Um alpendre, uma rede, um açude
Rachel de Queiroz
A humildade faz a gente aceitar com paciência tanto o esperado como o inesperado. Só o orgulho nos convence de que deveríamos estar acima das contingências."
TALENTO
"(...) Para escrever, tem que haver o dom da escrita, tal como para o cantor é preciso o dom da voz. Todos conhecemos pessoas inteligentes, até brilhantes na sua especialidade - medicina, arquitetura, engenharia, economia e, na verdade, por mais sabedores que sejam no seu ofício, não conseguem exprimir na palavra escrita essa sabedoria."
"Deus sempre é parco na concessão de dotes: os que acumulam são sempre contados. Por que as boas cantoras líricas geralmente têm tendência a engordar? E por que as de bela silhueta quase sempre só dispõem de um fio mal afinado de voz?"
PRIVILÉGIO
"Poucos povos no planeta ainda têm esse recurso: a fuga com honra. Não precisa dar para gangster nem entrar para um convento. Basta cercar um roçado, levantar um rancho, plantar feijão e milho, criar uma ovelha, uns burros. Mesmo com seca, com enchente ou geada, havendo trabalho e paciência, não dá para morrer de fome. Será a pobreza e a renúncia. Mas é sempre melhor que o desespero."
FELICIDADE
"Mas é preciso compreender quanto varia o conceito de felicidade entre o homem urbano e essa nossa variedade de brasileiro rural. Para o homem da cidade, ser feliz se traduz em "ter coisas": ter apartamento, rádio, geladeira, televisão, bicicleta, automóvel. Quanto mais engenhocas mecânicas possuir, mais feliz se presume. Para isso se escraviza, trabalha dia e noite e se gaba de bem-sucedido. O homem daqui, seu conceito de felicidade é muito mais subjetivo: ser feliz não é ter coisas; ser feliz é ser livre, não precisar de trabalhar. E, mormente, não trabalhar obrigado."
SACRIFÍCIO
"No beiral de minha varanda se aninhou um casal de andorinhas. E a gente acompanhou o trabalho dos pássaros, diariamente. Primeiro a confecção do ninho, palha por palha, galhinho por galhinho. Depois o lento, monótono, processo de choco. Depois o nascimento dos filhotes, pelados, viscosos, sempre esfomeados. O esforço de catar comida, de encher aqueles bicos insaciáveis. A paciência de esperar que os filhotes empenem, aprendam a usar as asas e se libertem do ninho. Mas, no fim das contas, aquele sacrifício todo tem a sua paga - resulta infalivelmente em um novo casal de andorinhas, tão belas quanto as primeiras, negras, lustrosas e perfeitas."
"Como é difícil, meu Deus, como é raro produzir, já não digo uma andorinha inteira, mas um simples riscar de asa no céu, uma cantiga de ave, um atrevimento de voo."
MULHER
"Podem escandalizar-se os sociólogos e toda a gente mais: para o século XXI, eu prevejo a vitória social das mulheres. As mulheres deixarão de ser o elemento secundário na sociedade e na família para assumir a vanguarda de todos os atos e de todos os acontecimentos. (...) Eu só queria viver mais cem anos para ver a reabilitação definitiva das mulheres, tão certa como três e três são seis."
BRASIL
"Pátria não se arranca como tiririca. Se basta dar com os olhos na placa da Place Rio de Janeiro ao lado do Parc Monceau e reparar como é tão diferente Paris do Rio, e a saudade apertar no peito justamente por conta da contradição que se procurou? E querer voltar de qualquer jeito, querer sofrer, e vir para cá nem que seja para dar a carne aos ladrões e a alma à polícia?"
VIDA
"O instinto de todo ser humano é viver. A vida é um bem supremo."
RELIGIÃO
"Não discuto filosofias ou religiões porque nesse ponto sou muito fraquinha. Não tenho convicções. Não sei o que vem depois da morte, não espero nada, não medito sobre isso, não especulo. Acho que a vida já custa tanto, já é tão pesada... seria até injustiça ter muita coisa depois."
MORTE
"Nasce o homem nu e só depois é que se veste. Perde a nudez com a inocência; junto com a inocência perde a beleza e, como se sente feio e impuro, começa então a cobrir-se e a envergonhar-se. (...) Se nasce nu, nu deveria morrer. Perdendo com a morte a consciência de tudo, inclusive a consciência do bem e do mal, de nada mais se pode temer nem envergonhar, como aliás não se teme nem se envergonha, atirado que foi ao supremo abandono. Os outros homens é que por ele se envergonham e o cobrem, tentando manter no cadáver a identidade do vivo, como se adiantasse para alguma coisa aquele precário e postiço adiamento. (...) No fundo disso está o velho horror à morte que todos os homens sentem."
SEMELHANÇA
"É que os homens, vistos de perto, são todos muito semelhantes. Políticos, até mesmo os ursos soviéticos, recebem todos um certo polimento de salão, sabem manter uma conversa agradável; o fato de ser reacionário, desonesto, perigoso, não impede a um homem ser amável e até espirituoso."
DIFERENÇAS
"O progresso neste mundo sempre caminha com passo desigual: quando uns vão adiante os demais ainda se arrastam lá atrás. (...) Ainda tem muita gente neste mundo que pensa que a terra é chata com o céu por cima, o inferno por baixo e o mar salgado em redor."
VAIDADE
"Vaidade não é uma causa, vaidade é consequência daquela noção exaltada da nossa própria existência, fenômeno inefável e para sempre maravilhoso. Não somos vaidosos, propriamente. Apenas sentimos que em nós, em cada um de nós, está o eixo do mundo."
LEMBRANÇA
"Quarenta anos ou oitenta anos, que adianta? O que ficou para trás que importa? Nem o sol nem a lua deixam riscos no céu, marcando os dias passados. De cada sol fica apenas a lembrança; e lembrança só dói quando fresca. Depois de curtida é consolo."
DEUS
"Aquele que acredita em Deus imagina-se não feito à imagem de Deus, mas concebe Deus de acordo com a sua própria imagem. E por isso o bom reza a um Deus bom e o mau reza a um Deus mau, ou ao diabo."
"Nunca estive tão longe de Deus quanto em Roma. Porque lá, aquela massa de riquezas, aquelas igrejas suntuosíssimas, o peso monumental da Igreja de São Pedro, afastam a gente de qualquer ideia de espiritualidade."
ATENÇÃO
"Cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado."
MARCAS
"Dizem que o coração não envelhece. Tolice. Envelhece sim e mais depressa do que a cabeça que não prateou ainda, do que o corpo que mal acusa a fadiga de por tanto tempo andar de pé. A singularidade do coração é que ele envelhece com graça. As chamas da juventude não o consomem, apenas o douram e lhe dão sustância, como ao pão o forno."
"Cada ano que sobre ele passa, cada esperança e dor deixam nele a sua marca. Mas são marcas bonitas, não são cicatrizes; quando muito são tatuagens, marinheiros e havaianas, borboletas, serpentes, âncoras e bandeiras de vários países dançando entrelaçados nas paredes do maduro coração."
MINAS
"Louve-se nos mineiros em primeiro lugar a sua presença suave. Mil deles não causam o incômodo de dez cearenses. Não gritam, não empurram, não seguram o braço da gente, não impõem suas opiniões. (...) Não têm arroubos, nem arrogâncias, nem contam vantagem. (...) Há gente que vive porque vê os outros viverem. Bem diferentes disso são os mineiros. Eles lá vivem como entendem, ao contrário do que muitas vezes se espera, inconscientes da sua originalidade, mas tremendamente agarrados a ela."
ESSÊNCIA
"(...) A terra é o nosso princípio e o nosso fim, e possuí-la, ser dono dela, ter de seu um pedaço de chão, é um pouco como voltar ao ventre de nossa mãe, ou aumentar aquele chão à nossa carne e ao nosso sangue. Direi que é quase como o mistério do amor, esse aumento de uma outra coisa viva ao nosso ser vivo, é uma outra maneira de nos prolongarmos, de continuarmos, nos reproduzindo em plantas e em bichos, como nos reproduzimos em filhos."
CONSELHO
"(...) Ter dó de si próprio, mormente quando há um pretexto real para esse dó, é quase uma autofagia, limita o indivíduo em torno de si mesmo, tira-lhe toda generosidade, toda capacidade de se esquecer, priva-o até de morrer bem. Esqueça-se de si o mais que puder - sincera, humildemente, olhe os outros com olhos desprevenidos, olhe o mundo, olhe as coisas."
MASSAS
"(...) Ai, as massas são esses homens distraídos, esquecidos, desiludidos e tão magros, raspando os torrões de terra com o caquinho da enxada, derrubando mais uma vez a soca da mata rala, criando um boizinho sem raça, tampando o rombo dos açudecos, olhando melancolicamente a água vasta dos grandes açudes, tão bonita e tão inútil, sem um palmo de canal de irrigação."
VELHO CHICO
"Ah, Rio São Francisco, como é que eu posso falar? O mais fácil de explicar é dizer que ele é meu parente: para nós daqui, parentela é coisa muito forte - e o que a gente ama assim tanto, há de ser pai ou irmão ou pelo menos tio ou primo. Ou avô, ou padrinho. Rio velho meu padrinho, (...) carregando tanta água, tanto peixe, carregando sabe Deus o quê! (...) Se soubesse que afogando não morria, me afogava nas tuas águas só para saber como é você lá dentro, naquele seu coração escondido."
AMOR
"(...) Amor é uma coisa que dói dentro do peito, dói devagarinho, quentinho, confortável. É a mão que vem da cama vizinha de noite e segura na sua adormecida. E você prefere ficar com o braço gelado e doente a puxar a sua mão e cortar aquele contato. Tão precioso que ele é. Amor é ter medo - medo de quase tudo - da doença, do desencontro, da fadiga, do costume, das novidades. Amor pode ser uma rosa, um bife, um beijo, uma colher de xarope. Mas o que o amor é, principalmente, são duas pessoas neste mundo."
* * *
IN: "100 Crônicas Escolhidas', José Olympio Editora.
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