terça-feira, 1 de abril de 2014

Clarice e Caetano



Clarice
Caetano Veloso

Há muita gente
Apagada pelo tempo
Nos papéis desta lembrança
Que tão pouca me ficou
Igrejas brancas
Luas claras nas varandas
Jardins de sonho e cirandas
Foguetes claros no ar

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração?

Clarice era morena
Como as manhãs são morenas
Era pequena no jeito
De não ser quase ninguém
Andou conosco caminhos
De frutas e passarinhos
Mas jamais quis se despir
Entre os meninos e os peixes
Entre os meninos e os peixes
Entre os meninos e os peixes
Do rio, do rio

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração?

Tinha receio do frio
Medo de assombração
Um corpo que não mostrava
Feito de adivinhações
Os botões sempre fechados
Clarice tinha o recato
De convento e procissão

Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração?

Soldado fez continência
O coronel reverência
O padre fez penitência
Três novenas e uma trezena
Mas Clarice
Era a inocência
Nunca mostrou-se a ninguém
Fez-se modelo das lendas
Fez-se modelo das lendas
Das lendas que nos contaram as avós

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração?

Tem que um dia
Amanhecia e Clarice
Assistiu minha partida
Chorando pediu lembranças
E vendo o barco se afastar de Amaralina
Desesperadamente linda, 
soluçando e lentamente
E lentamente despiu o corpo moreno
E entre todos os presentes
Até que seu amor sumisse
Permaneceu no adeus chorando e nua
Para que a tivesse toda
Todo o tempo que existisse

Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme, no coração?

*        *        *


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