domingo, 15 de janeiro de 2012

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT na voz de ELIS REGINA


Costumo dizer que muita tecnologia me assusta, às vezes. Em outras, agradeço continuar vivendo nesse mundo de mudanças tecnológicas assustadoras. Explico: hoje fiquei sem acesso à internet por muitas horas e me sentindo um pouco entediada por não ter ninguém em casa para conversar. Recebi algumas ligações das filhas, o que muito me agradou. Conversamos, rimos, pusemos a vida em dia.  
Não estava com vontade de ler nem assistir à televisão. O trabalho de casa, todo feito. Mesmo o jardim estava cuidado, considerando esses dias de chuva intermitente que tivemos. 
Enfim, resolvi assistir novamente a uns DVDs que guardo com muito carinho. Escolhi o de Elis Regina - o nº 1 de uma série de 3 - "Batucadas da vida", "Doce de Pimenta" e "Falso brilhante" .
Fico sempre emocionada, encantada mesmo, com a força artística dessa intérprete. As músicas - sempre da melhor qualidade - e a cumplicidade dela e do marido na época, César Camargo Mariano, saltava aos olhos.
Pois bem, lá pelas tantas, antes de cantar "Folhas Secas" - de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito - ela diz um poema de Augusto Frederico Schmidt.
Até aí, tudo bem. Muitos artistas da música entremeiam o show com poesia. Mas não sei se porque hoje me sinto particularmente sensível, ou porque a lembrança de Elis é constante, sei lá, o modo como ela diz o texto, o fato é que fiquei hipnotizada. Eu precisava compartilhar isto.  Vim para o word, apenas para registrar, mas quando finalmente houve disponibilidade da internet, decidi postar o registro do momento porque valeu a pena.
Acredito nesses momentos de enlevo diante da Arte e quis compartilhar.

Ah, talvez uma nota interessante: eu nem me lembrava de que o próximo dia 19 é a data do falecimento de Elis. O filho dela, Marcelo, fala em seu depoimento sobre o último 'café da manhã' e se recorda que era 19 de janeiro. 
Terá sido coincidência hoje ser uma data tão próxima?

Retrato do Desconhecido
Augusto Frederico Schmidt
Rio de Janeiro, 18 de abril de 1906 —  08 de fevereiro de 1965
Modernismo - 2ª geração

Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida,
Voz de um homem perdido no mundo,
Voz de quem foi abandonado pelas esperanças,
Voz que não manda nunca,
Voz que não pergunta,
Voz que não chama,
Voz de obediência e de resposta,
Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas,
Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas.

Há vozes que aclaram o ser,
Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
Vozes de sonho, de maldição e de doçura.
Os ombros eram estreitos,
Ombros humildes que não conhecem as horas de fogo do
amor inconfundível,

Ombros de quem não sabe caminhar,
Ombros de quem não desdenha nem luta,
Ombros de pobre, de quem se esconde,
Ombros tristes como os cabelos de uma criança morta,
Ombros sem sol, sem força, ombros tímidos,
De quem teme a estrada e o destino
De quem não triunfará na luta inútil do mundo:
Ombros nascidos para o descanso das tábuas de um caixão,
Ombros de quem é sempre um Desconhecido,
De quem não tem casa, nem Natal, nem festas;
Ombros de reza de condenado,
E de quem ama, na tristeza, a sombra das madrugadas;
Ombros cuja contemplação provoca as últimas lágrimas.

Os seus pés e as suas mãos acompanhavam os ombros
num mesmo ritmo.
Mãos sem luz, mãos que levam à boca o alimento
sem substância,
Mãos acostumadas aos trabalhos indolentes,
Mãos sem alegria e sem o martírio do trabalho.
Mãos que nunca afagaram uma criança,
Mãos que nunca semearam,
Mãos que não colheram uma flor.
Os pés, iguais às mãos
— Pés sem energia e sem direção,
Pés de indeciso, pés que procuram as sombras e o esquecimento,
Pés que não brincaram, pés que não correram.

No entanto os olhos eram olhos diferentes.
Não direi, não terei a delicadeza precisa na expressão
para traduzir o seu olhar.
Não saberei dizer da doçura e da infância daqueles olhos,
Em que havia hinos matinais e uma inocência, uma tranqüilidade,
um repouso de mãos maternas.

Não poderei descrever aquele olhar,
Em que a Poesia estava dormindo,
Em que a inocência se confundia com a santidade.
Não poderei dizer a música daquele olhar que me surpreendeu um dia,
Que se abriram diante de mim como um abrigo,
E que me trouxe de repente os dias mortos,
Em que me descobri como outrora,
Livre e limpo, como no princípio do mundo,
Envolvido na suavidade dos primeiros balanços,
Sentindo o perfume e o canto das horas primeiras!
Não direi do seu olhar!

Não direi do seu olhar!
Não direi da sua expressão de repouso!
Ainda não sei se era dele esse olhar,
Ou se nasceu de mim mesmo, num rápido instante de paz
e de libertação!
*            *            *

2 comentários:

  1. Lindo e comovente! Sua sensibilidade mexe com nossas emoções.
    O meu agradecimento. Abençoados somos nós, Sueli.

    Lindo domingo pra você.
    Bjs

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  2. Tenho muito a agradecer,sempre, a amigos como você.
    Bj

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