domingo, 9 de abril de 2017

Os Ninguéns - Eduardo Galeano

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Tarsila do Amaral - 'Operários'
Os Ninguéns
Eduardo Galeano

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

*               *               *

Em  “O livro dos abraços”. tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2002

terça-feira, 4 de abril de 2017

Possibilidades - Wislawa Szymborska

POSSIBILIDADES
Wislawa Szymborska

Arte: ANJANA ILYER

Prefiro cinema. 
Prefiro os gatos. 
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta. 
Prefiro Dickens a Dostoievski. 
Prefiro-me gostando dos homens em vez de estar amando a humanidade. 
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha. 
Prefiro a cor verde. 
Prefiro não afirmar que a razão é culpada de tudo. 
Prefiro as exceções. 
Prefiro sair mais cedo. 
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa. 
Prefiro as velhas ilustrações listradas. 
Prefiro o ridículo de escrever poemas ao ridículo de não os escrever. 
No amor prefiro os aniversários não redondos para serem comemorados cada dia. 
Prefiro os moralistas, que não me prometem nada. 
Prefiro a bondade esperta à bondade ingênua demais. 
Prefiro a terra à paisana. 
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores. 
Prefiro ter objeções. 
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem. 
Prefiro os contos de fada de Grimm às manchetes de jornais. 
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas. 
Prefiro os cães com o rabo não cortado. 
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros. 
Prefiro as gavetas. 
Prefiro muitas coisas que aqui não disse, a outras tantas não mencionadas aqui. 
Prefiro os zeros à solta a tê-los numa fila junto ao algarismo. 
Prefiro o tempo dos insetos ao tempo das estrelas. 
Prefiro isolar. 
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando. 
Prefiro levar em consideração até a possibilidade do ser ter a sua razão.

*            *            *