Da página "Diálogos na Caverna"
Histórias de um Natal de sempre
Lucia Helena Galvão Maya
Algumas experiências, aparentemente simples e banais, nos marcam profundamente.
Um dia desses, por exemplo, o cachorrinho da minha casa, aquele mesmo que é quase sempre inconveniente e transportador de pulgas, inventou de adoecer, e inventou sério: quase que morre.
Isso gerou uma comoção total na casa: ninguém tinha reparado que seria tão difícil viver sem aquela criaturinha que alegrava nossa chegada, com sua euforia, e perturbava nossas refeições, na esperança de participar delas.
A partir daí, comecei a viver um ciclo de observações bem interessante: parei para prestar atenção em pequenas coisas belas que nunca reparo, mas que estão lá, adornando a minha vida de uma forma que percebi como indispensável.
Já houve filósofos (estes que reparam em tudo) que disseram que a consciência nasce do contraste, ou seja, que notamos o valor das coisas quando as perdemos, ou corremos o risco de perder.
Há um sabiá que sempre canta pelas redondezas da minha janela; chega a dobrar o trinado, exibicionista, num fôlego de fazer inveja... como nunca havia percebido a diferença que esse passarinho faz, nas minhas manhãs?
Ao chegar ao trabalho, nessa época do ano (como sempre, em todos os anos), tem aquela senhora que traz todas as guirlandas natalinas da casa dela e pendura em todas as portas... e fica por ali, na esperança de alguém que passe e elogie... vai que esse alguém também veja a foto da netinha, em cima da mesa, e comente algo! Dá-lhe histórias sobre as últimas gracinhas da menina...sempre a mesma rotina!
Mas o cãozinho que quase morre me deu a preciosa lição de que o “sempre” pode acabar a qualquer momento, assim, sem mandar aviso... e deixar um vazio dolorido no coração da gente.
Passando pela panificadora no caminho de casa (sempre tem que passar!),o balconista sorri e dispara a pergunta: “Pão branquinho ou torradinho, moça?”.
Olho para a gôndola de pão e vejo que só tem pão branquinho lá dentro...e então respondo, com a satisfação de pedir algo que ele pode me dar: “Vê para mim seis bem branquinhos, moço!” Sorrisos.
As nuvens lá fora estão pesadas, talvez a condução atrase e faça chuva de vento, que molhe todo o abrigo de ônibus... “O futuro a Deus pertence”, dizia minha vó...mas o presente, a alegria singela do presente pertence agora ao moço da padaria, cheio de satisfação ao me estender o pacotinho de papel pardo...
Vez por outra, no banco da pracinha, perto do portão, tem casal de namorado abraçadinho e meio bobo (como sempre são, os namorados!), olhando a lua, ainda que minguante. Mas eles nem vêem o muito de sombra que a lua tem, nesse dia, e aceitam de bom grado o fiapo de luz que ela tem para oferecer, como um presente...
Na caixa de correspondência, a propaganda comercial diz: “O Natal está chegando!” Isso me causa um impacto de estranheza: como assim? para onde havia ido o Natal? Com certeza, para lugar nenhum: esteve aí o tempo todo.
Isso me faz recordar a história da mãe, que sabe que seu garoto esteve a manhã inteira na rua, brincando e jogando futebol, mas que marca hora para sentir falta dele. E aí, chega na janela e grita a pleno pulmão para o menino vir para dentro, que a comida está no prato. E ele entra, com o corpo sujo de doer, mas a alma limpa e pura, transbordando pelos olhos em alegria.
Parecido com isso é o que acontece conosco e com o Natal, com o seu Menino tão especial: marcamos data (dezembro, 25), para chamá-lo para dentro de casa; e lá vem Ele, luminoso, sentar à mesa ao nosso lado, sorrir, lambuzar o rosto de confeitos e mostrar suas figurinhas para trocar as repetidas conosco. E dizemos: “Eu tenho a do sabiá, a dos namorados e a lua e a do cachorrinho...você tem qual?”
Menino sabido: sempre tem figurinha nova para trocar com a gente.
Então, combinamos assim: o Natal está chegando; vamos arrumar a casa e chamar o Menino para dentro. Esse que sempre corre pelas ruas, alegre e vivo, vendo beleza e colocando beleza em todas as coisas.
Mas não se esqueça de desconfiar da palavra “sempre”.
Se for verdade a lição que aprendi com o meu cachorrinho, de tanto estarmos desatentos, ausentes, superficiais, confiados no “sempre”, um dia (pesadelo!), corremos o risco de abrir a janela... e o sempre virou nunca mais. Fique atento ao sempre... alimente o sempre!
Já houve desses filósofos faladores do passado (e do presente!) que disseram que o sempre, bem alimentado, corre o risco de virar...eternidade.
Feliz Natal para você... sempre!
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