NISE DA SILVEIRA em "Cartas a Spinoza"
Parede de Marcelo Ment. Ação dentro do Instituto Municipal Nise da Silveira, no Hotel da Loucura, a convite de Carlos Bobi. |
CARTA I
Meu caro Spinoza,
Você é mesmo singular. Através dos séculos continua despertando admirações fervorosas, oposições, leituras diferentes de seus livros, não só no mundo dos filósofos, mas, curiosamente, atraindo pensadores das mais diversas áreas do saber, até despretensiosos leitores que insistem, embora sem formação filosófica (e este é o meu caso), no difícil e fascinante estudo da filosofia.
Mais surpreendente ainda é que, à atração intelectual, muitas vezes venham juntar-se sentimentos profundos de afeição. Assim, Einstein refere-se a você como se, entre ambos, houvesse “familiaridade cotidiana”. Dedica-lhe poemas. O poema para A Ética de Spinoza1 transborda de afeto: “Como eu amo este homem nobre/mais do que posso dizer por palavras”.
E este belo soneto de Sully Prud’homme exprime sentimentos de terna devoção:
Cétait un homme doux, de chetive santé
Qui, tout en polissant de verres des lunettes,
Mit l’essence divine en formules três nettes,
Si nettes, que le monde enfut épouvanté,
Ce sage demonstrait, avec simplicité.
Que le bien et te mal sont d’antiques sonettes,
Et les libres mortels d’humbles marionettes,
Dont le fil est aux mains de la necessité.
Pieux admirateur de la Sainte Ecriture
Il n’y voulait pas voir un Dieu contre nature,
A quoi la Synagogue en rage s’opposa.
Loin d’elle polissant des verres des lunettes,
Il aidait les savants à compter les planètes,
Cétait un homme doux Baruch de Spinoza.
Talvez você se surpreenda em saber que o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, escreveu para você um soneto:
Gosto de ver-te grave e solitário
sob o fumo de esquálida candeia,
nas mãos a ferramenta de operário,
e na cabeça a coruscante ideia.
E enquanto o pensamento delineia
uma filosofia, o pão diário
a tua mão a labutar granjeia
e achas na independência o teu salário.
Soem, lá fora agitações e lutas
sibile o bafo aspérrimo do inverno,
tu trabalhas, tu pensas, e executas
sóbrio, tranquilo, desvelado e terno
a lei comum, e morres, e transmutas
o suado labor no prémio eterno.
E até um mestre budista, Maida Schiuchi, também escreveu versos para você:
Goethe foi budista
Por quê?
Porque ele serviu
um Buda chamada Spinoza.
Quem não for capaz de ler A Ética
como um sutra do Grande Veículo,
ainda que se diga budista
não passa de uma toupeira.
Buda viveu há 2.500 anos.
E Spinoza, há 300.
Realmente a verdade é uma só!
E a universidade do Budismo.
Aquele homem
num cantinho de sua cidade
viveu como artesão polidor de lentes,
viveu autenticamente a Verdade!
Não sei de filósofo algum a quem tenham sido dedicadas poesias ou comovidas evocações de encontros decisivos. Há, naturalmente, os eruditos, e esta é a maioria, os conhecedores e interpretadores de sua obra, olhada de ângulos diversos. A esses nada acontece de realmente importante. Mas há, também, outros que você marcou no cerne do ser.
Goethe permaneceu em reclusão durante meses para estudar a Ética e, a partir daí, passou por um processo de transformação. “Na Ética de Spinoza encontrei apaziguamento para minhas paixões; pareceu-me que se abria ante meus olhos uma visão ampla e livre sobre o mundo físico e moral. A imagem deste mundo é transitória; desejaria ocupar-me somente das coisas duradouras e conseguir a eternidade para meu espírito, de acordo com a doutrina de Spinoza”.3
Deu-me prazer a narração que faz Romain Roland do encontro com você, quando ainda adolescente. Ele vinha sendo, como bom francês, “nourri de la moelle cartesienne, pendant deux à trois années”… Mas, continua ele, o caminho natural do espírito levou-me a Spinoza, diretamente, instintivamente, tal um cão pelo olfato na trilha de duas ou três palavras. E diz da intensa emoção sentida quando leu seus escritos. Muitos anos depois, os volumes que os continham permaneceram para ele “livros sagrados”.4
E assim, através do tempo e dos lugares, você foi fascinando grandes, pequenos, pequeníssimos. E, correndo mundo, seu Livro maior — a Ética — chegou às minhas mãos, numa pequena cidade do nordeste do Brasil, chamada Maceió. Parece incrível. Eu estava vivendo um período de muito sofrimento e contradições. Logo às primeiras páginas, fui atingida. As dez mil coisas que me inquietavam dissiparem-se quase, enfraquecendo-se a importância que eu lhes atribuía. Outros valores impunham-se agora. Continuei sofrendo, mas de uma maneira diferente. E desde então, desejo intensamente aproximar-me de você, como discípula e amiga. Este é o motivo por que lhe escrevo essas cartas.
Tenho para mim que você vivenciou de súbito a experiência da totalidade, “a mais importante e única de todas as experiências espirituais”.
Mas como exprimir em palavras algo tão assombroso?
Então você nos fala de uma substância única, cujo conceito não necessita de qualquer outra coisa para sua formulação. E aquilo que é, ou seja, Deus, ser absolutamente infinito, enfeixando infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.
Todas as coisas existentes são modos, isto é, modificações, afecções da substância, e não podem ser concebidas sem a substância ou fora da substância, sua causa imanente. A existência dos modos é precária. Existem ou deixam de existir, enquanto é eterna a substância.
Os humanos seriam modos. Mas me parece que, pelo menos a estes modos, os humanos, você concede uma latente capacidade de diferenciação e esforça-se, através de toda a Ética, para ajudá-los a se diferenciarem de maneira especial, reformando o entendimento, trabalhando ideias confusas, a fim de torná-las claras, indicando-lhes o caminho para libertarem-se da escravidão das paixões e mesmo atingirem a beatitude. Esta arte de diferenciação, que você propõe, chega ao ponto de admitir a possibilidade de um modo, perecível por definição, saltar, graças a assíduo trabalho, de sua instável condição de existência para conquistar a eternidade. Seria um verdadeiro pulo olímpico. Ouso até propor para seu livro magnum o subtítulo: “Arte de diferenciação do modo humano”. Estarei dizendo um absurdo?
A concepção que você tem de Deus, causa imanente e não transitiva de todas as coisas, confundiu muita gente. Insultos pessoais, deturpações grosseiras de suas concepções, rótulos de panteísta, de ateu. Ateu, você, para quem “o amor devotado a Deus deve ocupar o espírito acima de tudo” (V, XVI), amor completamente depurado, que nada pede em troca, sequer o amor do grande amado (V, XIX).
Quanto a mim, repito com Novallis, que você é “um homem ébrio de Deus”.
Outros negam-lhe originalidade. Referem influências sobre seu pensamento, partindo de Uriel da Costa, Daniel Prado, Giordano Bruno…
Decerto, todos sofrem a influência da época em que vivem. Seu vocabulário bem o demonstra para desespero de seus leitores de hoje. Mas, essas influências, por fortes que sejam, podem contribuir para modelamentos de formas e expressão. Entretanto jamais conseguiriam provocar profundas transformações da visão do universo, segundo aconteceu a você.
Em compensação, outros lhe compreenderam, no todo ou em parte, admiravam e escreveram livros e mais livros sobre a sua filosofia. Quero apenas perguntar se você tem notícia de um filósofo do Terceiro Mundo, chamado Farias Brito. Ele aprendeu sua ideia fundamental de maneira mais sintética: “Deus está no universo como o universo está em Deus”.6 Farias Brito vê em você um pensador isolado. Escreve: “sua filosofia apresenta-se na história do pensamento com a mesma importância com que se apresentaria em vasto deserto uma grande montanha de cristal dominando o alto e na qual bateriam em cheio os raios de sol”.7
Agora vou continuar, entrando num assunto difícil. Talvez tenham ocorrido, para abrir caminho à sua grande vivência original, circunstâncias especiais de sua vida:
— Você não aceitou, desde ainda muito jovem, os rígidos ensinamentos dos mestres do judaísmo e foi, por isso, expulso da comunidade judaica como um maldito.
— Suas tentativas de atividade no comércio de exportação, legado por seu pai, fracassaram.
— E, mais ainda, o amor pela filha de seu professor de latim trouxe-lhe amarga decepção.
Perdoe-me se toco em assuntos pessoais delicados. Receio aborrecer você, sempre tão discreto. Mas se o faço é movida por um desejo de o conhecer melhor. Creio que me encanta a imagem que você escolheu para seu sinete: uma rosa e, em torno da flor, as palavras — Cuidado. Eu tenho espinhos. Não seriam certamente espinhos para ferir, mas espinhos para manter à distância indiscretos que pretendessem aproximação impertinente.
Haviam sido cortadas todas as amarras, nenhum apego lhe retinha. Você estava livre para receber, em todo o seu esplendor, a emergência da experiência interna da totalidade e, a partir daí, desdobrá-la numa visão unitária do universo, que acredito ter sido vivenciada por você, a ponto de ousar pedir-lhe permissão para abordá-la usando conceitos e vocabulário que me são familiares.
Um concurso de circunstâncias adversas, aceitas por você sem qualquer crispação do Ego, criaram um vazio que permitiu o surgimento da profundidade da psique, do arquétipo do Self — “ura termo de uma parte bastante preciso para exprimir a essência da totalidade humana e bastante impreciso, de outra parte, para exprimir também o caráter indescritível e indeterminável da totalidade” (C.G.Jung, 12, 10).
Ao arquétipo do Self, no seu caráter indeterminado, você teria denominado substância infinita, ou seja, Deus. Deus na acepção de Natura Naturans, energia criadora e englobante do mundo na sua totalidade.
Muitos filósofos devem ter pressentido e aspirado a este encontro com o arquétipo do Self. Na Expérience Métaphysique, Jean Wahl diz que os grandes filósofos intuíram mais ou menos vagamente a existência de algo para além de si próprios e tentaram exprimir e alcançar este algo por caminhos diversos.
“Em Spinoza, a visão intelectual do universo apresenta-se de um só golpe quase perfeita”, escreveu Karl Jaspers.
Também aqui aconteceu que muitos poderão ser chamados e poucos os escolhidos.
Uma coisa me perturba e quase me causa vertigens: é a sua afirmação de que Deus consiste de uma infinidade de atributos, dos quais o entendimento humano apenas alcança dois — pensamento e extensão. Teremos, pois, de reconhecer as limitações de nosso entendimento, na condição de modos da substância infinita. Em carta a Oldenburg (XXX11), você compara o homem a um verme que vivesse no sangue. Este verme poderia discernir os glóbulos do sangue em circulação constante, mas não conheceria a natureza do sangue na sua totalidade.
Assim vivemos nós numa parte do universo. Poderemos realizar pesquisas em torno de nós e em nós mesmos, mas não alcançaremos a compreensão da natureza infinita, pois somos finitos.
Conhecer as limitações para então tentar superá-las, eis o belo itinerário que você nos aponta.
Gratíssima, mestre!
Nise.
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CARTA II
Meu caro Spinoza,
A vida em Amsterdã, depois da absurda excomunhão e de outros dissabores, devia ter sido bastante penosa para você, apesar da acolhida que desde logo lhe ofereceram os Colegiantes, esse curioso grupo de cristãos, que reunia indivíduos interessados na interpretação da Bíblia, estudiosos de filosofia cartesiana, e ainda outros, abertos a fontes neoplatônicas e a obras de místicos como Jacob Boehme.
Foi no círculo dos Colegiantes de Amsterdã que você encontrou ambiente para expor suas ideias sob a forma ousada em que já se apresentavam no esboço do Breve Tratado, fonte onde eu gosto muito de beber.
Mas creio que deveria ainda haver algo de hostil no clima de Amsterdã quando você, em 1660, decidiu mudar-se para a aldeia de Rijinsburg, centro dos Colegiantes. Ali você estaria tranquilo para pensar. Conviveria num ambiente cordial.
Às vezes chego a imaginar-me em Rijinsburg, invisível ouvinte do círculo dos Colegiantes, que você ali frequentava. Era um prazer vê-lo, aos 28 anos, moreno, de cabelos e olhos escuros, os olhos que deveriam ser semelhantes aos de sua mãe, a portuguesa Ana Débora. Tenho quase certeza de que as primeiras palavras que você balbuciou foram em português. E isso me comove.
Ali estava você, no meio de homens louros ou ruivos, que o escutavam surpreendidos e talvez mesmo perturbados. Essas minhas imaginações o acompanham até o frio sótão, onde você habitava num quarto alugado. Parece-me vê-lo debruçado sobre sua mesa de trabalho, iluminada por lâmpada de luz hesitante, trabalhando e retrabalhando pensamentos e sentimentos nascidos de sua experiência direta da unidade.
Lembrei-me então desses versos de Baudelaire, embora fossem tranquilas as ruas de Rijinsburg e só fosse ouvido o sopro de ventanias frígidas:
“Lémeute tempêtant vainement à ma vitre
ne fera pas lever mon front de mon pupitre,
carje serai plongé dans cette volupté,
d’évoquer le printemps avec ma volonté
de tirer un soleil de mon coeur, et de faire
des mes pensées brúlantes une tiède atmosphère”
Caraterística muito simpática dos Colegiantes é nunca haverem exigido de você a adesão ao cristianismo, ao batismo, nem que você aceitasse a encarnação do Deus infinito num homem.
Mas não deixa de surpreender você admitir que “Pode ser que Deus tenha impresso em vós uma ideia clara d’Ele mesmo, de modo que, por amor, vós esqueceis o mundo e amais os outros homens como a vós mesmos. Em todo caso, é evidente que a um homem dotado de tal disposição repugne tudo quanto é chamado de mal e, por esta razão, o mal não pode existir n’Ele” (Carta XXIII a Blyenbergh — Voorburg 1665 — O.C., p. 1220).
Esse homem bem poderia ser o Cristo. E talvez algo semelhante haja acontecido a outros raros seres humanos. Muito provavelmente a você, querido amigo.
É inegável que a doutrina de Cristo tenha marcado seu pensamento, principalmente na primeira etapa de suas cogitações filosóficas.
Assim, na introdução do Breve Tratado, você diz que visa a “curar aqueles que se acham doentes em seu entendimento por meio de um espírito de doçura e paciência, segundo o exemplo do Senhor Cristo, nosso mestre maior” (O.C., 71). E, bem mais tarde, no Tratado Teológico Político, publicado em 1670, você escreve: “Eu não li em lugar algum que Deus tenha aparecido ao Cristo, ou que lhe tenha falado, mas o texto ensina que Deus se revelou aos apóstolos pela intermediação do Cristo e que Ele é a via da salvação, ao passo que a Lei antiga havia sido transmitida por uma voz ecoando no ar, mas não imediatamente… Por conseguinte, se Moisés falava face à face com Deus, como um homem com seu semelhante (isto é, pela interposição de seus corpos), o Cristo, ele próprio, comunicou-se com Deus de espírito a espírito.
Em conclusão, nós declaramos que, à exceção do Cristo, ninguém recebeu jamais a revelação de Deus sem o auxílio da imaginação, isto é, de palavras ou imagens visuais” (T.T.P., O.C., 681).
Gostei muito de ler essas suas palavras, porque sou muito amarrada ao Cristo. Peço-lhe perdão por tê-las transcrito tão longamente numa carta a você mesmo. Mas isso me deu prazer.
Entre os Colegiantes de Rijinsburg, como já havia acontecido no grupo de Amsterdã, você fez grandes amigos. Uma carta de Simon de Vries (Carta VIII) bem demonstra o contato mantido entre os dois grupos. Além de Simon de Vries, outro amigo delicadíssimo foi Jarig Jelles, firme até a morte. E ainda o editor Juan de Rieuwertz, Balleing, para não citar outros. Você, que tanto amava a solidão, a meditação, tinha o dom de fazer amizades sólidas. Insisto nisso porque é coisa rara. Quase sempre as amizades são instáveis e deixam na gente traços de mágoa. Pergunto-me mesmo, se, entre os mais fiéis de seus amigos, todos entendiam a profundeza de sua filosofia. Não tenho dúvida de que sua personalidade, sua atitude para com o outro, irradiassem algo como a força do ímã, vinda do âmago de seu ser.
Você polia lentes. Comentam alguns que este trabalho era feito como um ofício, como meio de manter a vida. Mas outros o negam. Sua subsistência modesta estava assegurada por amigos fraternos (Vries). As lentes eram polidas a fim de serem utilizadas em seus próprios trabalhos científicos, tal como faziam vários sábios da época. É possível qu’e algumas fossem vendidas, pois seriam procuradas por sua perfeição, mas não como meio de subsistência. Aqui faço uma hipótese. O polir lentes obedece a leis geométricas. Você as polia com prazer, usando as próprias mãos. Divertiu-me o que você diz, em carta a Oldenburg, a propósito das lentes polidas por Huygens que “se dedicou e se dedica inteiramente ao polimento das lentes; em vista disso, ele construiu uma bela máquina para a fabricação de várias lentes. Eu não sei ainda quais tenham sido os resultados, e, com efeito, nem sequer me interesso. A experiência, em verdade, mostrou-me suficientemente que com a mão é possível polir as lentes esféricas muito melhor e com maior segurança do que lograria uma máquina” (Carta XXXII, Voorburg, 1665).
Você admitiria a possibilidade de existir uma relação estreita entre o polir de lentes, com as próprias mãos, dentro de regras geométricas, e as transformações que fizeram do Breve Tratado, iniciado em Amsterdã — a Ética — construída sob forma geométrica, sem cessar, polida e repolida, até 1775?
Nosso Machado de Assis percebeu algo dessa relação quando disse num soneto, que já citei na carta anterior: “nas mãos a ferramenta do operário/no cérebro a coruscante ideia”.
Dando um passo a mais, ver-se-á ficar transparente, em você próprio, relação estreita entre pensamento e corpo (suas mãos) trabalhando, cada um em sua clave, numa personalidade bem integrada.
Foi no retiro de Rijinsburg que você escreveu o Tratado sobre a Reforma do Entendimento. Desejei muito este seu livro, mas só consegui anos depois de já ter comigo a Ética. Assim, foi uma grande alegria quando o encontrei. Nas primeiras páginas fiquei logo comovida lendo o que você diz de si próprio, de maneira tão discreta, mas que deixa transparecer um sofrido e profundo trabalho interior.
Sem maior demora, segue-se a exposição de seu método de filosofar, tão ligado à sua maneira de viver.
Amigo, você nem avalia a onda de lembranças que logo se ergueu dentro de mim.
Revi-me quando ainda ginasiana. Depois de prestados meus exames de álgebra e geometria no Liceu Alagoano (Maceió), logo no início das férias, eu estava um dia arrumando meus livros: separei os volumes de álgebra, geometria e cadernos correspondentes, guardei-os num armário próximo de minha pequena mesa de estudo (era linda essa pequena mesa com seus elegantes pés volteados), e coloquei sobre ela livros de física, química e história natural, que seriam as matérias no ano letivo seguinte, de acordo com os programas daquela época.
Meu pai estava perto, sentado numa cadeira de balanço. Parecia totalmente absorvido na sua leitura.
Foi com surpresa que o ouvi perguntar-me:
— Você vai recolher seus livros de geometria?
— Sim, agora terei outras matérias para estudar.
— Lamento, porque geometria não é uma matéria como as outras. Não é apenas o estudo das propriedades das figuras. Ensina a arte de pensar.
Meu pai, em poucas palavras, mostrava-me uma perspectiva nova de estudo. Eu tinha na ocasião quatorze anos de idade, mas me feriu a expressão “arte de pensar”.
Peguei logo meu preferido tratado de geometria e coloquei-o ao lado dos livros programados para o último ano de preparatórios, conforme se dizia naqueles distantes tempos. Levei-o também comigo para a Bahia, onde fui fazer o curso médico.
De quando em vez, abria-o ao acaso e ficava seguindo linhas traçadas no espaço, que conduziam sempre a demonstrações exatas. Assim, cedo tomei o hábito de procurar ordenar e deduzir, embora não conseguisse chegar ao clássico “como queríamos demonstrar” e esbarrasse tantas, tantas vezes, diante de portas misteriosas. Nas ciências biológicas as coisas são muito complicadas.
Nessa época eu estava longe de supor que meu pai havia me impulsionado para o segundo gênero de conhecimento, conforme você o descreve: conhecimento dedutivo regido pela razão, que deixa para trás o “ouvi dizer” ou as “experiências vagas” do primeiro gênero de conhecimento.
Muito mais tarde, quando comecei a estudar apaixonadamente sua filosofia, embora de maneira dispersiva, verifiquei o quanto ainda mais difícil que a prática do segundo gênero de conhecimento será a penetração para além da cadeia de operações intelectuais dedutivas, até que se consiga atingir o terceiro gênero de conhecimento, ou seja, a apreensão imediata da essência das coisas.
Foi um relâmpago deste último género de conhecimento que deslumbrou Antonin Artaud, quando ele de súbito descobriu o Ser da abelha: “j’ai vu un Être, celui de l’abeille vivre, cela me suffitt pour toujours”. Vivências semelhantes já aconteceram a muitos outros: místicos, poetas, pintores, músicos e mesmo a homens e mulheres comuns cm instantes privilegiados, que parecem eternos, mas quase sempre são fugazes.
Você visa a transmitir a maneira de alcançar a essência das coisas com maior estabilidade.
Para galgar esta escalada, seu método ensina que será necessário, preliminarmente, “uma meditação assídua e a maior firmeza de propósitos”, além de traçar uma regra de vida e prescrever para si próprio um objetivo bem determinado”(Carta XXXVII, a J. Bauwmester).
O pensamento deter-se-á sobre uma ideia verdadeira, pois “deve existir em nós, como instrumento inato, uma ideia verdadeira”. Neste difícil caminhar, quanto maior for o número de ideias verdadeiras, ou seja, das essências das coisas existentes, compreendidas pela reflexão, mais se ampliará o espírito daquele que pratica este método. E, sobretudo, acentua você, o método alcançará maior perfeição quando o espírito se aplica ao conhecimento do Ser absolutamente perfeito (Tratado da Reforma do Entendimento, 39). Desde o início, pois, convirá dedicarmo-nos a chegar o mais rapidamente possível ao conhecimento daquele Ser (49 TRE).
Não sei se o entendo bem. Mas não consigo aceitar que você seja um extremado racionalista, segundo se repete habitualmente.
Só em Jaspers encontrei um justo comentário: “Spinoza comunica sua filosofia pelos meios que a razão fornece, mas estes não esgotam seus fundamentos decisivos (Jaspers, op. cit., 276). Estes “fundamentos decisivos” provêm, parece-me, da experiência da totalidade que você apreendeu intuitivamente como uma verdade absoluta.
Perdoe-me se comparo sua concepção da unidade original das coisas à visão do “planetário de Deus”, vislumbrada por Carlos Pertuis. Mas Carlos era fraco. Sua personalidade estilhaçou-se sob o impacto da visão extraordinária e acabou internado, pelo resto da vida, num hospital psiquiátrico.
Você suportou, decerto deslumbrado, o fulgor da experiência súbita, mas a estrutura forte de sua personalidade manteve-se coesa. Mas a experiência direta era inefável. Como falar aos homens? Seria preciso recorrer à linguagem racional. Assim você o fez, desdobrando pensamentos, desvelando paixões e a escravidão que elas impõem, ateando fogo sagrado ao desejo de liberdade e de beatitude, perturbando mundo afora muitas cabeças. Inclusive, querido amigo, meu curto pensar, meu fraco intuir.
Nise.
* * *