NO PASSADO


Estava pensando em como devemos agradecer os momentos doces em nossa vida. Esses momentos talvez sejam os responsáveis por seguirmos adiante. Quantas vezes precisamos buscar um tempo de encantamento para segurarmos a barra da existência... É tão bom  estar viva e lúcida para relembrar.
Quando jovem, tive pensamentos bem sombrios sobre o futuro e isto pode ser confirmado em alguns antigos textos como alguns que já publiquei aqui. Interessante é poder verificar uma "quase profecia" - desculpando, é claro, a enorme falta de modéstia.
Mas o olhar da maturidade é outro, acreditem. Olhar benevolente, de bem com quase tudo, entristecendo-se com quase nada.
Atrevo-me a trazer outro texto, escrito durante o curso na Faculdade. Trata-se de parte de um trabalho acadêmico e gostaria de compartilhar com quem gosta de leitura.
*         *          *


Setembro, 1981
Lembro-me de que nossa primeira aula sobre J.Guimarães Rosa alertava-me para a dificuldade de leitura deste autor.
"Considerado pela crítica um autor difícil". Eu não conhecia nada dele! O adjetivo "difícil" foi o impulso. Disciplinadamente (fugindo ao habitual em mim - sou um pouco rebelde e às vezes preguiçosa), propus-me o esquema ordenado da leitura de "Rosa do sertão profundo".  Comecei com "Sagarana", obedecendo à ordem sugerida: primeiro o conto "São Marcos", depois "O burrinho pedrês", em seguida "A hora e a vez de Augusto Matraga". Recentemente, "Grande Sertão:Veredas", que agradeço.
Certo, um autor difícil, porque difícil é aceitar em nós mesmos as oposições em que os contrários se confundem. Difícil é segurar o momento, pois nossa realidade existencial é mutável, é um vir a ser, processo em curso (crescimento e decadência), metamorfose.
Presente como resultado do passado. Viagem de Riobaldo por seu passado; travessia difícil, escura, tortuosa e que, ao fim - será que chegou mesmo ao fim? - defronta-se "nonada" do dia a dia.
Difícil, tenho que concordar. Linguagem nova, própria, característica de quem se habituou a monólogos. Pareceu-me o livro um grande monólogo. O interlocutor paradoxalmente não se manifesta. E os contrastes, as dúvidas: "Diadorim...cujos olhos têm o verde brilhante das folhas do buriti", mas que é também "a calamidade do quente, com o esbraseado, o estufo, a dor, sem nem ao menos sinal de sombra, sem água, sem capim, com o pesadelo mesmo de delírio".  Um romance todo sensorial.
O desassossego do mundo: "todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons" ; a loucura de todos - "todo mundo é louco - o senhor, eu, nós, as pessoas todas."    E a religião como saída - uma religião misto de todas:  "Eu cá não perco ocasião de religião - bebo água de todo rio. Uma só, para mim talvez é pouca, talvez não chegue."
Há sempre a volta do bem e do mal, transfigurados pelas emoções. Riobaldo revive o passado, quer saber como o bem e o mal podem coexistir.  Mas suas dúvidas permanecem. Continua sem saber se o diabo existe ou não, e se realmente pactuou com ele.
Por que encontrou Diadorim se não pôde tê-la?  Que estranha razão para conviver com jagunços, justo quem simbolizava o amor e a beleza?
Diadorim é a lembrança que o impede de raciocinar - "uma neblina" dentro de si mesmo.
O que impressiona, também, é a lucidez da personagem em relação ao que conta. "Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense" (p. 77). E ainda: "Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz".  "Contar é muito, muito dificultoso."
A figura de Zé Bebelo... Coisa mais bonita e verdadeira. A admiração que um espírito sonhador (Riobaldo) sente por alguém que tem os pés na terra, alguém de idéias práticas, reais. E afinal, para onde vão os sonhos: bater com toda força na realidade de pés de chumbo.
Todo o livro é uma chamada para a vida, para a linguagem da beleza, para a meditação mesma na palavra viver.
A gente está sempre "nonada" tentando construir a liberdade, será?
"Mas viver é negócio muito perigoso".
"O diabo vige dentro do homem..."

*        *       *

2 comentários:

  1. Lindo, maravilhoso!
    Eu também reverencio. Obrigada.

    "E afinal, para onde vão os sonhos: bater com toda força na realidade de pés de chumbo."

    Beijos :)

    ResponderExcluir
  2. Esse texto me disse muito, justamente porque a linguagem única de Guimarães Rosa me diz muito também.

    Obrigada pela falta de egoísmo (penso que entendeu o que quis dizer...)! Rs.

    Abraço!

    ResponderExcluir