sábado, 4 de janeiro de 2014

VIVIANE MOSÉ - Irene (prosa)

Irene
Viviane Mosé

Depois de rodopiar casa adentro sem paz nem descanso, há dias espremendo cravos no rosto, não escrevo desde o ano passado. 
O estado de represa não é exatamente um estado de repouso mas de cheia e pressão. Estado de menstruação em atraso e amor contido. 
Alguma farpa no pé doendo, os peitos inchando e enchendo sem que haja filho. 
Estorvo e não escrevo. 
Não escrevo desde o ano passado. Se bem que o ano passou há pouco, pensei: palavras como filhos. 

Como eu queria escrever a história de um homem sentado na janela de um trem de minas, de terno escuro de linho e óculos, olhando a menina moça que vende doce de leite em forminhas de empada. Ele olha pra ela e depois o foguista ganha uns peixes do rapaz que um dia vai enamorar dela e casar. 
O rio corre ao largo sempre ralo e barrento. 
O homem de terno escuro olha como eu gostaria de ter olhado, a estação e a menina, que nem percebe o rapaz que deu os peixes e mora na pensão. 
Marília talvez fosse o nome dela. Marília de vestido amarelo amaria na relva o rapaz, somente pra que eu pudesse compor o amarelo em marília, ou o amor dos dois na relva. 
Caso pudesse suportar. Caso não fosse eu essa represa de poros por onde tudo vaza aos pouquinhos. Escorreria entre as mãos da mãe de Marília em casa, ao redor das crianças menores e limpas, tão limpas como o paninho bordado que forra a bandeja de doces.

E o rapaz dos peixes eu o faria filho mais velho de uma mulher miúda e forte. 
Eles se amariam. aquela mulher e seu filho mais velho. 
Quando ela morresse ele choraria enrolado no chão como uma cobra. E a ternura dos olhos da mãe fincando morada nos olhos dele. 

O homem de terno escuro me pergunta e agora? ele quer saber pra onde eu vou levar essa gente e eu digo que essa gente me leva. 
A doçura do rapaz dos peixes me leva. 
O paninho bordado da bandeja de doces me leva, às tardes silenciosas quando bordávamos, minha avó e eu, na varanda que via o santuário. 
Me lembro do vento fresco e das agulhas furando o pano. 
Nossos planos miúdos e as roscas com café entre uma pausa e outra. 
A água molhando as rosas do jardim, a terra vermelha, e o silêncio, marcando tudo a ferro. 
Caladas, bordamos uma eternidade. 
Nos sabíamos irmãs, mesmo com o fosso do tempo entre nós. 
Nos sabíamos em silêncio a bordar.

Foi quando aprendi a pegar o silêncio com as mãos, enfiar no buraco da agulha, e escrever. 
Tudo que escrevo desfio dessas tardes. Desvio dessas tardes. 
Escrevo a saudade dessas tardes. E um nó na garganta. Amém.

*            *            *

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