sexta-feira, 10 de maio de 2013

RACHEL DE QUEIROZ - Um alpendre...


Um al­pen­dre, uma re­de, um açu­de
Rachel de Queiroz

MO­DÉS­TIA
A hu­mil­da­de faz a gen­te acei­tar com pa­ciên­cia tan­to o es­pe­ra­do co­mo o ines­pe­ra­do. Só o or­gu­lho nos con­ven­ce de que de­ve­ría­mos es­tar aci­ma das con­tin­gên­cias."

TA­LEN­TO
"(...) Pa­ra es­cre­ver, tem que ha­ver o dom da es­cri­ta, tal co­mo pa­ra o can­tor é pre­ci­so o dom da voz. To­dos co­nhe­ce­mos pes­soas in­te­li­gen­tes, até bri­lhan­tes na sua es­pe­cia­li­da­de - me­di­ci­na, ar­qui­te­tu­ra, en­ge­nha­ria, eco­no­mia e, na ver­da­de, por mais sa­be­do­res que se­jam no seu ofí­cio, não con­se­guem ex­pri­mir na pa­la­vra es­cri­ta es­sa sa­be­do­ria."

 "Deus sem­pre é par­co na con­ces­são de do­tes: os que acu­mu­lam são sem­pre con­ta­dos. Por que as boas can­to­ras lí­ri­cas ge­ral­men­te têm ten­dên­cia a en­gor­dar? E por que as de be­la si­lhue­ta qua­se sem­pre só dis­põem de um fio mal afi­na­do de voz?"

PRI­VI­LÉ­GIO
"Pou­cos po­vos no pla­ne­ta ain­da têm es­se re­cur­so: a fu­ga com hon­ra. Não pre­ci­sa dar pa­ra gan­gs­ter nem en­trar pa­ra um con­ven­to. Bas­ta cer­car um ro­ça­do, le­van­tar um ran­cho, plan­tar fei­jão e mi­lho, criar uma ove­lha, uns bur­ros. Mes­mo com se­ca, com en­chen­te ou gea­da, ha­ven­do tra­ba­lho e pa­ciên­cia, não dá pa­ra mor­rer de fo­me. Se­rá a po­bre­za e a re­nún­cia. Mas é sem­pre me­lhor que o de­ses­pe­ro."

FE­LI­CI­DA­DE
"Mas é pre­ci­so com­preen­der quan­to va­ria o con­cei­to de fe­li­ci­da­de en­tre o ho­mem ur­ba­no e es­sa nos­sa va­rie­da­de de bra­si­lei­ro ru­ral. Pa­ra o ho­mem da ci­da­de, ser fe­liz se tra­duz em "ter coi­sas": ter apar­ta­men­to, rá­dio, ge­la­dei­ra, te­le­vi­são, bi­ci­cle­ta, au­to­mó­vel. Quan­to mais en­ge­nho­cas me­câ­ni­cas pos­suir, mais fe­liz se pre­su­me. Pa­ra is­so se es­cra­vi­za, tra­ba­lha dia e noi­te e se ga­ba de bem-su­ce­di­do. O ho­mem da­qui, seu con­cei­to de fe­li­ci­da­de é mui­to mais sub­je­ti­vo: ser fe­liz não é ter coi­sas; ser fe­liz é ser li­vre, não pre­ci­sar de tra­ba­lhar. E, mor­men­te, não tra­ba­lhar obri­ga­do."

SA­CRI­FÍ­CIO
"No bei­ral de mi­nha va­ran­da se ani­nhou um ca­sal de an­do­ri­nhas. E a gen­te acom­pa­nhou o tra­ba­lho dos pás­sa­ros, dia­ria­men­te. Pri­mei­ro a con­fec­ção do ni­nho, pa­lha por pa­lha, ga­lhi­nho por ga­lhi­nho. De­pois o len­to, mo­nó­to­no, pro­ces­so de cho­co. De­pois o nas­ci­men­to dos fi­lho­tes, pe­la­dos, vis­co­sos, sem­pre es­fo­mea­dos. O es­for­ço de ca­tar co­mi­da, de en­cher aque­les bi­cos in­sa­ciá­veis. A pa­ciên­cia de es­pe­rar que os fi­lho­tes em­pe­nem, apren­dam a usar as asas e se li­ber­tem do ni­nho. Mas, no fim das con­tas, aque­le sa­cri­fí­cio to­do tem a sua pa­ga - re­sul­ta in­fa­li­vel­men­te em um no­vo ca­sal de an­do­ri­nhas, tão be­las quan­to as pri­mei­ras, ne­gras, lus­tro­sas e per­fei­tas."

"Co­mo é di­fí­cil, meu Deus, co­mo é ra­ro pro­du­zir, já não di­go uma an­do­ri­nha in­tei­ra, mas um sim­ples ris­car de asa no céu, uma can­ti­ga de ave, um atre­vi­men­to de voo."

MU­LHER
"Po­dem es­can­da­li­zar-se os so­ció­lo­gos e to­da a gen­te mais: pa­ra o sé­cu­lo XXI, eu pre­ve­jo a vi­tó­ria so­cial das mu­lhe­res. As mu­lhe­res dei­xa­rão de ser o ele­men­to se­cun­dá­rio na so­cie­da­de e na fa­mí­lia pa­ra as­su­mir a van­guar­da de to­dos os atos e de to­dos os acon­te­ci­men­tos. (...) Eu só que­ria vi­ver mais cem anos pa­ra ver a rea­bi­li­ta­ção de­fi­ni­ti­va das mu­lhe­res, tão cer­ta co­mo três e três são seis."

BRA­SIL
"Pá­tria não se ar­ran­ca co­mo ti­ri­ri­ca. Se bas­ta dar com os olhos na pla­ca da Pla­ce Rio de Ja­nei­ro ao la­do do Parc Mon­ceau e re­pa­rar co­mo é tão di­fe­ren­te Pa­ris do Rio, e a sau­da­de aper­tar no pei­to jus­ta­men­te por con­ta da con­tra­di­ção que se pro­cu­rou? E que­rer vol­tar de qual­quer jei­to, que­rer so­frer, e vir pa­ra cá nem que se­ja pa­ra dar a car­ne aos la­drões e a al­ma à po­lí­cia?"

VI­DA 
"O ins­tin­to de to­do ser hu­ma­no é vi­ver. A vi­da é um bem su­pre­mo."

RE­LI­GIÃO
"Não dis­cu­to fi­lo­so­fias ou re­li­giões por­que nes­se pon­to sou mui­to fra­qui­nha. Não te­nho con­vic­ções. Não sei o que vem de­pois da mor­te, não es­pe­ro na­da, não me­di­to so­bre is­so, não es­pe­cu­lo. Acho que a vi­da já cus­ta tan­to, já é tão pe­sa­da... se­ria até in­jus­ti­ça ter mui­ta coi­sa de­pois."

MOR­TE
"Nas­ce o ho­mem nu e só de­pois é que se ves­te. Per­de a nu­dez com a ino­cên­cia; jun­to com a ino­cên­cia per­de a be­le­za e, co­mo se sen­te feio e im­pu­ro, co­me­ça en­tão a co­brir-se e a en­ver­go­nhar-se. (...) Se nas­ce nu, nu de­ve­ria mor­rer. Per­den­do com a mor­te a cons­ciên­cia de tu­do, in­clu­si­ve a cons­ciên­cia do bem e do mal, de na­da mais se po­de te­mer nem en­ver­go­nhar, co­mo aliás não se te­me nem se en­ver­go­nha, ati­ra­do que foi ao su­pre­mo aban­do­no. Os ou­tros ho­mens é que por ele se en­ver­go­nham e o co­brem, ten­tan­do man­ter no ca­dá­ver a iden­ti­da­de do vi­vo, co­mo se adian­tas­se pa­ra al­gu­ma coi­sa aque­le pre­cá­rio e pos­ti­ço adia­men­to. (...) No fun­do dis­so es­tá o ve­lho hor­ror à mor­te que to­dos os ho­mens sen­tem."

SE­ME­LHAN­ÇA
"É que os ho­mens, vis­tos de per­to, são to­dos mui­to se­me­lhan­tes. Po­lí­ti­cos, até mes­mo os ur­sos so­vié­ti­cos, re­ce­bem to­dos um cer­to po­li­men­to de sa­lão, sa­bem man­ter uma con­ver­sa agra­dá­vel; o fa­to de ser rea­cio­ná­rio, de­so­nes­to, pe­ri­go­so, não im­pe­de a um ho­mem ser amá­vel e até es­pi­ri­tuo­so."

DI­FE­REN­ÇAS
"O pro­gres­so nes­te mun­do sem­pre ca­mi­nha com pas­so de­si­gual: quan­do uns vão adian­te os de­mais ain­da se ar­ras­tam lá atrás. (...) Ain­da tem mui­ta gen­te nes­te mun­do que pen­sa que a ter­ra é cha­ta com o céu por ci­ma, o in­fer­no por bai­xo e o mar sal­ga­do em re­dor."

VAI­DA­DE
"Vai­da­de não é uma cau­sa, vai­da­de é con­se­quên­cia da­que­la no­ção exal­ta­da da nos­sa pró­pria exis­tên­cia, fe­nô­me­no ine­fá­vel e pa­ra sem­pre ma­ra­vi­lho­so. Não so­mos vai­do­sos, pro­pria­men­te. Ape­nas sen­ti­mos que em nós, em ca­da um de nós, es­tá o ei­xo do mun­do."

LEM­BRAN­ÇA
"Qua­ren­ta anos ou oi­ten­ta anos, que adian­ta? O que fi­cou pa­ra trás que im­por­ta? Nem o sol nem a lua dei­xam ris­cos no céu, mar­can­do os dias pas­sa­dos. De ca­da sol fi­ca ape­nas a lem­bran­ça; e lem­bran­ça só dói quan­do fres­ca. De­pois de cur­ti­da é con­so­lo."

DEUS
"Aque­le que acre­di­ta em Deus ima­gi­na-se não fei­to à ima­gem de Deus, mas con­ce­be Deus de acor­do com a sua pró­pria ima­gem. E por is­so o bom re­za a um Deus bom e o mau re­za a um Deus mau, ou ao dia­bo."

"Nun­ca es­ti­ve tão lon­ge de Deus quan­to em Ro­ma. Por­que lá, aque­la mas­sa de ri­que­zas, aque­las igre­jas sun­tuo­sís­si­mas, o pe­so mo­nu­men­tal da Igre­ja de São Pe­dro, afas­tam a gen­te de qual­quer ideia de es­pi­ri­tua­li­da­de."

ATEN­ÇÃO
"Ca­da coi­sa tem sua ho­ra e ca­da ho­ra o seu cui­da­do."

MAR­CAS
"Di­zem que o co­ra­ção não en­ve­lhe­ce. To­li­ce. En­ve­lhe­ce sim e mais de­pres­sa do que a ca­be­ça que não pra­teou ain­da, do que o cor­po que mal acu­sa a fa­di­ga de por tan­to tem­po an­dar de pé. A    sin­gu­la­ri­da­de do co­ra­ção é que ele     en­ve­lhe­ce com gra­ça. As cha­mas da    ju­ven­tu­de não o con­so­mem, ape­nas o dou­ram e lhe dão sus­tân­cia, co­mo ao pão o for­no."

"Ca­da ano que so­bre ele pas­sa, ca­da es­pe­ran­ça e dor dei­xam ne­le a sua mar­ca. Mas são mar­cas bo­ni­tas, não são ci­ca­tri­zes; quan­do mui­to são ta­tua­gens, ma­ri­nhei­ros e ha­vaia­nas, bor­bo­le­tas, ser­pen­tes, ân­co­ras e ban­dei­ras de vá­rios paí­ses dan­çan­do en­tre­la­ça­dos nas pa­re­des do ma­du­ro co­ra­ção."

MI­NAS
"Lou­ve-se nos mi­nei­ros em pri­mei­ro lu­gar a sua pre­sen­ça sua­ve. Mil de­les não cau­sam o in­cô­mo­do de dez cea­ren­ses. Não gri­tam, não em­pur­ram, não se­gu­ram o bra­ço da gen­te, não im­põem suas opi­niões. (...) Não têm ar­rou­bos, nem ar­ro­gân­cias, nem con­tam van­ta­gem. (...) Há gen­te que vi­ve por­que vê os ou­tros vi­ve­rem. Bem di­fe­ren­tes dis­so são os mi­nei­ros. Eles lá vi­vem co­mo en­ten­dem, ao con­trá­rio do que mui­tas ve­zes se es­pe­ra, in­cons­cien­tes da sua ori­gi­na­li­da­de, mas tre­men­da­men­te agar­ra­dos a ela."

ES­SÊN­CIA
"(...) A ter­ra é o nos­so prin­cí­pio e o nos­so fim, e pos­suí-la, ser do­no de­la, ter de seu um pe­da­ço de chão, é um pou­co co­mo vol­tar ao ven­tre de nos­sa mãe, ou au­men­tar aque­le chão à nos­sa car­ne e ao nos­so san­gue.  Di­rei que é qua­se co­mo o mis­té­rio do amor, es­se au­men­to de uma ou­tra coi­sa vi­va ao nos­so ser vi­vo, é uma ou­tra ma­nei­ra de nos pro­lon­gar­mos, de con­ti­nuar­mos, nos re­pro­du­zin­do em plan­tas e em bi­chos, co­mo nos re­pro­du­zi­mos em fi­lhos."  

CON­SE­LHO
"(...) Ter dó de si pró­prio, mor­men­te quan­do há um pre­tex­to real pa­ra es­se dó, é qua­se uma au­to­fa­gia, li­mi­ta o in­di­ví­duo em tor­no de si mes­mo, ti­ra-lhe to­da ge­ne­ro­si­da­de, to­da ca­pa­ci­da­de de se es­que­cer, pri­va-o até de mor­rer bem. Es­que­ça-se de si o mais que pu­der - sin­ce­ra, hu­mil­de­men­te, olhe os ou­tros com olhos des­pre­ve­ni­dos, olhe o mun­do, olhe as coi­sas."

MAS­SAS
"(...) Ai, as mas­sas são es­ses ho­mens dis­traí­dos, es­que­ci­dos, de­si­lu­di­dos e tão ma­gros, ras­pan­do os tor­rões de ter­ra com o ca­qui­nho da en­xa­da, der­ru­ban­do mais uma vez a so­ca da ma­ta ra­la, crian­do um boi­zi­nho sem ra­ça, tam­pan­do o rom­bo dos açu­de­cos, olhan­do me­lan­co­li­ca­men­te a água vas­ta dos gran­des açu­des, tão bo­ni­ta e tão inú­til, sem um pal­mo de ca­nal de ir­ri­ga­ção."

VE­LHO CHI­CO
"Ah, Rio São Fran­cis­co, co­mo é que eu pos­so fa­lar? O mais fá­cil de ex­pli­car é di­zer que ele é meu pa­ren­te: pa­ra nós da­qui, pa­ren­te­la é coi­sa mui­to for­te - e o que a gen­te ama as­sim tan­to, há de ser pai ou ir­mão ou pe­lo me­nos tio ou pri­mo. Ou avô, ou pa­dri­nho. Rio ve­lho meu pa­dri­nho, (...) car­re­gan­do tan­ta água, tan­to pei­xe, car­re­gan­do sa­be Deus o quê! (...) Se sou­bes­se que afo­gan­do não mor­ria, me afo­ga­va nas tuas águas só pa­ra sa­ber co­mo é vo­cê lá den­tro, na­que­le seu co­ra­ção es­con­di­do."

AMOR
"(...) Amor é uma coi­sa que dói den­tro do pei­to, dói de­va­ga­ri­nho, quen­ti­nho, con­for­tá­vel. É a mão que vem da ca­ma vi­zi­nha de noi­te e se­gu­ra na sua ador­me­ci­da. E vo­cê pre­fe­re fi­car com o bra­ço ge­la­do e doen­te a pu­xar a sua mão e cor­tar aque­le con­ta­to. Tão pre­cio­so que ele é. Amor é ter me­do - me­do de qua­se tu­do - da doen­ça, do de­sen­con­tro, da fa­di­ga, do cos­tu­me, das no­vi­da­des. Amor po­de ser uma ro­sa, um bi­fe, um bei­jo, uma co­lher de xa­ro­pe. Mas o que o amor é, prin­ci­pal­men­te, são duas pes­soas nes­te mun­do."


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 IN: "100 Crô­ni­cas Es­co­lhi­das', Jo­sé Olym­pio Edi­to­ra.

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