segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ADÉLIA PRADO - Manuscritos de Felipa


Em Manuscritos de Felipa
Adélia Prado

(...) " O texto que se escreve para ocultar um subtexto que só os muito inteligentes vão sacar, faça-me o favor. 
Só há subtexto em textos diretíssimos como - vou arriscar - os loguia de Jesus: 'Ama teu próximo como a ti mesmo'.  
Mais direto impossível, mas vai viver o mandamento, experimenta e adentrarás à cidade submersa plantada em teu peito.  
Põe lá o teu pezinho e mais rápido que São Pedro desistindo de andar sobre as águas darás braçadas patéticas suplicando ar.  
Dói tanto que a gente vai pro médico se queixar e volta com a mão cheia de pílulas e passa a viver com susto e a queixar-se até virar uma pessoa muito chata e desagradável, cheia de textos, falsazinha."  p.20

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(...) " Que bom escrever assim, meio errado, uma palavra aqui, outra ali, próclises, elipses, até que vire um dialeto desconhecido, um orar em línguas.  
Trabalho pela elisão, palavra que nunca usei, estou arriscando.  
A julgar por elipse, só pode ser exclusão, supressão, uma limpada.  
Me incomoda um pouco não conhecer todo o português, tenho sempre a ideia de que engano as pessoas que me julgam letrada. 
Pois sim, ou pois não, que dá na mesma confusão.  
Não disse?  Pego as palavras no palpite, nunca deu errado, porque só falo do que dói e grito todo mundo entende.  
Quando caio em tentação, sempre acho que peco quando escrevo."  p.46

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"Envelheço para trás, ideia consoladora, porque envelhecer para trás é voltar ao começo, ao lugar ageográfico onde se iria casar, ter filhos, uma casa com coisas minhas, quinquilharias de que poderia dispor como bem entendesse.  
Tudo se cumpriu, não apenas meus seios.  
Ninguém tira do lugar, por inadequado que seja, o quadro, o jarro, o relógio, sou a dona, governo a combinação dos legumes, decido entre carne e peixe, desembarco na plataforma onde uma mulher, sem se preocupar se a alça do sutiã está aparecendo, anuncia ao mundo: sei como se aquece uma casa.  
Contudo me ronda, com desassossegado apetite, o demônio da tristeza, ronda à minha cata, à cata do mundo, certamente aliciando mulheres como eu, nos confundindo quanto a hormônios, palpites na criação dos netos, minando com maestria os muros do castelo."  p.83

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