sexta-feira, 19 de abril de 2013

RACHEL DE QUEIROZ - Alfazema, velhice e mocidade


Alfazema, velhice e mocidade
Rachel de Queiroz 
(Ceará, 1910 - Rio de Janeiro 2003)

Todo mundo sabe: já não se namora mais como antigamente. Se a palavra é a mesma, o sentido é outro. 

Dantes era todo aquele ritual cortês - primeiro os olhares que se encontravam de longe, começando intermitente e furtivo, ia depois ficando mais fixo (na minha longínqua infância esses olhares se chamavam "tirar linha", - lembrai-vos anciãs contemporâneas?) 
Do olhar se passava ao sorriso, em manobras que poderiam levar horas e até dias consecutivos. Depois era tentar um encontro: passar perto, olhar sem falar, pois a moça quase nunca andava só. 
Após um infinito de tempo, chegava-se então à abordagem. 
Por exemplo, o rapaz subia ao estribo do bonde, pedia licença para sentar no banco em que ela vinha. Licença dada, ele enxugava a testa e fazia a declaração. 
Aceito o dito de amor, começa propriamente o namoro. 

Me lembro de quando eu tinha uns 12 para 13 anos e, por acaso raríssimo, voltava sozinha do colégio. 

Desci do bonde no fim da linha e ia rápido para casa, um pouco além, quando senti que um rapaz me acompanhava. 
Ao me alcançar, ele me tocou de leve no braço, me fixou com uns olhos de um azul desbotado, quase branco e falou rouco: "Senhorita, amo-a, e posso ser correspondido?" 
Levei um susto danado, desviei a vista daqueles olhos sem cor, e meti o pé na carreira. 
Bati com força o portãozinho do jardim, entrei em casa como um pé de vento, tranquei-me no quarto. Me atirei na cama, sem fôlego, o coração na boca. 
Afinal era aquela a minha primeira "declaração". 

Há uma carta do meu tataravô pedindo em casamento aquela que veio a ser minha tataravó que terminava nos seguintes termos: 

"Recebi os ternos afetos que respeitosamente vos prosterna, o vosso fiel amante.
Fco. J-M." 
Tenho comigo a carta, é linda. 
Como se vê a palavra "amante" era então empregada no seu sentido real - amante é aquele que ama. 
Com o andar do tempo, a palavra foi mudando de sentido e passou a significar os dois que se amam de amor ilegal, ou mais objetivamente aquele que pratica amor com a mulher de outro. Ou a própria mulher do outro também é amante do amante. 

Por idêntica evolução semântica, passou a palavra namorado e os que poucos anos atrás seriam chamados discriminatoriamente de amante, passa a se chamar docemente "namorado". 

Os que se amam, qualquer que seja o tipo e o aspecto legal da sua relação, são namorados e pronto.

Isto posto, falemos daqui, da Praia do Leblon: os namorados não são tantos que engarrafem o trânsito no calçadão, mas chegam a abalroar com os corredores e joguistas que pedem desculpas e seguem em frente, tão velozes que a gente espera até que apitem.

Já na areia, a área é mais desimpedida. 

Um par de adolescentes, enlaçados como dois lutadores, não chego a dizer que "faz amor", mas se entrega a uma ginástica desesperada, cada um procurando morder a nuca do outro, ao que parece.
De repente, rolam na areia e já não são amantes, são como filhotes brincalhões em briga simulada.

Um casal de velhos faz a sua marcha higiênica. 

Ele veste calção esportivo e camiseta, calça tênis modernosos, sombreia a face com pala de plástico verde. Nos trinques. 
Seria talvez um modelo de elegância se o velho corpo não lhe desmentisse as graças - desde as coxas magras, onde o fêmur ressalta, à frente das pelancas de músculos, o pescoço que é só veia e tendão, a calva que emerge da abertura da pala, estriada de veias roxas, salpicada de manchas cor de ferrugem. 
A velha que o segue ao lado, com suas pernas curtas tentando acompanhá-lo a passadas largas, veste bermuda e blusão e usa chapéu de palha. 
Como dizia o Dr. Macedinho, de um de seus personagens da Moreninha, não é feia nem bonita - é uma velha. 
Mas é claro que o idoso magruço continua a ser o seu galã preferido, tal a ternura com que o contempla, segura-lhe as pontas dos dedos, acompanhando-lhe o ritmo dos braços que cortam o vento do mar, como um nadador. 
E o sorriso que lhe ilumina a face esfogueada, no esforço de acompanhar o dono. Ou o líder.
  
Há também pares correndo. Curioso: quase todos brigam enquanto correm.

De repente, surge no mesmo calçadão a musa ruiva, sardenta e linda. 

É toda longas pernas, pequeno busto empinado, barriga para dentro, bumbum em saliências esferoidais. 
Enverga uma sunga (calção, bermudinha?) não sei como se chama: brilha como cetim, é ornada de rendas, parece que ela saiu da alcova com sua calcinha, em meio à toalete. 
Engraçado, seria de esperar que semelhante deusa arrastasse após si um batalhão de moços, contudo só uns dois se vê, a distância prudente. 
Dois enxundiosos quarentões que descansam no meio-fio, é que vêem em primeiro lugar a sombra da moça que o sol desenha, movediça no pavimento, e se viram ambos, esticam o toutiço, arreganham a dentadura, dizem coisas entre si, sem tirar os olhos da menina que agora já lhes dá as costas, com todos os esplendores da fachada retrô.

E fica no ar um cheiro de alfazema e mocidade.



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