Chico Anysio |
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Chico Anysio não teria sido o humorista que foi se não associasse a preocupação social à consciência linguística.
O humor, afinal de contas, está nas palavras. O que há de risível em pessoas, fatos, situações deriva sobretudo da forma de os representar. Para torná-los engraçados é preciso dominar uma retórica em cujo repertório se incluem figuras de linguagem, jogos vocabulares, frases de efeito, aproximação de elementos contrastantes.
No retrato que faz de si, publicado com exclusividade pelo jornal O Globo por ocasião de sua morte , o artista alia o humor ao lirismo.
O mergulho no passado é uma das marcas da "escrita do eu", que busca recompor vivências perdidas.
Mesmo num escrito tão pessoal, o autor amplifica as referências subjetivas num "nós" que engloba meninos pobres como ele, e com essa visão solidária afirma sua brasilidade.
O menino
Chico Anysio
Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.
Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.
É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.
Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.
Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema. Anda descalço por amor à bola.
Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.
Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de "Romeu e Julieta", sem nunca ter lido a história.
Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga.
De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.
Tímido até a ousadia, seus silêncios gritam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.
Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.
Mas usava calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.
Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador de jeito que ele é, não duvido nada.
Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.
Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todas os dias.
Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.
* * *
In: Jornal O GLOBO,28/03/12
Chico foi um grande Brasileiro, escritor e Humorista.
ResponderExcluirbrendovieira.blogspot.com
Olá, Brendo. Muito bom receber seu comentário, com o qual concordo inteiramente. Sempre admirei Chico Anysio em todas as suas formas de expressão. Temos, sim, nós, os brasileiros,muitas referências no meio artístico. Por isso, talvez, possamos perdoar essas 'celebridades' passageiras...
ResponderExcluirObrigada.Grande abraço e volte sempre!
Sueli