segunda-feira, 22 de abril de 2013

"ESPELHO, ESPELHO MEU..." - Graça Taguti


Espelho, espelho meu: existe alguém tão sem rosto quanto eu?
Graça Taguti -  "Revista Bula"

Sinistro, definiria a gíria da galera jovem. Ou seria macabro? Talvez gótico expresse melhor a semântica dos espelhos, cuja polissemia perpassa campos distintos da cultura e das artes.
Aonde se esconderam meus camuflados caleidoscópios psíquicos, encarregados de iluminar até as sombras de todos os mosaicos que habitam meu corpo, gestor máximo de uma catedral-pagã?
O espelho traduz suas simbologias, participando de discursos poéticos, mitológicos, literários, religiosos e artísticos, entre outros.

Assume fartas conotações na metafórica agenda de possibilidades de que se constitui.
Espelho é interface — comunicação — passagem — janela — revelação — acesso — imersão — multiplicação — olho — retrato — fragmentação. Uma relação inegavelmente tensa entre o homem e sua própria imagem.

Na mitologia, podemos destacar “Metamorfoses”, do poeta romano Ovídio, que constitui o primeiro escrito a evocar o mito de Narciso — um jovem, excepcionalmente bonito e sedutor, que acaba se apaixonando, após mirar-se em uma fonte, pela própria imagem na água, supondo tratar-se de alguém, que não ele mesmo. De tanto contemplar-se, todavia, deixou-se morrer.

No “Dicionário dos Símbolos”, Jean Chevalier nos apresenta algumas acepções recolhidas da sinonímia dos espelhos: “o que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Ele é, com efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do espírito obscurecido pela ignorância”.

Ainda na vertente da bruma metafórica, da confusão permanente em que os espelhos nos enredam, Cecília Meireles oferece seu poema “Retrato”: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo./Eu não tinha estas mãos sem força,/ tão paradas e frias e mortas/ eu não tinha este coração/ que nem se mostra/ Eu não dei por esta mudança/tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Sylvia Plath, exponencial e melancólica poeta americana — que se despediu da vida aos 30 anos em 1963 — divaga ferozmente, diante da reluzente interface: “Sou prateado e exato./ Não tenho preconceitos. / Tudo o que vejo engulo imediatamente./ Do jeito que for, desembaçado de amor ou aversão./ Não sou cruel, apenas verdadeiro — O olho de um pequeno deus, de quatro cantos. (…) Agora sou um lago. Uma mulher se dobra sobre mim,/ Buscando na minha superfície o que ela realmente é. Então ela se vira para aquelas mentirosas, as velas ou a lua. (…) Sou importante para ela. Ela vem e vai./ A cada manhã é o seu rosto que substitui a escuridão. Em mim ela afogou uma menina, e em mim uma velha sobe em direção a ela dia após dia, como um peixe terrível”.

Sempre anunciando os temores do incognoscível, como depreendemos nos versos aflitos de Plath, o espelho, interface-matriz, das inúmeras outras que dele se desdobram, alça novos voos e alcança a literatura, como no famoso conto Machadiano de mesmo nome. A certa altura, o escritor sentencia: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro…”.
O singular conto retrata o pitoresco caso de um homem que reconhece a própria existência, na vida dita real, apenas quando veste uma farda de alferes e se contempla diante do espelho da casa aonde morava. De outro modo, trajando roupas comuns, a personagem não mais consegue se enxergar, quando desafiada pelo instigante objeto.

Ao se desdobrar nas artes, o espelho também imiscui no cinema. Em alguns filmes emblemáticos, nosso protagonista denuncia diversos aspectos sub-reptícios ou dissimulados da condição humana.

Na “Queda da Casa de Usher”, de Jean Epstein, longa-metragem baseado em um conto de Poe, assistimos a decadência de uma família aristocrática, culminando num incêndio devastador atestado finalmente por um espelho — que denominaríamos o espelho dos finais.

Temos “A Dama de Shangai”, de Orson Welles — obra noir, repleta de louras assassinas, detetives, jogos de luz e sombras, comparsas enroscados em toda ordem de permissividades — retratados num ilusório labirinto construído por inúmeros espelhos — cuja função, além de aturdir o espectador, consiste em conferir maior suspense à trama: classificaríamos estes como espelhos da ambiguidade, ou melhor, da amoralidade — que reputam como éticos qualquer gesto ou intenção espúria?

Apontamos ainda o memorável “Janela Indiscreta”, de Hitchcock .
Através dela um homem em uma cadeira de rodas, observa passivamente por meio de um binóculo, seu dispositivo de controle, uma série de acontecimentos.
Alguns inclusive graves, como um crime, se desenrolando no prédio à frente: eis o espelho da alienação.

Ou ainda descortinamos uma das geniais sequências de “Drácula”, de Bram Stoker, na qual o espelho recusa-se a refletir a imagem dos seres inumanos e proscritos, sequer revelando suas sombras: temos aí o espelho crepuscular da alma .

Agora, um clássico da literatura infantil que ganhou as telas: “Branca de Neve e os Sete Anões”. Nesta história assoma a inveja da rainha da personagem título, que nos traz, em toda a pompa, o espelho das vaidades.
“Mirror, Mirror, on the wall Who is the fairest of us all?/O Lady Queen, though fair ye be,/Snow-White is fairer, far to see.”

Revisitando a poesia, flagramos Borges e Mario Quintana rendidos à infinitude dos espelhos.
Por fim, Fernando Pessoa, sempre tão plural em sua contrita aparência, declara em breve poema, da lavra de Alberto Caeiro, um de seus heterônimos.
“O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa. Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.”

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