sábado, 30 de junho de 2018

Zélia Duncan - Todos os verbos



Todos os verbos
Zélia Duncan  

Errar é útil
Sofrer é chato
Chorar é triste
Sorrir é rápido
Não ver é fácil
Trair é tátil
Olhar é móvel
Falar é mágico
Calar é tático
Desfazer é árduo
Esperar é sábio
Refazer é ótimo
Amar é profundo

E nele sempre cabem de vez
Todos os verbos do mundo .(bis)

Abraçar é quente
Beijar é chama
Pensar é ser humano
Fantasiar também
Nascer é dar partida
Viver é ser alguém
Saudade é despedida
Morrer um dia vem
Mas amar é profundo

E nele sempre cabem de vez
Todos os verbos do mundo

*         *         *

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Da página 'Obvious'

MONTAIGNE E O TEMPO DESPERDIÇADO
Fellipe Torres

Escritor e filósofo do século 16 foi um mestre dos assuntos realmente pequenos (e, por isso mesmo, muito grandes). Analisou a ociosidade, as cócegas, a bebedeira, o sono, o sexo, a flatulência.

Resultado de imagem para porque era ele porque era eu


Há quem considere perda de tempo acompanhar os comezinhos alheios nas redes sociais. Estão certos. Mas tempo foi feito para se perder, mesmo, oh gente! 
Com moderação, até bula de remédio vale a pena ser lida (há reações adversas para quase tudo na vida). 
Bem antes da internet, lembrem-se, já éramos seres sociais, comentaristas do cotidiano, prosadores. Já “curtíamos" e “compartilhávamos" belos pratos de comida, nascimento de filho, papo com taxista, coração partido, tombo na calçada, missa de sétimo dia, o ponto de vista e a experiência de vida alheia.

Um mestre dos assuntos realmente pequenos (e, por isso mesmo, muito grandes) foi Michel de Montaigne, escritor e filósofo do século 16, considerado o inventor do gênero ensaio. 
Nada era desimportante para a pena do francês. A sua vasta obra analisou a ociosidade, as cócegas, a bebedeira, o sono, o sexo, a flatulência. A beleza das prostitutas de Florença. O cheiro do gibão, a coceira na orelha, o gosto do vinho. Tudo era digno de investigação. 
Assuntos tratados com tanta seriedade quanto a guerra, a tristeza, a morte. 
Fez perguntas como: será que os elefantes têm religião?

O mais famoso de seus ensaios trata do forte laço de amizade com Etienne de La Boétie, relacionamento que durou apenas cinco anos, antes de ser interrompido pela morte do colega conselheiro, autor de um tratado contra a tirania. 
Montaigne escreveu pela primeira vez sobre o amigo na mesma época em que começou a produzir seus ensaios, em 1572. 
Como possuía o hábito de revisar e alterar seus escritos, acrescentou novas ideias ao texto pelos próximos 20 anos. Na primeira versão, lia-se: “Se pressionado a dizer por que eu o amava, sinto que isso não pode ser expresso”. Depois, e aos poucos, incluiu a frase: “Exceto dizendo: porque era ele; porque era eu”.

Fantástica introdução aos ensaios e à biografia de Montaigne é a obra Quando brinco com minha gata, como sei que ela não está brincando comigo? (Difel, 2013), de Saul Frampton. 
Por meio dela, acompanhamos o pensador em sua investigação sobre a experiência de si próprio. 
O trabalho de valorização do comum e ordinário, a importância do aqui e agora. 
No livro, Frampton classifica os escritos de Montaigne como a "primeira representação sustentada da consciência humana na literatura ocidental”. Ou seja, ele foi pioneiro em dar atenção à experiência real de viver. Buscar lições morais nas pequenas coisas.
O questionamento que dá nome à publicação de fato foi considerado por Michel de Montaigne. 
A frase sobre brincar com a gata ficou famosa como uma expressão do ceticismo do autor (será que ela é mesmo o animal de estimação dele, ou seria o contrário?). 
A escrita de Montaigne, aliás, é repleta de animais, baseada no extenso conhecimento do escritor sobre pecuária, agricultura e caçadas. Ele pondera sobre o canto dos galos, a imponência dos cavalos, o hábito de “conversarmos” com cachorros, a alimentação das andorinhas, a organização das abelhas e das aranhas, a automedicação das tartarugas e das cegonhas. Nessas observações, misturam-se fatos, histórias absurdas e fábulas.

Entre as características mais importantes dos ensaios de Montaigne, está o fato de serem extremamente humanos, preocupados com o autoconhecimento, com as semelhanças e diferenças entre as pessoas. 
Ao lado de 'Dom Quixote' e das peças de Shakespeare, compõem aquela que é considerada uma das mais importantes obras literárias da Renascença. São mais de cem textos, ora específicos, ora genéricos.

Embora alguns sejam datados, outros soam extremamente atuais, e inspiram a sociedade até hoje. 
É o caso de seus pensamentos sobre educação, em que critica o apego demasiado aos livros e à “decoreba”. 
Para o filósofo, esse modelo exige muito tempo e esforço, o que “afastaria os jovens dos assuntos mais urgentes da vida”
Afinal, a educação deveria formar indivíduos aptos ao julgamento, ao discernimento moral e à vida prática. Essa perspectiva humanista, defensora de uma educação voltada para a ação e para a experiência, é resumida em uma frase: “Entre os estudos, comecemos por aqueles que nos façam livres”.

No seu volumoso trabalho, Montaigne desvia de razões definitivas, de questões centrais levantadas pela filosofia moderna (surgida 30 anos depois dele, com Descartes). 
Está mais interessado no conhecimento empírico, nas pequeníssimas coisas da vida. Fica a meio caminho entre o individualismo e a descoberta do outro. 
Não busca verdades indubitáveis, mas se faz perguntas simples e eficazes, como: “Terei desperdiçado o meu tempo?”
Uma possível resposta está nas primeiras páginas dos Ensaios: “Portanto, leitor; sou eu o próprio assunto do meu livro. Não há razão para você gastar seu tempo livre com um assunto tão frívolo e fútil. Então, adeus. Montaigne, nesse primeiro dia de março de mil quinhentos e oitenta”.

*            *             *

Publicado originalmente no suplemento literário 'A Palavra', da Academia Pernambucana de Letras.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Confidência do Itabirano



Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
[esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;]*
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

*            *            *

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Maneira deAmar - Drummond

Maneira de Amar
Carlos Drummond de Andrade



Resultado de imagem para regando um girassol

O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. 
Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. 
O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.

Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. 
Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na devida ocasião.

O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.
Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. 

- 'Você o tratava mal, agora está arrependido?'
- 'Não,' respondeu, 'estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava'. "


*            *            *

Em ' Contos plausíveis'.  Rio de Janeiro: J. Olympio Editora, 1985.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Falando em Belchior

Da página 'Pensar Contemporâneo' - Via brasil247

As veias rompidas da vida e da América de Belchior
Ricardo Flaitt


Não foi uma veia aberta que decretou a morte de Belchior. Em realidade, foram as veias abertas da América Latina e as veias do nosso povo, que se romperam diante de nossa indiferença com seus grandes artistas. 
Belchior, poeta cearense, muito além da questão do seu auto-exílio, fato é que só o redescobrimos na ausência, quando já não dava mais, quando tudo era uma frase no Facebook ou uma citação no twitter.

Belchior, que transitou do particular ao universal, em suas letras cíclicas, atemporais, porque falam do homem, da vida, do mundo, das coisas e dos seres, sintetizou o nosso passar pela Terra que, exceto os penduricalhos, é sempre sonhar e lutar por um mundo melhor, em busca da realização dos desejos individuais, mas em sintonia fina com uma evolução coletiva, em uma simbiose dialética entre o ser humano e a sociedade em que ele convive.

Sendo a poesia a arte de condensar milhões de sentimentos em poucos versos, em suas letras, Belchior sintetizou os anseios de uma geração, a dos anos 70, que lutava contra a ditadura e empinava o nariz para o alto em busca de oxigênio de liberdade, que tomava porrada, que era torturada, que reagia frente à opressão e à censura.

Vítima da transformação do mundo, à medida que o país foi se democratizando, a partir da década de 80, Belchior, gradativamente foi relegado a uma situação de um produto obsoleto, um artista que todo mundo reconhecia, que todos o colocavam na estante dos maiores, mas que já não encontrava sintonia nas rádios. 
Ele mesmo disse, em “Velha Roupa Colorida”: “O que algum tempo era jovem e novo, hoje, é antigo…” Assim ficou Belchior.

As transformações do mundo oitentista, que por um lado revelaram bandas extraordinárias como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Titãs, dentre tantas outras, no campo da sociedade, em contrapartida, dava início a um processo de potencialização da idiotização musical, que se consolidou na década de 90, com axés e sertanejos com duplos sentidos em suas conotações sexuais.

“Eles venceram, e o sinal ficou fechado para Belchior”. 
Falar da vida, em ritmo de poesia e profundidade de filosofia era demais para uma juventude que não mais enxergava o inimigo da ditadura e começou a sofrer a pior forma de dominação: a do pensamento, da pasteurização, da massificação.

E nós não resistimos. Não fomos capazes de compreender o momento, nem de interceder. 
O povo o esqueceu, os antigos companheiros parecem também terem se unido. Como consequência, gênios como Belchior foram fenecendo diante de nossos olhos.

Diante da morte de Belchior, coloquemo-nos a pensar, então, quando morrerem outros grandes como Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, só para citar os mais notáveis.

É inevitável o questionamento: o que será da música brasileira quando acabar essa geração? Qual música ouviremos, ou melhor, nesses tempos, a frase mais adequada é, qual música CON(sumiremos)?

Se a música, literatura, cinema e artes em geral são representações de um povo, nós seremos explicados por grupos como “É o Tchan”; sertanejos com letras sexuais ou de uma construção rasteira, oca, superficial, que ainda são misturados com funk, pop, arrocha e eletrônica; por funks/pancadões com letras que beiram a imbecialidade? Qual seria a música do nosso povo?

Evidente que não dá para amarrar o tempo no poste e seria idiotice negar e respeitar as novas formas de manifestação cultural, no entanto, o que se verticaliza e nos assusta com a morte de Belchior é que ficou explícita a forma devastadora de como nós tratamos nossos grandes artistas.

Em troca de suas grandes letras e músicas, que compartilharam visões de mundo, que transformaram as pessoas por dentro, que criaram ângulos nos olhos para ver, encantar-se e questionar o mundo e seus sistemas, em troca de sua sensibilidade nós lhe presenteamos com o esquecimento, a rejeição, como um produto descartável.
Gênio que era, sempre via antes:

“Tudo poderia ter mudado, sim,
pelo trabalho que fizemos – tu e eu.
Mas o dinheiro é cruel
e um vento forte levou os amigos
para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos,
e nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não.”
(Não Leve Flores, Alucinação / 1976).

Belchior foi morto por mim, por você, por nós. Perdoe-nos Belchior, e justo com você, que no álbum “Alucinação” disse que só queria amar e mudar as coisas.

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