quarta-feira, 11 de abril de 2012

LISPECTOR - A lucidez perigosa

A lucidez perigosa
Clarice Lispector


Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar?

Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio.

E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.

Além do que: que faço dessa lucidez?

Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que  - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias.

Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis.

Eu consisto, eu consisto, amém.
**


Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez.

O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai.

Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria.

Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente.

Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove.

Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido.
Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta.

Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si.
Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou!

Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo.

Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...

*        *        *

In: 'A Descoberta do Mundo', Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984

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