sábado, 30 de março de 2013

MIGUEL TORGA - Confiança


Confiança
Miguel Torga

O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura…
E que a doçura que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova…
*            *            *

A baleia mais solitária do mundo - in: 'The New York Times'



A baleia mais solitária do mundo

Em 2004, The New York Times publicou um artigo sobre a baleia mais solitária do mundo.
Cientistas, que a têm acompanhado desde 1992, descobriram o problema:
Ela não é como qualquer outra baleia. Ao contrário de todas as outras baleias, ela não tem amigos. Ela não tem uma família. Ela não pertence a nenhuma tribo ou grupo. Ela não tem um amante. Ela nunca teve.
Suas canções vêm em grupos de duas a seis chamadas, com duração de cinco a seis segundos cada. Mas sua voz é diferente de qualquer outra baleia.

Ele é única. 
Enquanto o resto de sua espécie se comunica entre 12 e 25Hz, ela canta em 52Hz. 
Você vê, esse é precisamente o problema. Nenhuma outra baleia consegue ouvi-la. Cada uma de suas chamadas desesperadas para se comunicar permanece sem resposta. 
Cada grito, ignorado. 
E, com cada canção solitária, ela se torna mais triste e frustrada, suas notas musicais caindo mais fundo no desespero, conforme os anos passam.

Imagine esse mamífero gigantesco, flutuando sozinho e cantando – grande demais para se conectar com qualquer um dos seres que passam por ele, sentindo-se paradoxalmente pequeno no vasto oceano vazio, no mar aberto.

*            *            *
Informações - http://agroba.se/SSrj9T , http://agroba.se/QDDpYD
Foto representativa: Flip Nicklin/National Geographic
Fonte: http://agroba.se/SSrnXn

terça-feira, 26 de março de 2013

ASSIM MESMO - Madre Teresa de Calcutá


Assim mesmo
Madre Teresa de Calcutá

Muitas vezes as pessoas
são egocêntricas, ilógicas e insensatas.
Perdoe-as assim mesmo.

Se você é gentil,
as pessoas podem acusá-lo de interesseiro.
Seja gentil assim mesmo.

Se você é um vencedor,
terá alguns falsos amigos e alguns inimigos verdadeiros.
Vença assim mesmo.

Se você é honesto e franco,
as pessoas podem enganá-lo.
Seja honesto e franco assim mesmo.

O que você levou anos para construir,
alguém pode destruir de uma hora para outra.
Construa assim mesmo.

Se você tem paz e é feliz,
as pessoas podem sentir inveja.
Seja feliz assim mesmo.

O bem que você faz hoje,
pode ser esquecido amanhã.
Faça o bem assim mesmo.

Dê ao mundo o melhor de você,
mas isso pode não ser o bastante.
Dê o melhor de você assim mesmo.

Veja você que, no final das contas,
é tudo entre você e Deus.
Nunca foi entre você e os outros.

*            *            *

quinta-feira, 21 de março de 2013

CLEISE MENDES - Mágico Mirante

Mágico Mirante
Cleise Mendes

Daqui, deste posto avançado em que me encontro,
deste mágico mirante,
percebo que pela via do bem ou pela veia do mal
já consegui na Vida algumas aquisições importantes.

No final a gente sabe sempre muito pouco, mas
já aceito as minhas frustrações, por exemplo,
com a cabeça erguida
e com os olhos lá adiante.

Já aprendi que não importa quão boa seja uma pessoa
ela vai me ferir de vez em quando
e eu preciso perdoá-la por isso, sob pena
de ter o meu coração mergulhado no veneno do rancor.

Aprendo todos os dias que falar faz bem,
pode aliviar dores emocionais.
E que não importa o que eu tenho na vida
mas quem eu tenho na vida.
E aprendo que não importa onde já cheguei,
mas pra onde estou indo.

E se de repente eu fico sem saber pra onde estou indo...
qualquer lugar serve!
E descubro que só porque alguém não me ama
do jeito que eu quero que me ame,
não significa que esse alguém
não me ame com tudo que pode
porque existem pessoas que nos amam
mas simplesmente não sabem como demonstrar.

Aprendo que nem sempre é suficiente
ser perdoada por alguém.
Muitas vezes eu tenho que aprender
a perdoar a mim mesma.

E não importa em quantos pedaços
meu coração foi partido:
o mundo não para pra que eu o conserte.
O Tempo não é algo que possa “voltar atrás”.

Aprendo que a Vida, sem amor por mim mesma
não vale a pena.  Não vale a pena.
Assim, eu mesma planto o meu jardim
e decoro a minha alma,
ao invés de esperar que alguém me traga flores.

*            *            *

(Este poema faz parte do monólogo teatral “Coração Bazar”, dirigido por José Possi Neto com interpretação de Regina Duarte, em janeiro de 2005 – Teatro Sesi – Rio de Janeiro)

quarta-feira, 20 de março de 2013

ADEUS, EMÍLIO SANTIAGO


Lembra de Mim
Composição: Ivan Lins - Vítor Martins 
Interpretação: Emílio Santiago

Lembra de mim...
Dos beijos que escrevi nos muros a giz...
Os mais bonitos continuam por lá
documentando que alguém foi feliz...

Lembra de mim...
Nós dois nas ruas provocando os casais...
Amando mais do que o amor é capaz,
Perto daqui há tempos atrás...

Lembra de mim...
A gente sempre se casava ao luar...
Depois jogava os nossos corpos no mar
tão naufragados e exaustos de amar...

Lembra de mim...
Se existe um pouco de prazer em sofrer...
Querer te ver talvez eu fosse capaz
perto daqui ou tarde demais...

Lembra de mim...

*            *            *

segunda-feira, 18 de março de 2013

MANOEL DE BARROS - Soberania


Soberania
Manoel de Barros

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que 
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito 
e eu não consegui pegar. 
Eu teria sete anos. 
A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. 
Meus irmãos deram gaitadas me gozando. 
O pai ficou preocupado 
e disse que eu tivera um vareio da imaginação. 
Mas que esses vareios acabariam com os estudos. 
E me mandou estudar em livros. Eu vim. 
E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. 
E dei de estudar pra frente. 
Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. 
Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. 
Aos homens de grande saber. 
Achei que os eruditos 
nas suas altas abstrações 
se esqueciam das coisas simples da terra. 
Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo— o Alberto Einstein). 
Que me ensinou esta frase: 
A imaginação é mais importante do que o saber. 
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. 
Botei um pouco de inocência na erudição. 
Deu certo. 
Meu olho começou a ver de novo 
as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. 
E vi as borboletas. 
E meditei sobre as borboletas. 
Vi que elas dominam o mais leve 
sem precisar de ter motor nenhum no corpo. 
(Essa engenharia de Deus!) 
E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras 
sem magoar as próprias asas. 
E vi que o homem não tem soberania 
nem pra ser um bentevi.

*            *            *

- in "Memórias Inventadas - A Terceira Infância", Editora Planeta - São Paulo, 2008

domingo, 17 de março de 2013

JOÃO CABRAL DE MELO NETO para DRUMMOND

Tela de Leonid Afremov

A Carlos Drummond de Andrade
João Cabral de Melo Neto

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva 
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

*            *            *

sexta-feira, 15 de março de 2013

CHICO BUARQUE - Retrato em branco e preto

Retrato em branco e preto
Chico Buarque - Tom Jobim

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior
O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

*      *      *

VIVIANE MOSÉ - Receita para lavar palavra suja

Receita pra lavar palavra suja
Viviane Mosé

Mergulhar a palavra suja em água sanitária. 
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia. 
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza. Por exemplo, a palavra vida. 
Existem outras, e a palavra amor é uma delas, 
que são muito encardidas pelo uso, 
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, 
depois enxaguar em água corrente. 
São poucas as que resistem a esses cuidados,
 mas existem aquelas. 

Dizem que limão e sal tiram sujeira difícil, mas nada. 
Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. 
Mas nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas 
soltam um líquido corrosivo, 
que atende pelo nome de amargura, 
que é capaz de esvaziar o vigor da língua. 
O aconselhado nesse caso 
é mantê-las sempre de molho 
em um amaciante de boa qualidade. 
Agora, se o que você quer 
é somente aliviar as palavras do uso diário, 
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar. 
O perigo neste caso é misturar 
palavras que mancham no contato umas com as outras. 
Culpa, por exemplo, 
a culpa mancha tudo que encontra 
e deve ser sempre alvejada 
sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada 
é amizade e desejo, já que desejo, 
sendo uma palavra intensa, 
quase agressiva, 
pode, o que não é inevitável, 
esgarçar a força delicada 
da palavra amizade. 

Já a palavra força 
cai bem em qualquer mistura. 
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras 
sob o risco de perderem o sentido. 
A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, 
produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. 

Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa. 
Conviva com a palavra durante alguns dias. 
Deixe que se misture em seus gestos, 
que passeie pela expressão dos seus sentidos. 
À noite, permita que se deite, não a seu lado 
mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme, a palavra, 
plantada em sua carne, 
prolifera em toda sua possibilidade. 
Se puder suportar essa convivência 
até não mais perceber a presença dela, 
então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível. 

*            *            *

Do livro "Toda Palavra", Editora Record 

quinta-feira, 14 de março de 2013

FRANCISCO



Bendita seja

Benditas sejam as dificuldades que nos agridem e fazem pensar.
Benditas sejam as horas que gastamos em função do bem eterno.
Bendito seja quem nos maltrata à primeira vista e nos ajuda a melhorar.
Bendito seja quem não nos conhece e não acredita em nós.
Bendito seja quem nos compara com vagabundos e indolentes.
Bendito seja quem nos expulsa, como párias ou fanáticos.
Bendito seja a mão que nos nega o cumprimento.
Bendito seja quem quer nos esquecer, impaciente.
Bendito seja quem nos nega o pão de cada dia.
Bendito seja quem nos ataca por ignorância e covardia.
Bendito seja quem nos experimenta no correr do tempo.
Bendito seja quem nos faz chorar nos caminhos.
Bendito seja quem não agrada no momento.
Bendito seja quem exige de nós a perfeição.
Benditos sejam os que nos maltratam o coração porque, verdadeiramente, são estes, meus filhos, os nossos vigilantes e os que nos ajudam a seguir o Cristo com maior segurança, pois Deus, através deles, nos ajuda na autoeducação, de maneira que fiquem abertas todas as portas para o Amor Universal.
***


Cântico do irmão Sol (Cântico das Criaturas)

Altíssimo, onipotente e bom Deus, 
Teus são o louvor, a glória, a honra 
e toda benção.

Só a Ti, Altíssimo, são devidos, 
e homem algum é digno 
de Te mencionar.

Louvado sejas, meu Senhor, 
com todas as Tuas criaturas.
Especialmente o irmão Sol,
que clareia o dia
e com sua luz nos ilumina.

Ele é belo e radiante, 
com grande esplendor
de Ti, Altíssimo é a imagem.

Louvado sejas meu senhor,
pela irmã Lua e as Estrelas,
que no céu formastes claras,
preciosas e belas.

Louvado sejas meu Senhor,
pelo irmão Vento, 
pelo Ar ou Neblina,
ou Sereno e de todo Tempo
pelo qual a Tuas criaturas dais sustento.

Louvado sejas meu Senhor,
pela irmã Água,
que é muito útil e humilde
e preciosa e casta.

Louvado sejas meu Senhor,
pelo irmão Fogo,
pelo qual iluminas a noite,
e ele é belo e jucundo 
e vigoroso e forte.

Louvado sejas meu Senhor,
pela nossa irmã a mãe Terra,
que nos sustenta e nos governa,
e produz frutos diversos,
e coloridas flores e ervas.

Louvado sejas meu Senhor,
pelos que perdoam por Teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.

Bem aventurados os que sustentam a paz,
que por Ti, Altíssimo serão coroados.

Louvado sejas meu Senhor,
pela nossa irmã a morte corporal,
da qual homem algum pode escapar.

Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
conforme a Tua Santíssima vontade,
porque a segunda morte não lhes fará mal.

Louvai e bendizei a meu Senhor,
e dai-Lhe graças
e servi-O com grande humildade.

Amém.
***

Senhor,
Fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver duvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.

Ó Mestre,
Fazei que procure mais consolar, que ser consolado;
compreender que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe, 
é perdoando que se é perdoado,
e é morrendo que se vive para a vida eterna.


 *                        *                        *
SÃO FRANCISCO DE ASSIS

domingo, 10 de março de 2013

VERÍSSIMO - Outra Alexandria


Outra Alexandria
Luís Fernando Veríssimo -  Jornal 'O Estado de S.Paulo',  19 de fevereiro de 2011 

Não sei se a internet e seus instrumentos comunicantes tiveram mesmo tanta influência nessa revolução no Egito como dizem, mas se tiveram não deixa de ser curioso que o mais novo meio de compartilhar informação tenha sublevado a terra onde floresceu a ideia do conhecimento compartilhado. Três mil anos, mais ou menos, separam o facebook e o tuiter, para não falar do Google, da biblioteca de Alexandria, onde pela primeira vez se quis reunir e expor tudo que se sabe do mundo. O que também foi uma revolução.
***
Foi Demetrius, um ex-aluno do Liceu de Atenas fundado por Aristóteles quem começou a biblioteca, sob ordens de Ptolomeu I, em cuja corte ele foi uma espécie de filósofo residente. Demetrius costumava se maquiar e pintar os cabelos de loiro, gostava tanto de mulheres quanto de rapazes e dava grandes banquetes que acabavam em orgias, mas ficou na História como construtor da primeira biblioteca universal de que se tem notícia, pois a vontade de Ptolomeu era ter em um só lugar toda a memória da antiguidade e todo o pensamento humano.
***
A biblioteca de Alexandria surgiu numa época de transição, em que a escrita substituía a fala na transmissão da cultura e do conhecimento e toda uma tradição oral, como a memorização e repetição dos épicos homéricos, cedia ao texto manuscrito - que durante algum tempo foi considerado coisa de maus espíritos, entre os gregos. A mudança tecnológica é análoga à que se vê hoje, quando discutem se o livro eletrônico vai ou não matar o livro tradicional e levar nossa alma junto. Com sua biblioteca, Demetrius, discípulo de Aristóteles, fortaleceu a linha oposta à dos velhos gregos Platão, que preferia o debate verbal à escrita, e Sócrates, que nunca escreveu nada.
***
Dizem que, no seu auge, a biblioteca de Alexandria chegou a ter meio milhão de livros, lembrando que alguns livros eram constituídos por vários rolos. Eram acessíveis ao grande público mas principalmente a escolásticos e à nobreza. (É atraente imaginar a Cleópatra percorrendo as suas estantes atrás de alguma coisa leve para ler no fim de semana.) Mas, acima de tudo, a biblioteca contribuiu para transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico e da civilização do Mediterrâneo, uma inspiração para outros povos. Compare-se isso com o poder da internet de atravessar fronteiras e criar comunidades de informação e conhecimento com uma só língua.
***
No fim, Alexandria acabou sendo vítima do seu próprio cosmopolitismo, do qual a biblioteca era o maior exemplo. Os diferentes grupos atraídos pelo mix cultural e religioso da cidade entraram em conflito. A presença de sucessivos poderes autoritários - ptolomaico, depois romano, bizantino e islâmico - evitou uma ruptura maior, mas não impediu a decadência da cidade. Há várias versões sobre o fim da biblioteca. Uma culpa Júlio César, que precisando fugir do seu palácio e chegar até seus navios no porto teria incendiado tudo no caminho, inclusive a biblioteca.

Segundo outra versão, os grupos raciais e religiosos em confronto simplesmente a ignoraram, e a biblioteca morreu aos poucos, de descaso.
***
Se é verdade que a internet uniu os manifestantes que derrubaram o Mubarak, resta saber até quando durará essa comunidade. A da biblioteca de Alexandria não resistiu. 


*            *            *

quinta-feira, 7 de março de 2013

RENATA FAGUNDES - Poema Daltônico

Poema Daltônico (trecho)
Renata Fagundes

Acorda dona moça,
a vida passa lá fora
 e você fica aí olhando pra dentro,
fechada no nada.

Flores precisam ser coloridas,
sorrisos precisam ser enfeitados,
estrelas estão amontoadas num canto
esperando para iluminar
os beirais das janelas.

Hoje, uma borboleta comentou
que você esqueceu sua aquarela
na esquina da praça
e crianças travessas andaram brincando
de pintar vidraças,
achando que eram cores sem dono,
sem casa.

O que foi que você perdeu,
que de tão distante seus olhos não veem mais nada?
O que encontrou pelo caminho
que a fez descolorir e cansar de sorrir?

Quero pintar um coração vermelho em sua boca,
para que você se recorde de falar de amor,
quero vagalumes fazendo morada nas suas pestanas
para iluminar seu olhar de flor.

Vem, dona moça, o tempo é agora,
a vida é lá fora
e tudo fica sem graça
sem sua risada gostosa,
sem sua mistura de cor.

*            *            *

quarta-feira, 6 de março de 2013

DRUMMOND - Última crônica JB

(Última crônica do poeta para o Jornal do Brasil, 29/09/1984) 

Em 1984, às vésperas de completar 82 anos, o poeta decide pendurar as chuteiras no ofício da crônica, depois de mais de seis décadas de jornalismo.

Em carta ao presidente do Jornal do Brasil, o cronista afirma: "Sinto que é hora de descansar e também de ceder espaço a outros que começam ou que estão em fase de desenvolvimento de carreira". 

M. F. Nascimento Brito, o presidente, respondeu à carta fazendo uma contraproposta: em vez de escrever três crônicas por semana, Drummond escreveria somente uma. O poeta agradece e reafirma sua intenção de não ter "compromisso profissional com periodicidade certa". 

Mas, como afirma no texto, ele se despede da crônica, não "do gosto de manejar a palavra escrita"
De fato, depois de deixar o JB, o poeta, que morreria três anos depois, ainda publicou cinco livros e deixou outros cinco prontos para o prelo. 

O que chama a atenção nesse texto,  além das idéias do escritor sobre a arte de "cronicar", é a elegância da despedida. Em nenhum momento Drummond resvala para um tom patético ou lamurioso. Ao contrário: mantém sempre o alto-astral e simplesmente diz "ciao".

**

 Ciao
Carlos Drummond de Andrade

Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:
― Sobre o que pretende escrever? 
― Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível. 

O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices. 

Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.

Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.

Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam. 

Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo. 

Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à História”. Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras. 

Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis décadas. Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista. 

E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário. 

Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.


*            *            *

JOSÉ PAULO PAES - Raridade


Raridade
José Paulo Paes

A arara
é uma ave rara
pois o homem não pára
de ir ao mato caçá-la
para a pôr na sala
em cima de um poleiro
onde ela fica o dia inteiro
fazendo escarcéu
porque já não pode voar pelo céu.

E se o homem não pára
de caçar arara,
hoje uma ave rara,
ou a arara some
ou então muda seu nome
para arrara.

*            *            *

In: ' Olha o bicho' (1989)

terça-feira, 5 de março de 2013

WISLAWA SZYMBORSKA - Agradecimento


Agradecimento
Wislawa Szymborska Kórnik, escritora polonesa
Kórnik, 2 de Julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012


Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar

Não espero por eles
andando da janela à porta

Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo
o que o amor nunca perdoaria

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

 As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

 É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
comum horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

 “Não lhes devo nada” –
diria o amor
sobre essa questão aberta.

*            *            * 

In: Poemas, ed. Companhia das Letras.

domingo, 3 de março de 2013

Ana Carolina - Eu que não sei quase nada do mar




Eu Que Não Sei Quase Nada do Mar 

Composição:     Ana Carolina e Jorge Vercillo 
Interpretação: Ana Carolina e Maria Bethânia

Garimpeira da beleza
Te achei na beira de você me achar
Me agarra na cintura, me segura e jura que não vai soltar
E vem me bebendo toda, me deixando tonta de tanto prazer
Navegando nos meus seios, mar partindo ao meio
Não vou esquecer

Eu que não sei quase nada do mar
Descobri que não sei nada de mim

Clara, noite rara, nos levando além
da arrebentação
Já não tenho medo de saber quem somos
na escuridão

Me agarrei nos seus cabelos
Sua boca quente pra não me afogar
Tua língua correnteza lambe minhas pernas
Como faz o mar
E vem me bebendo toda, me deixando tonta de tanto prazer
Navegando nos meus seios, mar partindo ao meio
Não vou esquecer

Eu que não sei quase nada do mar
Descobri que não sei nada de mim


Tela de Karla Bogard

*            *            *

TOQUINHO - 'Ao que vai chegar' ('Voa coração')


Ao Que Vai Chegar
Toquinho

Voa, coração
A minha força te conduz
Que o sol de um novo amor em breve vai brilhar
Vara a escuridão, vai onde a noite esconde a luz
Clareia seu caminho e acende seu olhar
Vai onde a aurora mora e acorda um lindo dia
Colhe a mais bela flor que alguém já viu nascer
E não esqueça de trazer força e magia,
O sonho e a fantasia, e a alegria de viver

Voa, coração
Que ele não deve demorar
E tanta coisa a mais quero lhe oferecer
O brilho da paixão, pede a uma estrela pra emprestar
E traga junto a fé num novo amanhecer
Convida as luas cheia, minguante e crescente
E de onde se planta a paz,
Da paz quero a raiz
E uma casinha lá onde mora o sol poente
Pra finalmente a gente simplesmente ser feliz.


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