quinta-feira, 30 de maio de 2013

QUINTANA - dois poemas


Tenta Esquecer-me
Mário Quintana

Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar
Um fantasma...
Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir...
é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!

*        *        *
In: Nova Antologia Poética




*            *            *

WISLAWA SZYMBORSKA - dois poemas

Torturas
Wislawa Szimborska

Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta.

Nada mudou.
Treme o corpo como tremia
antes de se fundar Roma e depois de fundada,
no século XX antes e depois de Cristo,
as torturas são como eram, só a terra encolheu
e o que quer que se passe parece ser na porta ao lado.

Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escala e registro sempiternos.

Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.

Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora incerta da sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.”
**

As três palavras mais estranhas
Wislawa Szimborska

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.

*            *            *


Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

QUINTANA - Pobre poema





O POBRE POEMA
Mário Quintana

Eu escrevi um poema horrível!
É claro que ele queria dizer alguma coisa...
Mas o quê?
Estaria engasgado?
Nas suas meias palavras havia no entanto uma ternura
mansa como a que se vê nos olhos de uma criança
doente, uma precoce, incompreensível gravidade
de quem, sem ler os jornais,
soubesse dos sequestros
dos que morrem sem culpa
dos que se desviam porque todos os caminhos estão
tomados...
Poema, menininho condenado,
bem se via que ele não era deste mundo
nem para este mundo...
Tomado, então, de um ódio insensato,
esse ódio que enlouquece os homens ante a insuportável
verdade, dilacerei-o em mil pedaços.
E respirei...
Também! quem mandou ter ele nascido no mundo errado?

______Mario Quintana - A Vaca e o Hipogrifo

sábado, 18 de maio de 2013

AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT - "Retrato do desconhecido" - Elis regina



Retrato do desconhecido
Augusto F.Schmidt


Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida, 
Voz de um homem perdido no mundo, 
Voz de quem foi abandonado pelas esperanças, 
Voz que não manda nunca, 
Voz que não pergunta, 
Voz que não chama, 
Voz de obediência e de resposta, 
Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas, 
Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas. 

Há vozes que aclaram o ser, 
Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio, 
Vozes de sonho, de maldição e de doçura. 
Os ombros eram estreitos, 
Ombros humildes que não conhecem as horas de fogo do 
amor inconfundível, 

Ombros de quem não sabe caminhar, 
Ombros de quem não desdenha nem luta, 
Ombros de pobre, de quem se esconde, 
Ombros tristes como os cabelos de uma criança morta, 
Ombros sem sol, sem força, ombros tímidos, 
De quem teme a estrada e o destino 
De quem não triunfará na luta inútil do mundo: 
Ombros nascidos para o descanso das tábuas de um caixão, 
Ombros de quem é sempre um Desconhecido, 
De quem não tem casa, nem Natal, nem festas; 
Ombros de reza de condenado, 
E de quem ama, na tristeza, a sombra das madrugadas; 
Ombros cuja contemplação provoca as últimas lágrimas. 

Os seus pés e as suas mãos acompanhavam os ombros 
num mesmo ritmo. 
Mãos sem luz, mãos que levam à boca o alimento 
sem substância, 
Mãos acostumadas aos trabalhos indolentes, 
Mãos sem alegria e sem o martírio do trabalho. 
Mãos que nunca afagaram uma criança, 
Mãos que nunca semearam, 
Mãos que não colheram uma flor. 
Os pés, iguais às mãos 
— Pés sem energia e sem direção, 
Pés de indeciso, pés que procuram as sombras e o esquecimento,
Pés que não brincaram, pés que não correram.

No entanto os olhos eram olhos diferentes. 
Não direi, não terei a delicadeza precisa na expressão 
para traduzir o seu olhar. 
Não saberei dizer da doçura e da infância daqueles olhos, 
Em que havia hinos matinais e uma inocência, uma tranqüilidade, 
um repouso de mãos maternas. 

Não poderei descrever aquele olhar, 
Em que a Poesia estava dormindo, 
Em que a inocência se confundia com a santidade. 
Não poderei dizer a música daquele olhar que me surpreendeu um dia, 

Que se abriram diante de mim como um abrigo, 
O que me trouxe de repente os dias mortos, 
Em que me descobri como outrora, 
Livre e limpo, como no princípio do mundo, 
Envolvido na suavidade dos primeiros balanços, 
Sentindo o perfume e o canto das horas primeiras! 
Não direi do seu olhar! 

Não direi do seu olhar! 
Não direi da sua expressão de repouso! 
Ainda não sei se era dele esse olhar, 
Ou se nasceu de mim mesmo, num rápido instante de paz 
e de libertação! 

*            *            *


CHARLES AZNAVOUR - Mourir d'aimer




Les parois de ma vie sont lisses
Je m'y accroche mais je glisse
Lentement vers ma destinée:
Mourir d'aimer

Tandis que le monde me juge
Je ne vois pour moi qu'un refuge
Toutes issues m'étant condamnées:
Mourir d'aimer

Mourir d'aimer
De plein gré s'enfoncer dans la nuit
Payer l'amour au prix de sa vie
Pêcher contre le corps mais non contre l'esprit

Laissant le monde à ses problèmes
Les gens haineux face à eux-mêmes
Avec leurs petites idées:
Mourir d'aimer

Puisque notre amour ne peut vivre
Mieux vaut en refermer le livre
Et plutôt que de le brûler:
Mourir d'aimer

Partir en redressant la tête
Sortir vainqueur d'une défaite
Renverser toutes les données:
Mourir d'aimer

Mourir d'aimer
Comme on le peut de n'importe quoi
Abandonner tout derrière soi
Pour n'emporter que ce qui fut nous, qui fut toi

Tu es le printemps, moi l'automne
Ton coeur se prend, le mien se donne
Et ma route est déjà tracée:
Mourir d'aimer,
Mourir d'aimer,
Mourir d'aimer.

*    *    *

segunda-feira, 13 de maio de 2013

RUBEM ALVES - Quando o belo...


Quando o belo também é despedida
Rubem Alves

Hoje quero falar da tristeza. Não me perguntem por que, pois eu mesmo não sei. A tristeza não pede licença, não se explica. Vai chegando de mansinho e espalhando seu perfume de jasmim pelas coisas, até que todas ficam encantadas pela beleza que nela mora. Ficam belas-tristes as nu¬vens do céu, tristes-belos os bem-te-vis nos galhos das árvores, belos-tristes os objetos silenciosos do meu escritório, e até mesmo o café-da-manhã fica triste-belo... A tristeza é sempre bela, pois ela nada mais é que o sentimento que se tem ante uma beleza que se perdeu...

Não sei o que a chamou. Teria sido a visão das florestas ardendo, com seus prenúncios de desertos quentes e fins do mundo, os pássaros fugindo para nunca mais voltar? Ou a visita a lugares antigos amados... Ah! Quem ama nunca deveria voltar... Lembro-me dos versos que decorei, o poeta visitando paisagens de outros tempos e cadenciando a sua tristeza com um refrão que se repete. "São estes os sítios? São estes... Mas eu o mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera que eu vou." Até a bem-amada fica à espera quando o corpo tenta recuperar os espaços perdidos. Pois é. Visitei lugares de minha infância lá em Minas, e vi que a casa velha onde morei já não existe e nem a jabuticabeira que reguei e as três paineiras a cuja sombra me assentei. Fiquei ali, diante dessas ausências. E percebo que tristeza é isto: estar diante de um espaço onde um dia houve o encontro. Saber que, cedo ou tarde, tudo o que está presente ficará ausente. A tristeza testemunha que o mistério da despedida está gravado em nossa própria carne. “Quem nos desviou assim”, perguntava Rilke, “para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?” Não é esta ou aquela despedida. As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. O que Cecília Meirelles dizia de sua avó morta podemos dizer da vida inteira: “Tudo em ti era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se...” Tristeza é isto, quando o belo e a despedida coincidem. O que revela o nosso próprio segredo, dilacerado entre o belo, que nos tornaria eternamente felizes, e os nossos braços, curtos demais para segurá-lo.

“E quando nos sentimos mais seguros algo inesperado acontece: um pôr-do-sol... E estamos perdidos de novo...” (E. Browning). Mas que será aquilo que nos põe a perder? A beleza do crepúsculo? Não. Mas a percepção de que a beleza é crepúsculo. Goethe dizia do pôr-do-sol: “Tudo o que está próximo se distancia”. Ao que Borges comenta: “Goethe se referia ao crepúsculo, mas também à vida. Aos poucos as coisas vão nos abandonando”. O pôr-do-sol é triste porque nos conta que somos como ele: infinitamente belos em nossas cores, infinitamente nostálgicos em nosso adeus.

A tristeza é o espaço entre o belo e o efêmero, de onde nasce a poesia. Não é por acaso que os poetas repetem sempre o mesmo tema. “As nuvens à volta do Sol que se põe”, dizia Wordsworth, “ganham suas cores tristes de um olho que contempla a mortalidade dos homens...” E assim os poetas vão colocando suas palavras sobre o vazio. Não um vazio qualquer, vazio “pedaço arrancado de mim”, mutilação no meu corpo. Exercício de saudade, tornar de novo presente um passado que já se foi. “Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto para o filho que já morreu...”

E é só agora, Drummond, que compreendo o que você diz no seu poema Ausência, onde você afirma não lastimar o espaço vazio. Não deveria ser assim... Acontece que, depois da partida, só fica a ferida, ferida que não se deseja curar, pois ela traz de novo à memória o belo que uma vez foi. "Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim..". Não é estranho isto, que na tristeza more a beleza, e que se encontre aí mesmo um pouco de alegria? É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio/ vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar.

Brinco com a minha tristeza como quem cuida de uma amiga fiel...

*            *            *

sexta-feira, 10 de maio de 2013

RACHEL DE QUEIROZ - Um alpendre...


Um al­pen­dre, uma re­de, um açu­de
Rachel de Queiroz

MO­DÉS­TIA
A hu­mil­da­de faz a gen­te acei­tar com pa­ciên­cia tan­to o es­pe­ra­do co­mo o ines­pe­ra­do. Só o or­gu­lho nos con­ven­ce de que de­ve­ría­mos es­tar aci­ma das con­tin­gên­cias."

TA­LEN­TO
"(...) Pa­ra es­cre­ver, tem que ha­ver o dom da es­cri­ta, tal co­mo pa­ra o can­tor é pre­ci­so o dom da voz. To­dos co­nhe­ce­mos pes­soas in­te­li­gen­tes, até bri­lhan­tes na sua es­pe­cia­li­da­de - me­di­ci­na, ar­qui­te­tu­ra, en­ge­nha­ria, eco­no­mia e, na ver­da­de, por mais sa­be­do­res que se­jam no seu ofí­cio, não con­se­guem ex­pri­mir na pa­la­vra es­cri­ta es­sa sa­be­do­ria."

 "Deus sem­pre é par­co na con­ces­são de do­tes: os que acu­mu­lam são sem­pre con­ta­dos. Por que as boas can­to­ras lí­ri­cas ge­ral­men­te têm ten­dên­cia a en­gor­dar? E por que as de be­la si­lhue­ta qua­se sem­pre só dis­põem de um fio mal afi­na­do de voz?"

PRI­VI­LÉ­GIO
"Pou­cos po­vos no pla­ne­ta ain­da têm es­se re­cur­so: a fu­ga com hon­ra. Não pre­ci­sa dar pa­ra gan­gs­ter nem en­trar pa­ra um con­ven­to. Bas­ta cer­car um ro­ça­do, le­van­tar um ran­cho, plan­tar fei­jão e mi­lho, criar uma ove­lha, uns bur­ros. Mes­mo com se­ca, com en­chen­te ou gea­da, ha­ven­do tra­ba­lho e pa­ciên­cia, não dá pa­ra mor­rer de fo­me. Se­rá a po­bre­za e a re­nún­cia. Mas é sem­pre me­lhor que o de­ses­pe­ro."

FE­LI­CI­DA­DE
"Mas é pre­ci­so com­preen­der quan­to va­ria o con­cei­to de fe­li­ci­da­de en­tre o ho­mem ur­ba­no e es­sa nos­sa va­rie­da­de de bra­si­lei­ro ru­ral. Pa­ra o ho­mem da ci­da­de, ser fe­liz se tra­duz em "ter coi­sas": ter apar­ta­men­to, rá­dio, ge­la­dei­ra, te­le­vi­são, bi­ci­cle­ta, au­to­mó­vel. Quan­to mais en­ge­nho­cas me­câ­ni­cas pos­suir, mais fe­liz se pre­su­me. Pa­ra is­so se es­cra­vi­za, tra­ba­lha dia e noi­te e se ga­ba de bem-su­ce­di­do. O ho­mem da­qui, seu con­cei­to de fe­li­ci­da­de é mui­to mais sub­je­ti­vo: ser fe­liz não é ter coi­sas; ser fe­liz é ser li­vre, não pre­ci­sar de tra­ba­lhar. E, mor­men­te, não tra­ba­lhar obri­ga­do."

SA­CRI­FÍ­CIO
"No bei­ral de mi­nha va­ran­da se ani­nhou um ca­sal de an­do­ri­nhas. E a gen­te acom­pa­nhou o tra­ba­lho dos pás­sa­ros, dia­ria­men­te. Pri­mei­ro a con­fec­ção do ni­nho, pa­lha por pa­lha, ga­lhi­nho por ga­lhi­nho. De­pois o len­to, mo­nó­to­no, pro­ces­so de cho­co. De­pois o nas­ci­men­to dos fi­lho­tes, pe­la­dos, vis­co­sos, sem­pre es­fo­mea­dos. O es­for­ço de ca­tar co­mi­da, de en­cher aque­les bi­cos in­sa­ciá­veis. A pa­ciên­cia de es­pe­rar que os fi­lho­tes em­pe­nem, apren­dam a usar as asas e se li­ber­tem do ni­nho. Mas, no fim das con­tas, aque­le sa­cri­fí­cio to­do tem a sua pa­ga - re­sul­ta in­fa­li­vel­men­te em um no­vo ca­sal de an­do­ri­nhas, tão be­las quan­to as pri­mei­ras, ne­gras, lus­tro­sas e per­fei­tas."

"Co­mo é di­fí­cil, meu Deus, co­mo é ra­ro pro­du­zir, já não di­go uma an­do­ri­nha in­tei­ra, mas um sim­ples ris­car de asa no céu, uma can­ti­ga de ave, um atre­vi­men­to de voo."

MU­LHER
"Po­dem es­can­da­li­zar-se os so­ció­lo­gos e to­da a gen­te mais: pa­ra o sé­cu­lo XXI, eu pre­ve­jo a vi­tó­ria so­cial das mu­lhe­res. As mu­lhe­res dei­xa­rão de ser o ele­men­to se­cun­dá­rio na so­cie­da­de e na fa­mí­lia pa­ra as­su­mir a van­guar­da de to­dos os atos e de to­dos os acon­te­ci­men­tos. (...) Eu só que­ria vi­ver mais cem anos pa­ra ver a rea­bi­li­ta­ção de­fi­ni­ti­va das mu­lhe­res, tão cer­ta co­mo três e três são seis."

BRA­SIL
"Pá­tria não se ar­ran­ca co­mo ti­ri­ri­ca. Se bas­ta dar com os olhos na pla­ca da Pla­ce Rio de Ja­nei­ro ao la­do do Parc Mon­ceau e re­pa­rar co­mo é tão di­fe­ren­te Pa­ris do Rio, e a sau­da­de aper­tar no pei­to jus­ta­men­te por con­ta da con­tra­di­ção que se pro­cu­rou? E que­rer vol­tar de qual­quer jei­to, que­rer so­frer, e vir pa­ra cá nem que se­ja pa­ra dar a car­ne aos la­drões e a al­ma à po­lí­cia?"

VI­DA 
"O ins­tin­to de to­do ser hu­ma­no é vi­ver. A vi­da é um bem su­pre­mo."

RE­LI­GIÃO
"Não dis­cu­to fi­lo­so­fias ou re­li­giões por­que nes­se pon­to sou mui­to fra­qui­nha. Não te­nho con­vic­ções. Não sei o que vem de­pois da mor­te, não es­pe­ro na­da, não me­di­to so­bre is­so, não es­pe­cu­lo. Acho que a vi­da já cus­ta tan­to, já é tão pe­sa­da... se­ria até in­jus­ti­ça ter mui­ta coi­sa de­pois."

MOR­TE
"Nas­ce o ho­mem nu e só de­pois é que se ves­te. Per­de a nu­dez com a ino­cên­cia; jun­to com a ino­cên­cia per­de a be­le­za e, co­mo se sen­te feio e im­pu­ro, co­me­ça en­tão a co­brir-se e a en­ver­go­nhar-se. (...) Se nas­ce nu, nu de­ve­ria mor­rer. Per­den­do com a mor­te a cons­ciên­cia de tu­do, in­clu­si­ve a cons­ciên­cia do bem e do mal, de na­da mais se po­de te­mer nem en­ver­go­nhar, co­mo aliás não se te­me nem se en­ver­go­nha, ati­ra­do que foi ao su­pre­mo aban­do­no. Os ou­tros ho­mens é que por ele se en­ver­go­nham e o co­brem, ten­tan­do man­ter no ca­dá­ver a iden­ti­da­de do vi­vo, co­mo se adian­tas­se pa­ra al­gu­ma coi­sa aque­le pre­cá­rio e pos­ti­ço adia­men­to. (...) No fun­do dis­so es­tá o ve­lho hor­ror à mor­te que to­dos os ho­mens sen­tem."

SE­ME­LHAN­ÇA
"É que os ho­mens, vis­tos de per­to, são to­dos mui­to se­me­lhan­tes. Po­lí­ti­cos, até mes­mo os ur­sos so­vié­ti­cos, re­ce­bem to­dos um cer­to po­li­men­to de sa­lão, sa­bem man­ter uma con­ver­sa agra­dá­vel; o fa­to de ser rea­cio­ná­rio, de­so­nes­to, pe­ri­go­so, não im­pe­de a um ho­mem ser amá­vel e até es­pi­ri­tuo­so."

DI­FE­REN­ÇAS
"O pro­gres­so nes­te mun­do sem­pre ca­mi­nha com pas­so de­si­gual: quan­do uns vão adian­te os de­mais ain­da se ar­ras­tam lá atrás. (...) Ain­da tem mui­ta gen­te nes­te mun­do que pen­sa que a ter­ra é cha­ta com o céu por ci­ma, o in­fer­no por bai­xo e o mar sal­ga­do em re­dor."

VAI­DA­DE
"Vai­da­de não é uma cau­sa, vai­da­de é con­se­quên­cia da­que­la no­ção exal­ta­da da nos­sa pró­pria exis­tên­cia, fe­nô­me­no ine­fá­vel e pa­ra sem­pre ma­ra­vi­lho­so. Não so­mos vai­do­sos, pro­pria­men­te. Ape­nas sen­ti­mos que em nós, em ca­da um de nós, es­tá o ei­xo do mun­do."

LEM­BRAN­ÇA
"Qua­ren­ta anos ou oi­ten­ta anos, que adian­ta? O que fi­cou pa­ra trás que im­por­ta? Nem o sol nem a lua dei­xam ris­cos no céu, mar­can­do os dias pas­sa­dos. De ca­da sol fi­ca ape­nas a lem­bran­ça; e lem­bran­ça só dói quan­do fres­ca. De­pois de cur­ti­da é con­so­lo."

DEUS
"Aque­le que acre­di­ta em Deus ima­gi­na-se não fei­to à ima­gem de Deus, mas con­ce­be Deus de acor­do com a sua pró­pria ima­gem. E por is­so o bom re­za a um Deus bom e o mau re­za a um Deus mau, ou ao dia­bo."

"Nun­ca es­ti­ve tão lon­ge de Deus quan­to em Ro­ma. Por­que lá, aque­la mas­sa de ri­que­zas, aque­las igre­jas sun­tuo­sís­si­mas, o pe­so mo­nu­men­tal da Igre­ja de São Pe­dro, afas­tam a gen­te de qual­quer ideia de es­pi­ri­tua­li­da­de."

ATEN­ÇÃO
"Ca­da coi­sa tem sua ho­ra e ca­da ho­ra o seu cui­da­do."

MAR­CAS
"Di­zem que o co­ra­ção não en­ve­lhe­ce. To­li­ce. En­ve­lhe­ce sim e mais de­pres­sa do que a ca­be­ça que não pra­teou ain­da, do que o cor­po que mal acu­sa a fa­di­ga de por tan­to tem­po an­dar de pé. A    sin­gu­la­ri­da­de do co­ra­ção é que ele     en­ve­lhe­ce com gra­ça. As cha­mas da    ju­ven­tu­de não o con­so­mem, ape­nas o dou­ram e lhe dão sus­tân­cia, co­mo ao pão o for­no."

"Ca­da ano que so­bre ele pas­sa, ca­da es­pe­ran­ça e dor dei­xam ne­le a sua mar­ca. Mas são mar­cas bo­ni­tas, não são ci­ca­tri­zes; quan­do mui­to são ta­tua­gens, ma­ri­nhei­ros e ha­vaia­nas, bor­bo­le­tas, ser­pen­tes, ân­co­ras e ban­dei­ras de vá­rios paí­ses dan­çan­do en­tre­la­ça­dos nas pa­re­des do ma­du­ro co­ra­ção."

MI­NAS
"Lou­ve-se nos mi­nei­ros em pri­mei­ro lu­gar a sua pre­sen­ça sua­ve. Mil de­les não cau­sam o in­cô­mo­do de dez cea­ren­ses. Não gri­tam, não em­pur­ram, não se­gu­ram o bra­ço da gen­te, não im­põem suas opi­niões. (...) Não têm ar­rou­bos, nem ar­ro­gân­cias, nem con­tam van­ta­gem. (...) Há gen­te que vi­ve por­que vê os ou­tros vi­ve­rem. Bem di­fe­ren­tes dis­so são os mi­nei­ros. Eles lá vi­vem co­mo en­ten­dem, ao con­trá­rio do que mui­tas ve­zes se es­pe­ra, in­cons­cien­tes da sua ori­gi­na­li­da­de, mas tre­men­da­men­te agar­ra­dos a ela."

ES­SÊN­CIA
"(...) A ter­ra é o nos­so prin­cí­pio e o nos­so fim, e pos­suí-la, ser do­no de­la, ter de seu um pe­da­ço de chão, é um pou­co co­mo vol­tar ao ven­tre de nos­sa mãe, ou au­men­tar aque­le chão à nos­sa car­ne e ao nos­so san­gue.  Di­rei que é qua­se co­mo o mis­té­rio do amor, es­se au­men­to de uma ou­tra coi­sa vi­va ao nos­so ser vi­vo, é uma ou­tra ma­nei­ra de nos pro­lon­gar­mos, de con­ti­nuar­mos, nos re­pro­du­zin­do em plan­tas e em bi­chos, co­mo nos re­pro­du­zi­mos em fi­lhos."  

CON­SE­LHO
"(...) Ter dó de si pró­prio, mor­men­te quan­do há um pre­tex­to real pa­ra es­se dó, é qua­se uma au­to­fa­gia, li­mi­ta o in­di­ví­duo em tor­no de si mes­mo, ti­ra-lhe to­da ge­ne­ro­si­da­de, to­da ca­pa­ci­da­de de se es­que­cer, pri­va-o até de mor­rer bem. Es­que­ça-se de si o mais que pu­der - sin­ce­ra, hu­mil­de­men­te, olhe os ou­tros com olhos des­pre­ve­ni­dos, olhe o mun­do, olhe as coi­sas."

MAS­SAS
"(...) Ai, as mas­sas são es­ses ho­mens dis­traí­dos, es­que­ci­dos, de­si­lu­di­dos e tão ma­gros, ras­pan­do os tor­rões de ter­ra com o ca­qui­nho da en­xa­da, der­ru­ban­do mais uma vez a so­ca da ma­ta ra­la, crian­do um boi­zi­nho sem ra­ça, tam­pan­do o rom­bo dos açu­de­cos, olhan­do me­lan­co­li­ca­men­te a água vas­ta dos gran­des açu­des, tão bo­ni­ta e tão inú­til, sem um pal­mo de ca­nal de ir­ri­ga­ção."

VE­LHO CHI­CO
"Ah, Rio São Fran­cis­co, co­mo é que eu pos­so fa­lar? O mais fá­cil de ex­pli­car é di­zer que ele é meu pa­ren­te: pa­ra nós da­qui, pa­ren­te­la é coi­sa mui­to for­te - e o que a gen­te ama as­sim tan­to, há de ser pai ou ir­mão ou pe­lo me­nos tio ou pri­mo. Ou avô, ou pa­dri­nho. Rio ve­lho meu pa­dri­nho, (...) car­re­gan­do tan­ta água, tan­to pei­xe, car­re­gan­do sa­be Deus o quê! (...) Se sou­bes­se que afo­gan­do não mor­ria, me afo­ga­va nas tuas águas só pa­ra sa­ber co­mo é vo­cê lá den­tro, na­que­le seu co­ra­ção es­con­di­do."

AMOR
"(...) Amor é uma coi­sa que dói den­tro do pei­to, dói de­va­ga­ri­nho, quen­ti­nho, con­for­tá­vel. É a mão que vem da ca­ma vi­zi­nha de noi­te e se­gu­ra na sua ador­me­ci­da. E vo­cê pre­fe­re fi­car com o bra­ço ge­la­do e doen­te a pu­xar a sua mão e cor­tar aque­le con­ta­to. Tão pre­cio­so que ele é. Amor é ter me­do - me­do de qua­se tu­do - da doen­ça, do de­sen­con­tro, da fa­di­ga, do cos­tu­me, das no­vi­da­des. Amor po­de ser uma ro­sa, um bi­fe, um bei­jo, uma co­lher de xa­ro­pe. Mas o que o amor é, prin­ci­pal­men­te, são duas pes­soas nes­te mun­do."


*            *            *
 IN: "100 Crô­ni­cas Es­co­lhi­das', Jo­sé Olym­pio Edi­to­ra.

terça-feira, 7 de maio de 2013

PAULO LEMINSKI - aqui nesta pedra


aqui

nesta pedra

alguém sentou
olhando o mar

o mar
não parou
pra ser olhado

foi mar
pra tudo quanto é lado

*    *     *

Paulo Leminski in: 'Toda poesia' - p.68

sábado, 4 de maio de 2013

STEFAN ZWEIG - Gratidão aos livros



Gratidão aos livros 
Stefan Zweig


Ali estão eles, esperando silenciosos. 
Estão calados, encostados na parede. 
Parecem dormir, no entanto seus títulos 
parecem olhares que nos fitam. 
O olhar, as mãos passam por eles, 
mas eles não clamam suplicantes, 
não se anunciam. Nada exigem. 
Esperando até serem abertos, só então eles se oferecem.

Primeiro: silêncio em torno de nós, silêncio dentro de nós. 
Estamos então preparados para eles. 
Uma noite, ao voltarmos cansados de um passeio, 
uma tarde quando fatigados dos homens, 
uma manhã despertando atordoados por um pesadelo.

Podemos ter um diálogo e, contudo, querer ficar sós. 
Aproximamos-nos da estante com o agradável pressentimento 
de uma doce sensação: 
cem olhos, cem nomes, nos olham, pacientes e mudos, 
à procura do olhar indagador – como escravas de um harém para o amo –, 
aguardando humildes o chamado 
e ainda felizes de serem úteis, se forem escolhidos.

Depois o dedo como que tateia sobre o teclado 
para encontrar o som da melodia que vibra intimamente: 
curva-se na mão o ser alvo e surdo, 
como violino guardado 
no qual dormem as vozes de Deus.

Abrimos um deles, lemos uma linha, um verso. 
No momento, porém, não soa claro. 
Desiludidos, quase brutais, repomos o livro na estante. 
Nova busca, até que encontramos o exato, 
aquele próprio para o momento.

De repente somos abraçados, 
sentimos uma respiração estranha, 
como se ao lado, prostrado pelo calor, 
estivesse o corpo de uma mulher. 
E como o levamos para debaixo de uma lâmpada, 
o livro, o feliz escolhido, brilha por igual com luz interior. 
A magia se produz, da nuvem delicada dos sonhos 
ascende a fantasmagoria. 
As estradas se alargam e a distância acolhe 
os teus sentimentos apagados.

Em qualquer lugar bate um relógio. 
Este, porém, não urge nesse tempo que foge. 
As horas aqui passam de outro modo. 
Ali há livros que andaram muitos séculos 
antes que suas palavras chegassem aos nossos lábios. 
Ali estão outros, jovens, nascidos ontem, 
gerados na confusão e necessidade de moços imberbes: 
falam, porém, uma língua mágica. 
E uns e outros agitam e aceleram a nossa respiração.

Se nos irritam, também nos consolam; 
se nos enganam, acalmam ao mesmo tempo 
nossos sentidos abertos. 
E à medida que mergulhamos neles 
encontramos em sua melodia, calma e contemplação, 
abandonado enlevo, um mundo do outro lado do mundo.

Como agradecer a vós, livros, 
os mais fiéis e silenciosos dos companheiros, 
os momentos puros passados longe do tumulto dos dias? 
Como agradecer a constante solicitude, 
eterna elevação e a infinita calma da vossa presença?

O que vos acontece nos dias sombrios de solidão, 
nos hospitais e campos de batalha, 
nas prisões e nos leitos de dor! 
Sentinelas constantes em toda parte 
oferecestes sonhos aos homens 
e mãos cheias de calma na inquietação e no martírio!

Podeis sempre, doces ímãs divinos, 
atrair as almas diariamente soterradas. 
Trazes em vós mesmos um céu íntimo 
que estendeis sobre nós, 
sempre nos momentos mais sombrios.

Pequenos átomos do incomensurável, 
ficais ocultos em nossas casas, 
enfileirados em uma singela parede. 
Todavia, a mão os liberta e se o coração vos toca, 
então saltais invisivelmente do lugar de todos os dias 
e vossas palavras nos elevam 
como numa carruagem de fogo, 
da estreiteza para a eternidade.

*            *            *

quinta-feira, 2 de maio de 2013

MÁRIO QUINTANA - in 'Baú de espantos'



"Frescor agradecido de capim molhado
Como alguém que chorou
E depois sentiu uma grande, uma quase envergonhada alegria.
Por ter a vida
Continuado..."



Os degraus

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma. 
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

*

Mário Quintana

*        *        *