''Desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda poesia e toda grandeza não sejam excluídas deste mundo.''
MURIEL BARBERY in "A elegância do ouriço"
Painel feito por bordadeiras de Minas Gerais Imagem extraída de planetasustentavel.abril.com
Sorôco, sua mãe, sua filha
Guimarães Rosa
Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo - o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda- chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.
O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - "Vai ver se botaram água fresca no carro... " - ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: "Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.
Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas - virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.
Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: - "Deus vos pague essa despesa... "
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Dai, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.
De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. - "Ela não faz nada, seo Agente... " - a voz de Sorôco estava muito branda: - "Ela não acode, quando a gente chama... " A moça, ai, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.
Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
Sorôco. Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: - "O mundo está dessa forma... "Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo- Num rompido - ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
Um poema de Garcia Lorca traduzido, adaptado e musicado por Leonard Cohen, para o projeto 'Poets in New York', em 1986.
Pequeño Vals Vienés
Federico Garcia Lorca
En Viena hay diez muchachas,
un hombro donde solloza la muerte
y un bosque de palomas disecadas.
Hay un fragmento de la mañana
en el museo de la escarcha.
Hay un salón con mil ventanas.
¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals con la boca cerrada.
Este vals, este vals, este vals, este vals,
de sí, de muerte y de coñac
que moja su cola en el mar.
Te quiero, te quiero, te quiero,
con la butaca y el libro muerto,
por el melancólico pasillo,
en el oscuro desván del lirio,
en nuestra cama de la luna
y en la danza que sueña la tortuga.
¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals de quebrada cintura.
En Viena hay cuatro espejos
donde juegan tu boca y los ecos.
Hay una muerte para piano
que pinta de azul a los muchachos.
Hay mendigos por los tejados,
hay frescas guirnaldas de llanto.
¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals que se muere en mis brazos.
Porque te quiero, te quiero, amor mío,
en el desván donde juegan los niños,
soñando viejas luces de Hungría
por los rumores de la tarde tibia,
viendo ovejas y lirios de nieve
por el silencio oscuro de tu frente.
¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals, este vals del "Te quiero siempre".
En Viena bailaré contigo
con un disfraz que tenga
cabeza de río.
¡Mira qué orillas tengo de jacintos!
Dejaré mi boca entre tus piernas,
mi alma en fotografías y azucenas,
y en las ondas oscuras de tu andar
quiero, amor mío, amor mío, dejar,
violín y sepulcro, las cintas del vals.
Now in Vienna there's ten pretty women There's a shoulder where Death comes to cry There's a lobby with nine hundred windows There's a tree where the doves go to die There's a piece that was torn from the morning And it hangs in the Gallery of Fros Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take this waltz with the clamp on its jaws
Oh I want you, I want you, I want you On a chair with a dead magazine In the cave at the tip of the lily In some hallways where love's never been On a bed where the moon has been sweating In a cry filled with footsteps and sand Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take its broken waist in your hand
This waltz, this waltz, this waltz, this waltz With its very own breath of brandy and Death Dragging its tail in the sea
There's a concert hall in Vienna Where your mouth had a thousand reviews There's a bar where the boys have stopped talking They've been sentenced to death by the blues Ah, but who is it climbs to your picture With a garland of freshly cut tears Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take this waltz it's been dying for years
There's an attic where children are playing Where I've got to lie down with you soon In a dream of Hungarian lanterns In the mist of some sweet afternoon And I'll see what you've chained to your sorrow All your sheep and your lilies of snow Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz With its "I'll never forget you, you know!"
This waltz, this waltz, this waltz, this waltz With its very own breath of brandy and Death Dragging its tail in the sea
And I'll dance with you in Vienna I'll be wearing a river's disguise The hyacinth wild on my shoulder, My mouth on the dew of your thighs And I'll bury my soul in a scrapbook, With the photographs there, and the moss And I'll yield to the flood of your beauty My cheap violin and my cross And you'll carry me down on your dancing To the pools that you lift on your wrist Oh my love, Oh my love Take this waltz, take this waltz It's yours now. It's all that there ïs * * *
"As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade." (Victor Hugo)
"Toda poesia é luminosa, até a mais obscura. O leitor é que tem, às vezes, em lugar de sol, nevoeiro dentro de si. E o nevoeiro nunca deixa ver claro. Se regressar outra vez e outra vez e outra vez a essas sílabas acesas ficará cego de tanta claridade. Abençoado seja se lá chegar..."
(Eugénio de Andrade)
"Quando penso em todos os livros que ainda posso ler, tenho a certeza de que sou feliz".
(Jules Renard)
"O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado".
A escritora Lygia Fagundes Telles completou ontem, 19 de abril, 89 anos de idade.
Continua escrevendo e nos brindando com seu incrível talento. Parabéns e obrigada, Lygia!
28 de dezembro Lygia Fagundes Telles
Encontro com F. na livraria. Estranhou o título que vou dar a este livro, mas por que disciplina do amor? O amor lá tem disciplina? perguntou e deu a resposta: amor disciplinado nunca foi amor, pode ser método, arrumação no sentido de se botar tudo direitinho nos lugares, cálculo, mas amor?! Pois amor não era ilogicidade? Transgressão?
Digo-lhe que a indisciplina está só na aparência, na superfície. Na casca. Porque lá nas profundezas o amor é de uma ordem e de uma harmonia só comparável à abóboda celeste.
Ele ficou me olhando. Arqueou as sobrancelhas, surpreendido: "Mas então só conheci o amor superficial? Cada vez que amei foi tanta a insatisfação e a insegurança. Fico em total desordem!"
Desejei-lhe um amor verdadeiro e ele riu, desafiante. Quis saber se por acaso eu tinha atingido no amor essa plenitude celestial. Não respondi. Falamos sobre política, livros. Mas quando saí da livraria me vi Adão sendo expulso do Paraíso, o semblante descaído e o olhar no chão.
EDIVAL LOURENÇO EM 03/07/2010 ÀS 02:32 PM – Revista Bula
Quem milita com Literatura neste mundo de coisas utilitárias, às vezes se vê instigado a responder de pronto: Para que serve mesmo a Literatura? A resposta parece óbvia, mas na hora de responder assim de chofre e de forma objetiva, acaba-se caindo em apuros.
Em primeiro lugar, para se dar uma resposta que convença minimamente, será preciso admitir que há certos fatores que entram na composição das forças do mundo que são, digamos, imateriais. Como a força do Papa, por exemplo, que não tem nenhuma divisão de brigada, mas conseguiu interferir em muitas guerras ao longo da História. São forças não passíveis de avaliação imediatamente em peso, medida ou valor monetário. São coisas que não entram no cálculo do PIB, mas são primordiais. Como o ar, que ninguém calcula o seu preço, mas sem ele não existiríamos para dar preços às outras coisas. Com uma diferença significativa: o ar é natural; a Literatura é invenção da cultura humana.
Seja como for, valendo-me de um ensaio de Umberto Eco, aí vão alguns exemplos de utilidade da Literatura que consegui elencar:
1º — A Literatura contribui para a formação, estabilização e desenvolvimento de uma língua, como patrimônio coletivo. O que seria da língua portuguesa sem Luiz de Camões? O que seria do Italiano sem Dante Alighieri? O que seria do Espanhol sem Cervantes? O que seria do Inglês sem Shakespeare? O que seria da Civilização e da língua grega sem Homero? O que seria da língua russa sem Puchkin? É bom lembrar que línguas que não tiveram uma Literatura que sobressaísse entraram em decadência sem alcançar o apogeu.
2º — A Literatura mantém o exercício, o arejamento, o frescor da língua, que é o principal fator de criação de identidade, de noção de comunidade, do sentimento de pátria e pertencimento a uma placenta cultural que nos acolhe e nos dá sentido à vida tanto individual quanto coletivamente.
3º — A Literatura proporciona o aprendizado, de uma forma lúdica e segura, ao mesmo tempo em que permite o acesso das novas gerações aos valores universalmente aceitos como válidos, como a honestidade, o respeito ao próximo, a importância da cultura, enfim a transmissão de valores morais, bons ou ruins e o senso crítico de escolha entre eles ou rejeitá-los.
4º — A Literatura expande a rede neural do leitor, possibilitando a diversidade das idéias, a capacidade de reflexão, a noção de flexibilidade e a tolerância para com o diferente.
5º — A Literatura enseja o surgimento e a disseminação de valores estéticos, introduzindo na vida das pessoas o verdadeiro sentido do belo, distinguindo-nos da fauna geral.
6º — A confabulação da literatura nem sempre segue o caminho desejado pelo leitor, possibilitando a ele entrar em contado com a frustração ficcional, como exercício das frustrações impostas pela vida de fatos, às quais é bom que resista.
7º — A Literatura, como toda arte, amplia a visão da realidade e cria realidade nova.
8° — Pelo que foi elencado, a Literatura não é uma panacéia — um remédio para todos os males —, mas a base, a plataforma de lançamento de cidadãos melhores, numa sociedade do tipo que todas as pessoas de boa vontade desejam ver implantada.
Certamente o leitor verá “utilidades” diferentes ou mesmo complementares a estas.
Esta aconteceu em Minas Gerais (Carmo da Cachoeira).
O Juiz Ronaldo Tovani, 31 anos, substituto da Comarca de Varginha, ex-promotor de justiça, concedeu liberdade provisória a um sujeito preso em flagrante por ter furtado duas galinhas e ter perguntado ao delegado "desde quando furto é crime neste Brasil de bandidos?". O magistrado lavrou então sua sentença em versos.
No dia cinco de outubro
Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cachoeira
Terra de boa gente
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente.
O jovem Alceu da Costa
Conhecido por "Rolinha"
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Duas saborosas galinhas.
Apanhando um saco plástico
Que ali mesmo encontrou
O agente muito esperto
Escondeu o que furtou
Deixando o local do crime
Da maneira como entrou.
O senhor Gabriel Osório
Homem de muito tato
Notando que havia sido
A vítima do grave ato
Procurou a autoridade
Para relatar-lhe o fato.
Ante a notícia do crime
A polícia diligente
Tomou as dores de Osório
E formou seu contingente
Um cabo e dois soldados
E quem sabe até um tenente.
Assim é que o aparato
Da Polícia Militar
Atendendo a ordem expressa
Do Delegado titular
Não pensou em outra coisa
Senão em capturar.
E depois de algum trabalho
O larápio foi encontrado
Num bar foi capturado
Não esboçou reação
Sendo conduzido então
À frente do Delegado.
Perguntado pelo furto
Que havia cometido
Respondeu Alceu da Costa
Bastante extrovertido
Desde quando furto é crime
Neste Brasil de bandidos?
Ante tão forte argumento
Calou-se o delegado
Mas por dever do seu cargo
O flagrante foi lavrado
Recolhendo à cadeia
Aquele pobre coitado.
E hoje passado um mês
De ocorrida a prisão
Chega-me às mãos o inquérito
Que me parte o coração
Solto ou deixo preso
Esse mísero ladrão?
Soltá-lo é decisão
Que a nossa lei refuta
Pois todos sabem que a lei
É pra pobre, preto e puta...
Por isso peço a Deus
Que norteie minha conduta.
É muito justa a lição
Do pai destas Alterosas.
Não deve ficar na prisão
Quem furtou duas penosas,
Se lá também não estão presos
Pessoas bem mais charmosas.
Afinal não é tão grave
Aquilo que Alceu fez
Pois nunca foi do governo
Nem sequestrou o Martinez
E muito menos do gás
Participou alguma vez.
Desta forma é que concedo
A esse homem da simplória
Com base no CPP
liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.
Se virar homem honesto
E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília!
* * * Em minha opinião, sentença justíssima! rsrsrsrsrsrs...
BRASIGOIS FELÍCIO EM 29/06/2010 ÀS 03:31 PM – Revista Bula
Estamira é uma mulher do povo, catadora em um dos lixões da Baixada fluminense. Dizem que é doida de pedra, mas é de uma lucidez delirante, tem um discurso apocalíptico, o que teria um Nietzsche antes de mergulhar na escuridão, ou de um Glauber Rocha, na fase em que anunciou ao universo ser o General Golbery do Couto e Silva um gênio da raça, ou um Geraldo Vandré, ao propor uma santa como padroeira do Exército.
Mire e veja: louco talvez seja quem assim o diz — e não é feliz. Estamira jura de pés juntos que é melhor não ser um normal, normoticamente encaixotado na vidinha hipócrita e trivial do burguês com 90% de cifras na alma enferrujada.
Pouco e malmente esquentou bancos de escola. Menos ainda leu Clarice Lispector, nem sabe quem ela foi — nem é afeita à leitura de livros, menos ainda tem rompantes de ser leitora ou poetisa. Contudo, uma poesia alucinada brota, em cascata, por sua boca sempre sorridente, a não ser quando fica brava com a humanidade, e dana a lançar faíscas, estalos de Vieira, em frases cortantes como navalha.
Coerência em sua fala catártica e apoplética quase não há — mas perguntar não ofende, lógica e acessibilidade à mente cartesiana e superficial também não existe nas obras de James Joyce, de Clarice Lispector, de Guimarães Rosa, Sousândrade, e de certos poetas vanguardistas? Como no discurso viperino, lançado às escuta impossível da cidade vertiginosa, repleto de indignação e raiva, que proferiu no lixão, diante de cineastas que a filmavam: “Existe a lucidez e a ilucidez. A gente aprende alguma coisa de tanto lucidar”.
Mais adiante, assumindo a postura de um Antonio Conselheiro de saias, pregando aos fanáticos insurrectos, antes do trágico e covarde assalto final aos casebres de Canudos: “Vocês não aprenderam nada na escola. Vocês só copiam hipocrisias e mentiras charlatais!”. Não bastando o peso da acusação, dirigida a toda a humanidade, e sem excluir a equipe de cineastas que filmava seu discurso apocalíptico: “Eu não sou como vocês, que são apenas robôs sanguíneos!”.
Para Estamira, “Neste mundo de maldades não tem mais o inocente. O que tem, isto sim, por todo lado, é o esperto ao contrário”.
Comovente de se ver é o prazer de Estamira no cozinhar para suas netas, que de vez em quando a visitam, em seu barraco, na favela. Ou a ternura e cuidado com que cuida de seus muitos cães e gatos. Tudo em seu casebre é limpo.
Psiquiatras que lhe passam remédios para amenizar o que chamam de surtos de alucinação, tratam de Estamira como uma delirante, apenas. Não é de se espantar: Lima Barreto, Antonin Artaud, Cruz e Sousa, José Décio Filho, e outros gênios da literatura foram internados como doidos de pedra — sendo que este último escreveu suas melhores obras no hospício, entre uma e outra sessão de eletro-choque.
Para não dizerem que não terminei esta crônica com os dizeres de Estamira, vão aqui mais umas faíscas de seu lucidar delirante: “Tempo eterno é tempo infinito, mas tem o além e o além do além. Nenhum cientista foi até o além, quanto menos no além do além. Para mim, tudo o que nasce é nativo, isto é, natal”.
* * *
Morre Estamira Gomes de Sousa, personagem-título do premiado documentário brasileiro
"Estamira", morreu no início da noite desta quinta-feira - 28 de julho de 2011 - , no Rio.
Segundo a Secretaria municipal de Saúde, Estamira, de 70 anos, estava internada no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade, desde a última terça-feira (26) e morreu com consequência de uma septicemia (infecção generalizada).
Marcos Prado, diretor do documentário, falou sobre o convívio com a catadora de lixo, que também era diabética, e que há mais de 20 anos trabalhava no aterro sanitário em Gramacho, localizado no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
"Foi fascinante. Ela era quase que uma profetisa dos dias atuais, uma pessoa muito legítima. Jamais montamos suas frases na edição. Todos os discursos incluídos no filme são contínuos. Ela acreditava ter a missão de trazer os princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo onde ela viveu por 22 anos. Para ela, o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a sociedade", comentou Prado.
Ernani, um dos três filhos deixados por Estamira, ainda não sabe exatamente qual será o destino do corpo da mãe.
"Estamos querendo fazer o sepultamento no Cemitério do Caju, onde minha avó foi enterrada, mas ainda não tive muito tempo para resolver essas coisas. Por isso, não sei quando será o enterro".
Negligência
Tanto Ernani quanto o diretor Marco Prado, que ajudou na internação da catadora, acusam o hospital de negligência.
"Ela foi inadequadamente atendida. Ficou literalmente abandonada nos corredores do hospital sem nenhum tipo de atendimento, só com o filho como testemunha. E isso quando já existia o diagnóstico de infecção generalizada. A indignação é grande. E é triste saber que outras Estamiras vão morrer pelo mesmo descaso", destacou o cineasta.
Procurada pelo G1, a Secretaria Municipal de Saúde negou as acusações e afirmou que em momento algum a paciente foi acomodada em um dos corredores do hospital, onde, segundo a administração da unidade, é proibido internar pacientes.
Por sugestão - em comentário no blog - de Catarina Ribeiro, também admiradora da poesia de Olinda Ribeiro, esta que tem, em Ana Catarina, sua pomba branca.
Tantas coincidências de nomes...muito interessantes.
Pomba Branca
Olinda Ribeiro
Pomba branca mágica pomba branca
sempre o símbolo da paz
sobrevoando sonhos e montanhas
e outros céus iluminados e estereotipados
a pomba poética e profética cai bem
nas frases feitas dos discursos
prontos para consumir por
povos sedentos de esperança,
mas uma criança com fome
quer pão, um copo de leite,
uma cama quente e colo de mãe,
essa é a sua pomba branca,
a sua paz, o seu símbolo, e a sua esperança.
Perguntava-me qual era minha contribuição
Para a paz de uma criança?
A pomba branca poisou no meu colo
Aninhou-se no meu peito
Deu-me um beijo e adormeceu.
E hoje ainda que só por hoje
Acreditei que o símbolo da paz
Era uma pomba branca voando
Pelos céus e pelas montanhas
E que os homens eram homens
E as crianças somente crianças
Sonhando com pombas brancas.
* * *
2012 Olinda Ribeiro 21 de Março, dia mundial da poesia
MENALTON BRAFF EM 20/02/2011 ÀS 12:58 PM - Revista Bula
Chavão, para o que nos interessa, não é aumentativo de chave. Uma chave muito grande. Segundo mestre Aurélio, chavão é a “Sentença ou provérbio muito batido pelo uso.” Existem palavras que parecem não conseguir sobreviver sem alguma companheira. São as companheiras inseparáveis, aquelas que deslustram o estilo e enfraquecem a eficácia do texto. Esse título, aí em cima, pode ser usado como exemplo. É um clichê. Se você duvida, preste atenção, entre outras coisas, às entrevistas de jogadores de futebol. Pelo menos da maioria. “Vamos dar uma alegria à torcida”, “Vamos fazer o que o professor mandar” e assim por diante. Caramba, “assim por diante” é mais um chavão.
Você já viu, por exemplo, na descrição de uma pessoa, a qualificação de “frio” sem que viesse acompanhada de “calculista”? Parece que toda pessoa fria deve também ser calculista. Você, é claro, conhece o adjetivo “ingente”, mas já encontrou alguma vez tal palavra no plural sem que viesse antecedida pelo substantivo “esforços”?
O mesmo acontece com “abalizada”, que logo chama sua companheira “opinião”. É claro que não se precisa falar dos “com certeza” da vida, ou os “por conta de”, modismos que a televisão se encarrega de divulgar, e que as pessoas de escasso vocabulário têm necessidade de copiar. É muito tentador, mas não vou falar daquela aberração que é a estrutura “amanhã vamos estar enviando”, cópia horrorosa que algumas secretárias treinadas nos Estados Unidos fizeram do “tomorrow we are going to send”, que é um tipo de futuro correto em inglês ou qualquer coisa semelhante. Felizmente a fase de macaquice de algumas pessoas vai arrefecendo, e já pouca gente, exceto vendedores, telefonistas e recepcionistas, continua usando essa fórmula indecente.
Pode-se propor um pequeno exercício para saber se você é bom de chavão. Escreva nos espaços em branco a primeira palavra que lhe ocorrer.
Juntar os __________, ____________cretina, vergonha na ____________, edulcorar a _________, descascar um __________, feliz _________ e ____________ano novo, à beira do _________, não boto muita ___, arcar com as _______________.
Se você escreveu cacos, pergunta, cara, pílula, abacaxi, natal, próspero, abismo, fé,consequências, você é realmente muito bom em chavões. Mas então trate de tomar cuidado ao redigir um texto. São expressões assim que desfibram seu estilo. As palavras nos copiam em tudo, pois em seu universo também existem companhias indesejáveis.
Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.
Além do que: que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis.
Eu consisto, eu consisto, amém.
**
Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez.
O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai.
Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria.
Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente.
Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove.
Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta.
Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou!
Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo.
Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...
* * *
In: 'A Descoberta do Mundo', Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984
A doutrina de Humanitas: (...) "- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida porque a supressão de uma é a condição de sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundâncias; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficentemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação." (...) "...o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas." p. 11 **
Fragmento da Carta de Quincas Borba enviada a Rubião:
"Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem: ouça e cale-se. Tudo coincide em nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtamos, ele, em pequeno, umas peras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro VII, das 'Confissões', com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as coisas são boas, omnia bona, e adeus." p. 15
** A personagem 'Sofia":
"Dali foi encostar-se à janela, que dava para o jardim mofino, onde iam murchando as duas rosas vulgares. Rosas, quando recentes, importam-se pouco ou nada com as cóleras dos outros; mas, se definham, tudo lhes serve para vexar a alma humana. Quero crer que este costume nasce da brevidade da vida. 'Para as rosas,escreveu alguém, o jardineiro é eterno.' E que melhor maneira de ferir o eterno que mofar de suas iras? Eu passo, tu ficas; mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e donzelas, fui letra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio arbusto, e todas as mãos, e todos os olhos me trataram e me viram com admiração e afeto. Tu não, ó eterno; tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te! a tua eternidade não vale um só dos meus minutos." (...) p. 156-157
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"Quem conhece o solo e o subsolo da vida sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda chuva, são ricos de ideias ou de sentimentos quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra. A expressão: 'Conversar com os seus botões', parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco." (...) p.157