domingo, 10 de março de 2013

VERÍSSIMO - Outra Alexandria


Outra Alexandria
Luís Fernando Veríssimo -  Jornal 'O Estado de S.Paulo',  19 de fevereiro de 2011 

Não sei se a internet e seus instrumentos comunicantes tiveram mesmo tanta influência nessa revolução no Egito como dizem, mas se tiveram não deixa de ser curioso que o mais novo meio de compartilhar informação tenha sublevado a terra onde floresceu a ideia do conhecimento compartilhado. Três mil anos, mais ou menos, separam o facebook e o tuiter, para não falar do Google, da biblioteca de Alexandria, onde pela primeira vez se quis reunir e expor tudo que se sabe do mundo. O que também foi uma revolução.
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Foi Demetrius, um ex-aluno do Liceu de Atenas fundado por Aristóteles quem começou a biblioteca, sob ordens de Ptolomeu I, em cuja corte ele foi uma espécie de filósofo residente. Demetrius costumava se maquiar e pintar os cabelos de loiro, gostava tanto de mulheres quanto de rapazes e dava grandes banquetes que acabavam em orgias, mas ficou na História como construtor da primeira biblioteca universal de que se tem notícia, pois a vontade de Ptolomeu era ter em um só lugar toda a memória da antiguidade e todo o pensamento humano.
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A biblioteca de Alexandria surgiu numa época de transição, em que a escrita substituía a fala na transmissão da cultura e do conhecimento e toda uma tradição oral, como a memorização e repetição dos épicos homéricos, cedia ao texto manuscrito - que durante algum tempo foi considerado coisa de maus espíritos, entre os gregos. A mudança tecnológica é análoga à que se vê hoje, quando discutem se o livro eletrônico vai ou não matar o livro tradicional e levar nossa alma junto. Com sua biblioteca, Demetrius, discípulo de Aristóteles, fortaleceu a linha oposta à dos velhos gregos Platão, que preferia o debate verbal à escrita, e Sócrates, que nunca escreveu nada.
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Dizem que, no seu auge, a biblioteca de Alexandria chegou a ter meio milhão de livros, lembrando que alguns livros eram constituídos por vários rolos. Eram acessíveis ao grande público mas principalmente a escolásticos e à nobreza. (É atraente imaginar a Cleópatra percorrendo as suas estantes atrás de alguma coisa leve para ler no fim de semana.) Mas, acima de tudo, a biblioteca contribuiu para transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico e da civilização do Mediterrâneo, uma inspiração para outros povos. Compare-se isso com o poder da internet de atravessar fronteiras e criar comunidades de informação e conhecimento com uma só língua.
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No fim, Alexandria acabou sendo vítima do seu próprio cosmopolitismo, do qual a biblioteca era o maior exemplo. Os diferentes grupos atraídos pelo mix cultural e religioso da cidade entraram em conflito. A presença de sucessivos poderes autoritários - ptolomaico, depois romano, bizantino e islâmico - evitou uma ruptura maior, mas não impediu a decadência da cidade. Há várias versões sobre o fim da biblioteca. Uma culpa Júlio César, que precisando fugir do seu palácio e chegar até seus navios no porto teria incendiado tudo no caminho, inclusive a biblioteca.

Segundo outra versão, os grupos raciais e religiosos em confronto simplesmente a ignoraram, e a biblioteca morreu aos poucos, de descaso.
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Se é verdade que a internet uniu os manifestantes que derrubaram o Mubarak, resta saber até quando durará essa comunidade. A da biblioteca de Alexandria não resistiu. 


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