sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

JANAÍNA BARROSO - Simplesmente complexo

Da página "Obvious - Recortes"


Simplesmente Complexo
Janaína Barroso

Catava conchinhas enquanto todos se divertiam no mar ou paqueravam na praia. 
Ao fim do dia sentou-se na areia e ficou admirando o pôr-do-sol enquanto alguns se arrumavam para a balada, e outros conversavam futilidades. 
Não havia nada de errado em falar futilidades e paquerar na praia, nem se jogar no mar ou na noitada, muito menos. 
Apenas queria desfrutar das conchas na areia e admirar o pôr-do-sol de mãos dadas com a solidão.

Pois ela não se sentia mais sozinha. O bom de envelhecer era que muitas coisas ficavam claras de uma hora para outra. 

Soube que "Todos somos sós, nascemos sós e morreremos sós." Mas que a diferença estava em se nos sentíamos sós. 
Alguns buscam pessoas para partilhar momentos, outros aventuras, e até alguns felizardos encontram o amor, mas todos se mantêm ocupados para não pensar muito na própria solidão. 
Alguns surtam se ficam mais de um minuto somente em companhia de seus próprios pensamentos, acabam buscando música, TV, internet, uma conversa ao telefone ou a leitura de um livro, e nem se dão conta disso.

Ela era assim, mas aprendeu a tirar coisas boas de sua própria solidão, de sua própria companhia. Parou de buscar loucamente aprovação das pessoas, de buscar alguém que aquecesse seu coração, de conhecer pessoas que se afinassem com ela. 

Talvez ela tenha visto que nada valia a pena no final das contas.

Não odiava todas as pessoas do mundo, mas queria por perto somente quem gostasse dela sem esperar nada em troca, e a maioria sempre esperava algo em troca. E ela sabia que não tinha mais nada a oferecer. Estava seca como o deserto.
"A vida é simples, as pessoas é que complicam." -Pensava

Ficou chacoalhando as conchinhas na sacola e sorria sozinha, pelo barulhinho engraçado que saía delas e pelo barulhinho que sua mente fazia ao mesmo tempo, pela felicidade que uma coisa tão boba podia proporcionar. O que faria mesmo com elas?


Levaria pra casa, as lavaria, guardaria por um tempo e depois iriam para o lixo com todo o monte de tralhas que guardava e depois abandonava. 

Não conseguia guardar as coisas por muito tempo, diferente dos acumuladores, ela precisava jogar fora, doar, arrumar.
(...)

Jogou as conchinhas na areia e decidiu escolher uma só para guardar, e dentre tantas perfeitas e branquinhas, escolheu aquela que nos permitia ouvir o som do mar. 

Encostou-a em sua orelha e soube que ela sempre seria como um telefone com ligação direta para aquele instante mágico que vivia.

Juntou as outras conchas novamente na sacola e se levantou, indo até a beira do mar, sentindo as pequenas ondas morrerem em seus pés descalços. 

Começou a jogá-las uma a uma como quem joga moedas numa fonte esperando que seus desejos se realizassem.



Talvez ela tenha feito seus pedidos em segredo, ou tenha feito algum pacto que somente o Mar saberia. 
Quem sabe tenha se livrado de todo o peso que o passado e o futuro depositavam em sua costas. Sabia que apenas o momento presente era tudo que tinha agora. 
Guardou a conchinha escolhida consigo e foi embora, agora olhando as estrelas que enfeitavam o céu como vagalumes. 
Seu mundo era tão complexamente simples...


*            *            *

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

TEL MONT - Filme breve



FILME BREVE

Do norte a outra vem, lenta e feérica. Uma fada loura salpicando sensualidade. Via-a todos os dias ir e vir do trabalho, ambas anônimas porém cada vez menos indiferentes. Bebia-lhe o perfume, prendia-se ao seu andar, aprendia-lhe as cores das roupas, horários, jeito e gestos. À noite, voava até sua janela e sonhava-lhe a intimidade.

Certa vez, num misto de cálculo, estratégia e destino, conseguiu sentar exatamente atrás dela no ônibus pela manhã. O vento entrando pela janela fez os leves cachos de sol roçarem em seus dedos emocionados. Descobriu mínimas sardas espalhadas por seus ombros (ela usava um vestido de decote largo).

Gostava de ser secreta, íntima espera ansiosa por trás de vidraças ou grades trabalhadas ou falsas distrações. Às vezes, a fada passava rasante pela sua porta e o olhar dela sempre a flechava de soslaio. Agora, no entanto, o imprevisível acontecia e a cercava sem saída.
O corpo branco veio vindo, os olhos dourados flamejantes e doces, e o mundo todo foi morrendo devagarzinho para não assustar as crianças e os enternecidos. Sob a chuva com sol seu corpo foi invadido por ondas de ternura ardente, delicadeza e frisson.
O olhar dela a tocou num golpe profundo.
"Teu desejo me irrita e me atrai. Me seduz essa contradição." - disse a fada, sem falar.
O olhar dela próximo, tão próximo, cruzou os céus do seu segredo. Ela passou e levou o sol, a chuva, encantou as palavras quase ditas e deixou um quê de infinito tremeluzindo pelo resto da tarde cinza. 

(TEL MONT)

*        *        *

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

MIA COUTO - O embondeiro que sonhava pássaros

O embondeiro que sonhava pássaros
Mia Couto


Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada.

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. 
Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho.

O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro. Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. 
Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas. 
À volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas: - Mãe, olha o homem dos passarinheiros! E os meninos inundavam as ruas. 
As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. 
O homem puxava de uma muska (Muska - nome que, em chissena, se dá à gaita-de-beiços.) e harmonicava sonâmbulas melodias. 
O mundo inteiro se fabulava.

Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. 
Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. 
Os pais se agravavam: estava dito. Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. 

Mais que todos, um menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso passarinheiro. 
Era Tiago, criança sonhadeíra, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. 
Despertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. 
O homem despontava e Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo junto com a mancha da passarada. 

O sol findava e o menino sem regressar. 
Em casa de Tiago se poliam as lástimas: - Descalço, como eles. O pai ambicionava o castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de explicação: - Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa? 
A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo. - Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança. O pai se dirigia à esposa, encomendando-lhe as culpas. 
O menino prosseguia: é verdade, mãe. Aquela árvore é capaz de grandes tristezas. Os mais velhos dizem que o embondeiro, em desespero, se suicida por via das chamas. Sem ninguém pôr fogo. É verdade, mãe. - Disparate - suavizava a senhora. E retirava o filho do alcance paterno. 

O homem então se decidia a sair, juntar as suas raivas com os demais colonos. 
No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as visitas do passarinheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. O remédio, enfim, se haveria de pensar. 

No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. 
Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia coisa deste verídico mundo. 
O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de si: - Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora. Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos? O vendedor se segredava, respondendo um riso. 
Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres, concluíam. 

Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. 
Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça? 
O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. 
Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que da casa. 
O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles: - Faz conta eu sou vosso tio. 
As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. - Tio? Já se viu chamar de tio a um preto? 
Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. 
Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras. Parecia a ordem já governava. 
Foi quando surgiram as ocorrências. Portas e janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas trocadas. Em casa dos Silvas: - Quem abriu este armário? Ninguém, ninguém não tinha sido. O Silva maior se indignava: todos, na casa, sabiam que naquele móvel se guardavam as armas. 
Sem vestígios de força quem podia ser o arrombista? Dúvida do indignatário. Em casa dos Peixotos: - Quem espalhou alpista na gaveta dos documentos? O qual, ninguém, nenhum, nada. O Peixoto máximo advertia: vocês muito bem sabem que tipo de documentos tenho aí guardados. Invocava suas secretas funções, seus sigilosos assuntos. 
O alpisteiro que se denunciasse. Merda da passarada, resmungava.

No lar do presidente do município: - Quem abriu a porta dos pássaros? Ninguém abrira. 
O governante, em desgoverno de si: ele tinha surpreendido uma ave dentro do armário. 
Os sérios requerimentos municipais cheios de caganitas. - Vejam este: cagado mesmo na estampilha oficial. 
No somado das ocorrências, um geral alvoroço se instalou no bairro. Os colonos se reuniram para labutar em decisão. Se juntaram em casa do pai de Tiago. O menino iludiu a cama, ficou na porta escutando as graves ameaças. Nem esperou escutar a sentença. Lançou-se pelo mato, rumo ao embondeiro. 
O velho lá estava ajeitando-se no calor de uma fogueira. - Eles vem aí, vêm-te buscar. Tiago ofegava. O vendedor não se desordenou: que já sabia, estava à espera. O menino se esforçava, nunca aquele homem lhe tivera tanto valor. - Foge, ainda dá tempo. Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão. 
Sereno, entrou no tronco e ali se ademorou. Quando saiu já vinha gravatado, de fato mesungueiro (Mesungueiro - de “mesungo”, homem branco). 
De novo, se sentou, limpando as areias por baixo. Depois, ficou varandeando, retocando o horizonte. - Vai, menino. É noite. Tiago deixou-se. Espreitava o passarinheiro, aguardando o seu gesto. Ao menos, o velho fosse como o rio: parado mas movente. Enquanto não. O vendedeiro se guardava mais em lenda que em realidade. E porquê vestiste o fato? Explicou: ele é que era natural, rebento daquela terra. Devia de saber receber os visitantes. Lhe competia o respeito, deveres de anfitrião. - Agora, você vai, volta na sua casa. Tiago levantou-se, difícil de partir. Olhou a enorme árvore, conforme lhe pedisse protecção. - Está a ver a flor? - perguntou o velho. E lembrou a lenda. 
Aquela flor era moradia dos espíritos. Quem que fizesse mal ao embondeiro seria perseguido até ao fim da vida. 

Barulhosos, os colonos foram chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu, escondeu-se, ficou à espreita. 
Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam pancadas,
chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue. 
Amarram-lhe os pulsos, empurraram-lhe no caminho escuro. 
Os colonos foram atrás deixando o menino sozinho com a noite. 
A criança se hesitava, passo atrás, passo adiante. Então, foi então: as flores do embondeiro tombaram, pareciam astros de feltro. No chão, suas brancas pétalas, uma a uma, se avermelharam. 
O menino, de pronto, se decidiu. Lançou-se nos matos, no encalço da comitiva. Ele seguia as vozes, se entendendo que levavam o passarinheiro para o calabouço. 
Quando se ensombrou por trás do muro, no próximo da prisão, Tiago sufocava. Valia a pena rezar? Se, em volta, o mundo se despojara das belezas. E, no céu, tal igual o embondeiro, já nenhuma estrela envaidecia. 
A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades. Agora, podia ver o rosto de seu amigo, o quanto sangue lhe cobria. 
Interroguem o gajo, espremam-no bem. Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda continenciou-se, obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar do velho. Que raivas se comprovavam contra o vendedor ambulante? Agora, sozinho, o retrato do detido lhe parecia isento de suspeita. - Peço licença de tocar. É uma música da sua terra, patrão. 
O passarinheiro ajeitou a harmónica, tentou soprar. Mas recuou da intenção com um esgar. - Me bateram muito-muito na boca. É muita pena, senão havia de tocar. 
O polícia lhe desconfiou. A gaita-de-beiços foi lançada pela janela, caindo junto do esconderijo de Tiago. Ele apanhou o instrumento, juntou seus bocados. Aqueles pedaços lhe semelhavam sua alma, carecida de mão que lhe fizesse inteira. O menino se enroscou, aquecido em sua própria redondura. Enquanto embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse o seu embalo. 
Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele conforto? Acordou num chilreino. Os pássaros! Mais de infinitos, cobriam toda a esquadra. Nem o mundo, em seu universal tamanho, era suficiente poleiro. 
Tiago se acercou da cela, vigiou o calabouço. As portas estavam abertas, a prisão deserta. O vendedor não deixara nem rasto, o lugar restava amnésico. 
Gritou pelo velho, responderam os pássaros. Decidiu voltar à árvore. Outro paradeiro para ele já não existia. Nem rua nem casa: só o ventre do embondeiro. 
Enquanto caminhava, as aves lhe seguiam, em cortejo de piação, por cima do céu. 
Chegou à residência do passarinheiro, olhou o chão coberto de pétalas. Já vermelhas não estavam, regressadas ao branco originário. Entrou no tronco, guardou-se na distância de um tempo. Valia a pena esperar pelo velho? No certo, ele se esfumara, fugido dos brancos. 
No enquanto, ele voltou a soprar na muska. Foi-se embalando no ritmo, deixando de escutar o mundo lá fora. 
Se guardasse a devida atenção, ele teria notado a chegada das muitas vozes. - O sacana do preto está dentro da árvore. Os passos da vingança cercavam o embondeiro, pisando as flores. - É o gajo mais a gaita. Toca, cabrão, que já danças! 
As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. 
Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. 
As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. 
Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes.

*          *          *
Do livro: "Cada Homem é uma Raça"



Notinhas:

Embondeiro - Baobá (árvore citada no livro "O pequeno príncipe", de Saint-Éxupery)
Chissena - Língua falada nas províncias de Sofala, Manica, Zambézia e Tete, em Moçambique.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

WILLIAM H. AUDEN - Funeral Blues


O poema Funeral Blues foi escrito por Auden em 1936, como a Canção 9 do livro Twelve songs, e costuma ser citado como expressão exemplar de um forte sentimento de perda e de luto, individual ou coletivo. 
Representativo do controle extraordinário do verso e da habilidade na manipulação da métrica do autor, o poema ganhou popularidade internacional no filme "Quatro casamentos e um funeral", numa cena em que o personagem Matthew homenageia seu companheiro morto.

Funeral Blues foi musicado por Benjamin Britten. Segue o original e algumas traduções, que mostram como é difícil o desafio de se traduzir bem boa poesia.

Stop all the clocks, cut off the telephone, 
Prevent the dog from barking with a juicy bone, 
Silence the pianos and with muffled drum 
Bring out the coffin, let the mourners come. 

Let aeroplanes circle moaning overhead 
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'. 
Put crepe bows round the white necks of the public doves, 
Let the traffic policemen wear black cotton gloves. 

He was my North, my South, my East and West, 
My working week and my Sunday rest, 
My noon, my midnight, my talk, my song; 
I thought that love would last forever: I was wrong. 

The stars are not wanted now; put out every one, 
Pack up the moon and dismantle the sun, 
Pour away the ocean and sweep up the woods; 
For nothing now can ever come to any good. 

April 1936
___

Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

(tradução de Nelson Ascher)
_______

Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e com os tambores em surdina
Tragam o féretro, deixem vir o cortejo fúnebre.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe em volta dos pescoços das pombas da cidade,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: enganei-me.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram o bosque;
Pois agora tudo é inútil.

(tradução de Maria de Lourdes Guimarães)
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Parem já os relógios, corte-se o telefone,
dê-se um bom osso ao cão para que ele não rosne,
emudeçam pianos, com rufos abafados
transportem o caixão, venham enlutados.

Descrevam aviões em círculos no céu
a garatuja de um lamento: Ele Morreu.
no alvo colo das pombas ponham crepes de viúvas,
polícias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.

Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o emprego
dos dias da semana, Domingo de sossego,
meio-dia, meia-noite, era-me voz, canção;
julguei o amor pra sempre: mas não tinha razão.

Não quero agora estrelas: vão todos lá para fora;
enevoe-se a lua e vá-se o sol agora;
esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.
Nada mais vale a pena agora do que resta.

(tradução de Vasco Graça Moura)
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Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e abafem o tambor
Tragam o caixão, deixem passar a dor. 

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe nos pescoços das pombas da região,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão. 

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meu meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: “não tinha razão”. 

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Pois agora nada mais de bom nos resta.

(tradução de ???)
_____

Parem os relógios, cale o telefone 
Evite o latido do cão com um osso 
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie 
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo. 

Que os aviões voem em círculos, gemendo 
e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu. 
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua 
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu. 

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste 
Meus dias úteis, meus finais-de-semana, 
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto. 
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado 

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma 
Guarde a lua, desmonte o sol 
Despeje o mar e livre-se da floresta 
pois nada mais poderá ser bom como antes era. 

(tradução de ???)

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JOSÉ MONTEIRO FILHO - Uma crônica

Crônica do Professor Monteiro em "Agenda Cultural Sul Fluminense"



“ NÃO DEVIA... MAS... ”
Inspirado no [re]início das Aulas em 2014
(por Monteiro Filho, José)


Meu caro leitor, com estas palavras dou Boas Vindas aos abnegados professores e professoras, alunos e todos os heróis nacionais que labutam no esforço de produzir Educação.

Eu bem sei é que a gente se acostuma a tudo sim. Ainda que não devesse. 
A gente se acostuma às carências da escola pública e a ter coragem de continuar malhando em ponta de faca, tentando esconder o sol com a peneira. E, porque não tem jeito, a gente logo se acostuma às promessas demagógicas de nossas autoridades que nunca se concretizam. São tantas que já nos acostumamos com elas, esquecemo-nos dos alunos e eles nem percebem que estamos dentro de uma sala que parece mais improvisada, sucateada, para lhes passar receitas para o bolo do conhecimento, ainda que venham a deixá-lo solar ou queimar.

A gente se acostuma a dormir tarde e acordar cedo, preparando aulas inúteis e enfadonhas; a gente se acostuma a dormir um sono de pedra retangular, negra ou verde, porque a gente se habituou a carregar nas costas a sala, o colégio, as notas, a indisciplina, o atrevimento; afinal, nem tudo passa goela abaixo, não é mesmo? Aí a gente se acostuma a levar nos ombros todos os dramas da escola.

A gente se acostuma com os apelidos, mesmo que camuflados, de loucos, neuróticos, malucos, ultrapassados, mal resolvidos, odiados porque somos a extensão da chatice dos pais ou dos responsáveis. 

A gente se acostuma a ver a vida em gritos, ralhas e chamadas de atenção. 
A gente nem vê o dia passar ali fora da janela alta, disforme, emperrada sempre. 

A gente se acostuma a discutir, vez ou outra, teorias de mestres antigos e novidadeiros e a se angustiar com elas. 

A gente se acostuma com a sensação do ridículo que passam às nossas ações, aos nossos esforços estéreis. 

A gente se acostuma a (des)preparar os jovens para o futuro de dignidade incerta e a lastimar pelo minguado salário do interminável mês. 
E a gente se acostuma a teimar com as ridículas e inócuas greves... A tudo é possível se acostumar. E é o que mais sabemos fazer. Acostumamos a ser brasileiros... 

A gente se acostuma a trabalhar com esta juventude que, desde os tempos de Sócrates ( 470-399 a.C. ) adora o luxo, é mal educada, caçoa da autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. 

A gente se acostuma a ver nossos filhos tiranos, não cederem lugar para os idosos e nos responderem e não nos ouvirem, porque estão com os ouvidos ocupados ouvindo melodias musicais, com letras e conteúdos de qualidade altamente duvidosos. 

Já estamos acostumando a ceder nossa liderança em favor dos bate papos, e dos joguinhos dos celulares, dos facebooks, skypes, whats app, e outros aplicativos virtuais sobre os quais não exercemos quaisquer sinais de domínio. 
Por vezes, excepcionalmente, exercemos domínios muito limitados, pois, nosso tempo escasso, calculado, não garante espaço para o acompanhamento diuturno da evolução perene dos meios da comunicação virtual e globalizada. 

A gente se acostuma a duvidar do futuro com estes exemplares de jovens em nossas vidas. 

A gente se acostuma a ver nos jornais e revistas e na providencial internet livros sobre educação, longe das possibilidades de nossos bolsos e de nossas leituras. 

A gente se acostuma a ser classe sem identidade, união e representação sérias, justamente porque a sociedade não nos leva a sério. 

A gente, pois, se acostuma à desvalorização, a ser joguete e bandeirola em festas políticas. 

A gente se acostuma a coisas de mais e de menos. A ter “peninha” dos filhos dos outros, ainda que depenados em nossa dignidade profissional. 

A gente se acostuma a não ter fins de semana, pizzaria, shopping ou calçadões... A gente se acostuma a um cartãozinho só e a sofrer com o pagamento mínimo. 

A gente só se sente feliz na hora de dormir, pois, o sono, sem sonhos, mas, às vezes, com pesadelos, chega e derruba pesado. 

A gente se acostuma a falar pouco em casa, com a família, com os filhos... a gente se acostuma com a dor de garganta e com o cansaço das cordas vocais. 
Em casa elas devem ser poupadas para o dia de amanhã. 

A gente se acostuma a não ter vida própria; para quê, se nossa vida é para os outros?

Mas, apesar de tudo, a gente queria se acostumar com o fato de sermos os responsáveis pela formação de tantas e tantas gerações que nem dão conta disso. E nos acostumamos a defender nossa vida, apoiando-nos nesta verdade jamais abolida.

Acostumemo-nos, pois, a sobreviver na contramão dos fatos. 
Afinal, como professores, acostumamo-nos a professar verdades, ética, dignidade, respeito... e nos acostumamos a acreditar que um dia acontecerá o milagre da nossa epifania. Amém !




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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

André J. Gomes - Reflexão necessária...


Infelizmente, 2015 'promete' (no mau sentido)



Somos todos vítimas do massacre no Charlie Hebdo
André J. Gomes - 'Revista Bula'  


Estamos todos juntos. Profundamente ligados. A despeito daquilo em que nestas horas acreditam os assassinos e os canalhas, os indiferentes e os superficiais, os cegos voluntários e os simplesmente estúpidos, somos todos uma coisa só. E esta coisa tem sofrido faz tempo, padecido como agora, no choque de uma covardia impensável, na violência medonha de um novo ataque burro e cruel.

Somos semelhantes. Iguais. Seremos sempre. Apesar de todas as nossas diferenças, nós ainda somos seres idênticos. Bichos afoitos da natureza, descobrindo seu próprio jeito de viver e de morrer.

É claro que somos distintos, diversos de toda sorte. Nossos pés têm formas desiguais, pisam de modo e força e ritmo diferentes em terrenos variados. Rumam para cantos separados. Mas ainda somos tão parecidos!

A diferença sobe por nossas pernas e se esparrama. Nossas topografias corporais divergem, nossos joelhos nos cobram o peso do caminho em moedas singulares, nossos sexos se estranham em gênero, forma, tamanho, intenção, entusiasmo mas, se deixarmos, eles dão um jeito e se atraem e se completam.

Nossos intestinos, rins, bexigas, pulmões e outros órgãos internos exibem capacidades desiguais, mantêm ritmos divergentes de funcionamento, adotam padrões variados de tolerância. Entre nós, há os que se indispõem com uma mera sopa de mandioca e os que comem pedra e arrotam borboletas brancas de saúde. Somos tão diferentes em nosso por dentro e, no entanto, nossas semelhanças saltam corpo afora em jatos escandalosos de vida.

Os braços que temos enlaçam empreitadas sortidas, alcançam miradas díspares, exibem largura, extensão, força, cores e capacidades várias. Mas continuam os mesmos braços que aproximam e afastam, abraçam e atacam, com mãos que afagam e agridem. Os mesmos que tateiam agora o amanhã que a Deus pertence.

Somos tantos rostos se iluminando e se fechando por razões infinitas, ora similares, ora opostas. Nossas bocas sorriem ou vociferam a partir de impulsos tantos, porta-vozes de juízos que se criticam e se censuram porque no fundo padecem da mesma ânsia grandiosa de expressão.

Nós somos iguais. Levamos olhos que miram vistas únicas, horizontes maiores ou menores, objetivos vis ou edificantes. Mas que são as mesmas janelas da alma que resiste lá dentro, tocada pelos sons e cheiros descobertos por nossos ouvidos e narinas, alma servida pelas escolhas que fazemos com as pontas dos dedos.

Estes ombros são os mesmos que suportam o peso do choro alheio e carregam o piano do mundo. São os mesmos da indiferença demonstrada quando nos faltam sentimentos ou precisamos escondê-los.

Nossas cabeças deliram sonhos incomuns. E os nossos corações, ah… esses se abrem e se fecham a partir de estímulos insuspeitados e desiguais. Trabalham em velocidades variadas, amam em intensidades diversas. Mas são exatamente os mesmos operários capazes e insistentes, batendo no peito sua vocação incansável para a vida e seu movimento furioso.

Você e eu somos “o próximo” a quem se deve amar. Amemo-nos, pois. Nós estamos aqui para nada, senão para isso, rumando para o mesmo lugar.

O resto é desvio, intolerância, violência exasperada e estupidez praticada em todos os níveis — de insultos verbais na Internet até atentados bárbaros como o do jornal Charlie Hebdo. O impulso de atacar e lesar e calar o outro é o mesmo. E as vítimas são as mesmas de sempre: nós. Cada um de nós. Até quando? Para quê?


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quinta-feira, 1 de janeiro de 2015