segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Ato Gratuito - Clarice Lispector

O Ato Gratuito
Clarice Lispector

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Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquí­ssimas, estava eu escrevendo à máquina – quando alguma coisa em mim aconteceu. Era o profundo cansaço da luta.

E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar ideias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu. Eu precisava – precisava com urgência – de um ato de liberdade: do ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o que eu não precisava pagar. Não digo pagar com dinheiro mas sim, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver.

Então minha própria sede guiou-me.  Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. “Que rua?”, perguntou ele. “O senhor não está entendendo”, expliquei-lhe, “não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro.” Não sei por que olhou-me um instante com atenção.

Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver. Saltei do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério.
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O mistério me rodeava. Olhei arbustos frágeis recém-plantados. Olhei uma árvores de tronco nodoso e escuro, tão largo que me seria impossí­vel abraçá-lo. Por dentro dessa madeira de rocha, através de raí­zes pesadas e duras como garras – como é que corria a seiva, essa coisa quase intangí­vel que é a vida? Havia seiva em tudo como há sangue em nosso corpo

De propósito não vou descrever o que vi: cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raí­zes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas. Eu sentia um medo bom – como um estremecimento apenas perceptí­vel de alma – um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais! achar a porta de saí­da.

O chão estava às vezes coberto de bolinhas de aroeira, daquelas que caem em abundância nas calçadas da nossa infância e que pisamos, não sei por que, com enorme prazer. Repeti então o esmagamento das bolinhas e de novo senti o misterioso gosto bom. Estava com um cansaço benfazejo, era hora de voltar, o sol já estava mais fraco.

Voltarei num dia de chuva – só para ver o gotejante jardim submerso.

Nota da autora: peço licença para pedir à pessoa que tão bondosamente traduz meus textos em braile para os cegos que não traduza este. Não quero ferir os olhos que não vêem.

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domingo, 15 de julho de 2018

Cinema - INGMAR BERGMAN

Ingmar Bergman e um mergulho 
no rio escuro do cinema 
Juliano Mignacca

"O filme é um sonho, como a música. 
Nenhuma arte passa à nossa consciência da maneira que o filme faz. 
Ele vai diretamente aos nossos sentimentos e toca o fundo de nossas almas."
Ingmar Bergman, 14 de julho 1918 - 30 de julho 2007 


O Sétimo Selo, 1956



Na cena final do filme Luz de Inverno, de Ingmar Bergman, há um diálogo entre o pastor e o ajudante da igreja no qual este especula que a dor física de Cristo teria sido insignificante se comparada à dor de quando ele gritou: “Deus, meu Deus! Porque me abandonastes?” 
Prossegue a personagem de Allan Edwall: “Jesus acreditou que tudo aquilo que ele havia pregado fora em vão. No momento antes de morrer, Cristo foi tomado pela dúvida. Certamente este deve ter sido seu maior sofrimento. O silêncio de Deus”. 
O trecho desse magnífico filme de 1962 ilustra um dos temas mais recorrentes na obra do sueco Ingmar Bergman : o silêncio, a afasia de Deus.
Luz de Inverno, 1962

As personagens são impotentes para resolver suas angústias. As convicções religiosas podem amenizá-las. Mas, se a fé é invenção do homem, como dizer que Deus também não é? Se ele existe, por que não se manifesta? Dúvidas. 
Qual certeza se tem do que vem após a morte? Como todo mundo, Bergman não pode responder a essas perguntas. Ainda assim, é interessante como seus filmes lidam de forma direta sobre essas questões. Sem metáforas. Não há rodeios. 
Da mesma maneira aborda outras tantas inquietações do homem. As existenciais em Morangos Silvestres (1957). A sensualidade, o desejo como motor da vida em Monika e o Desejo (1952). 
O filme Persona (1966), uma obra-prima, cuja densidade psicanalítica se soma a uma experimentação estética de grande refinamento. 
A busca pela identidade espiritual em Sétimo Selo (1956). 
Cenas de um Casamento (1973), produzido para a TV sueca, que retrata como a idealização da felicidade a dois pode ser repentinamente arruinada. É como um soco no estômago a frieza e a agressividade dos diálogos no processo de separação do casal. 
Sua obra é aberta às investigações da vida. Por isso tem ressonância em qualquer lugar e qualquer período. É atemporal. 


Persona, 1966

É improvável refletir sobre Bergman algo que ainda não tenha sido dito pela crítica ou observado pelos amantes da sétima arte. Há milhares de textos sobre o autor e sua obra. Até mesmo porque são mais de 50 filmes numa carreira de 60 anos. 
Por incrível que pareça, teve uma vida profissional ainda mais fecunda com o teatro. Produziu três vezes mais para essa outra arte. Foi um artista completo. Diretor e roteirista, tinha enorme capacidade de extrair atuações impressionantes de seus atores. Trabalhava quase sempre com os mesmos, todos excepcionais, diga-se de passagem.

Descobriu mulheres lindas para papéis marcantes. Como não se apaixonar por elas? Ele próprio não pôde escapar. 
Relacionou-se com a belíssima Bibi Andersson e com Liv Ullman, com quem  fez 10 filmes e uma filha. Uma das atrizes mais emblemáticas da historia do cinema. 
Conquistou também a estonteante Harriet Andersson, que trabalhava como ascensorista quando a conheceu. Para que ela atuasse, realizou Monika e o Desejo. O filme causou enorme escândalo em festivais de cinema, sobretudo na América do Sul, primeiro lugar do mundo onde seus filmes teriam ganhado reconhecimento, antes mesmo que na Suécia.
Dirigiu a espetacular Ingrid Thulin e Kari Sylwan, que trabalhou em Gritos e Sussurros e Face a Face
Todas elas alternando entre papéis frágeis e densos. Ora protagonistas, ora como coadjuvantes. 
E como não mencionar os atores, cujas atuações certamente permanecem latentes na memória dos cinéfilos. Erland Josephson, Gunnar Björnstrand, Max Von Sydow…


Harriet Andersson, Monika e o Desejo, 1952

Ingrid Thulin e Max Von Sydow, A Hora do Lobo, 1968


Liv Ullman e Kari Sylwan, Gritos e Sussurros, 1972


Em julho o cineasta completou aniversário de vida e morte. 
Será sempre oportuno reverenciá-lo. Afinal, é um dos maiores artistas da história do cinema. 
Penetrar na obra de Bergman é como um mergulho num rio à noite, na escuridão das incertezas. A diferença é que no rio, quando necessário, é possível emergir em busca de luz e segurança. Com o cinema de Bergman, dificilmente se sairá ileso.


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quinta-feira, 12 de julho de 2018

CARPE DIEM - Antônio Cícero

Da página Revista PROSA VERSO & ARTE

“Carpe diem”
– por Antônio Cícero (*)


Um dos poemas mais famosos do poeta romano Horácio é a ode 1.11. Nela, dirigindo-se a uma personagem feminina, Leucônoe, o poeta lhe diz que não procure adivinhar o futuro:


Não interrogues, não é lícito saber a mim ou a ti
que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes
os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for,
quer muitos invernos nos conceda Júpiter, quer este último
apenas, que ora despedaça o mar Tirreno contra as pedras
vulcânicas. Sábia, decanta os vinhos, e para um breve espaço de tempo
poda a esperança longa. Enquanto conversamos terá fugido despeitada
a hora: colhe o dia, minimamente crédula no porvir.

[Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.]



A frase “carpe diem” tornou-se um aforismo epicurista e um tema poético a que inúmeros poetas recorrem.
No Brasil, por exemplo, Gregório de Matos, imitando um famoso poema de Góngora, diz, em soneto dedicado a uma “discreta e formosíssima Maria“:


Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol, e o Dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trata a toda ligeireza
E imprime em toda flor sua pisada.

Ó não aguardes que a madura idade
Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

O soneto mencionado de Góngora, uma obra-prima, é o seguinte:

Mientras por competir con tu cabello,
oro bruñido al sol relumbra en vano;
mientras con menosprecio en medio el llano
mira tu blanca frente el lilio bello;

mientras a cada labio, por cogello,
siguen más ojos que al clavel temprano;
y mientras triunfa con desdén lozano
del luciente cristal tu gentil cuello;

goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,

no sólo en plata o viola troncada
se vuelva, mas tú y ello juntamente
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.

O poeta Mário Faustino escreveu o seguinte belíssimo soneto chamado Carpe Diem:


Que faço deste dia, que me adora? 
Pegá-lo pela cauda, antes da hora 
Vermelha de furtar-se ao meu festim? 
Ou colocá-lo em música, em palavra, 
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra? 
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim 
Tremenda noite deixa se ela ao leito 
Da noite precedente o leva, feito 
Escravo dessa fêmea a quem fugira 
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre 
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre. 
Já nele a luz da lua — a morte — mora, 
De traição foi feito: vai-se embora.)

Mas Horácio, em outra ode igualmente famosa, a 3.30, afirma que suas Odes sobreviverão às milenàrias pirâmides:


Erigi um monumento mais duradouro que o bronze, 
mais alto do que a régia construção das pirâmides 
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo 
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte 
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei 
no louvor dos vindouros, enquanto o pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou, 
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos. 
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
Melpómene, com o délfico louro.

[Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex:
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.]

A própria admiração que a ode continua a suscitar, parecendo confirmar o vaticínio de Horácio, aumenta essa admiração.

Ou seja, enquanto na ode 1.11 o poeta recomenda ignorar o futuro, na ode 3.30 ele exalta o futuro dos seus poemas.
Que haja uma contradição aqui não é nenhum problema. Diferentemente dos textos teóricos, os poéticos podem contradizer-se, ainda que sejam do mesmo autor, sem que, com isso, sofram o menor arranhão.
Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores.
Um poema é capaz de contradizer a si próprio e ser uma obra-prima: ele pode até ter que se contradizer, como o “Odeio e Amo” (“Odi et amo”), de Catulo, para vir a ser uma obra-prima.

De todo modo, o poeta Haroldo de Campos escreveu um magnífico poema, intitulado Horácio Contra Horácio, que diz:


ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide 
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo 
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas 
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos 
o instante a ruína a desmemória

Não só, portanto, aos poetas é lícito contradizerem-se uns aos outros ou a si próprios, tanto em diferentes poemas quanto no mesmo poema, como tais contradições podem constituir o motivo de um poema.

Observo, porém, que a ode 1.11 pode também ser lida de modo que não necessariamente contradiga a ode 3.30.
Digamos que a concepção de poesia subjacente à ode 3.30 seja que, dado que o grande poema vale por si, ele é, em princípio, indiferente às contingências do tempo. Sendo assim, não se concebe um tempo em que tal poema venha a caducar.

Logo, mesmo reconhecendo a possibilidade de que os textos se percam, talvez a verdadeira razão do orgulho de Horácio seja o fato de que suas odes intrinsecamente merecem existir. Isso quer dizer que elas merecem existir AGORA.

E merecem existir agora, seja quando for agora: seja quando for que alguém diga ou pense: “agora”. É desse modo que, precisamente ao celebrar “o instante a ruína a desmemória”, o poema se faz eterno agora. Nesse sentido, apreciá-lo é colher o dia: “carpere diem”.


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(*)Artigo do poeta Antônio Cicero foi originalmente publicado 6 de fevereiro de 2010, na coluna do autor na “Ilustrada”, da Folha de São Paulo.

Poeta romano Horácio
Quinto Horácio Flaco (latim: Quintus Horatius Flaccus – 65 a.C.-8 a.C.). Poeta lírico, satírico e filósofo latino. Horácio nasceu em Venúsia, Itália, no ano 65 a. C. Filho de um escravo liberto que exercia a função de cobrador de impostos, fez seus estudos em Roma onde foi aluno de Lucio Orbílio Pupilo. Aperfeiçoou seus estudos literários em Atenas.

Estabeleceu-se em Roma como escriba de questores. Foi amigo do poeta Virgílio, que o apresentou a Caio Mecenas que o levou para integrar os círculos literários, tornando-se o primeiro literato profissional romano. Cultivou diversos gêneros literários principalmente a ode, em que utilizou os moldes gregos. Procurou sempre imprimir um cunho nacional às suas produções.

Seu primeiro livro conhecido foi “Sátiras” (35 a.C.). Sua obra prima, são os três livros de poemas líricos, “Odes” (23 a.C.), complementados por um quarto volume escrito em 13 a.C. Gozou de grande prestígio junto ao imperador Augusto e para ele compôs “Carmem Saeculare” (20 a.C.), um hino epistolar de caráter litúrgico dedicado a Apolo e Diana. Sua poesia escrita em forma de sentença teve muitas delas transformadas em provérbios. Faleceu em Roma, Itália, no ano 8 a.C.
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