segunda-feira, 13 de julho de 2015

Adalgisa Nery - 'Poema Natural'


Arte: Paul Mitkov
Poema natural
Adalgisa Nery (1905-1980)

Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.

Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.

Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tornarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.

*           *            *

É preciso estranhar Clarice

Clarice escreve como que em espanto, como se cada palavra surgisse de repente no papel e precisasse ser dita. Mas é precisamente nos não ditos dos seus textos que se insinua a possibilidade de nos fazermos sentir naquilo que realmente nos interessa. É como se uma batalha (ou quem sabe uma dança) fosse travada com a palavra para que dela, através dela, pudesse surgir o que de fato se pretendia anunciar. E o que se pretendia anunciar?



É PRECISO ESTRANHAR CLARICE
Danielle Mezzari -  em "Obvious - magazine"

Quando entrei em contato com a literatura de Clarice entrei em choque. 
Era ainda menina e me perguntava o que era aquilo que lia, tão profundo e suave. Tão direto e indeciso. 
Acho necessário fazer um esforço no sentido contrário da pretensão da pergunta formulada acima. 
Ao invés de nos perguntarmos o que pretendia anunciar Clarice Lispector com seus textos, o que ela queria dizer, deveríamos começar a nos indagar sobre o que nós pretendemos com eles. O que somos capazes de criar a partir do contato com suas obras?
Alguma coisa fica por ser dita. Alguma coisa dita ficou por dizer. 
Clarice não nos dá respostas, não traça caminhos a serem percorridos e não há nenhum sentido já dado em seus textos. Pelo contrário, é quando nos deixamos tocar, ou quando alguma coisa no texto encontra algo em nós que um sentido, ou qualquer outra coisa, é produzido. 
Quero dizer que não há nada pronto em sua obra, apenas para ser contemplado ou encontrado. 
O que há é o vislumbre de uma dor, de uma potência de dor. 
O que há é a possibilidade de produção de sentidos. 
A autora sozinha, seus textos, não transmitem nada. É só no contato com um outro que as palavras ganham corpo, ganham vida. É só através de um outro que um texto pode ter um direcionamento e uma aplicação. Cabe a nós, enquanto leitoras e leitores, a partir do que temos, de nossas experiências, produzir novos caminhos e interpretações.

Acredito na potência do silêncio. Silêncio enquanto condição para a produção de sentidos. 
Eni Orlandi em seu livro “as formas do silêncio” nos diz que este não se refere ao vazio, mas que ele é o indício de uma totalidade significativa. 
O silêncio diz da produção de possibilidades, de conexões, de relações que muitas vezes transgridem, subvertem o efeito esperado por quem escreveu. 
O silêncio faz alusão a uma totalidade que a palavra mobiliza na tentativa de fazer referência e atribuir significado a uma parte desse todo. É, portanto, só na palavra que o silêncio se manifesta, se esconde e cria espaços que a palavra não consegue dizer.

Uma das questões que passaram a me incomodar após o contato com Clarice diz respeito justamente à palavra. 
A palavra é paradoxal desde o seu nascimento. No momento em que designo algo estou ao mesmo tempo a potencializar e a limitar o objeto designado. Potencializo ao lhe atribuir um significado e limito ao negar-lhe o movimento, o deslizamento por entre outros sentidos. 
Parece-me que Clarice enfrenta esse dilema, paradoxo intransponível, e busca criar a não palavra dentro da própria palavra. A palavra que nega a si própria enquanto capacitada de designação, do conhecimento necessário. 
Clarice subverte a própria língua para nela criar uma oscilação, uma linguagem que, se não é outra coisa, também não é mais a mesma.

Deleuze fala sobre a capacidade que a literatura possui de produzir uma minoração na língua, de criar um devir-outro da língua, “uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante”.
Para fazer isso é preciso um pouco de estranheza. É preciso estranhar o mundo, estranhar a si mesma.

A escritora e professora Noemi Jaffe nos fala um pouco sobre isso. Ela nos explica que o estranho ou o estrangeiro é aquele que é de fora, que não pertence a um determinado lugar e que, por este motivo, olha as coisas com um olhar de espanto, como quem vê algo pela primeira vez. 
Essa “estrangereidade” é marcante na obra de Clarice. No entanto, ela relativiza essa relação fora-dentro. 
É possível ser estrangeira no seu próprio país, na sua própria cidade. É possível ser um estrangeiro de si, em si. 
Clarice estranha o que é dado como óbvio, o que é naturalizado e, portanto, tornado invisível no nosso cotidiano. Esse estranhamento faz com que ela possa olhar a si mesma e ao mundo a partir de perspectivas outras e criar a partir de outros lugares.

É preciso que também nós, enquanto leitoras e leitores, estranhemos Clarice. 
Pode ser que o impacto seja tanto que nos afastemos de imediato frente ao desconhecido de sua obra. No entanto, talvez desse encontro prolifere caminhos e se crie outros sentidos para coisas que já estávamos tão habituadas/os a ver.

*            *            *

sábado, 11 de julho de 2015

Rui Veloso e Mariza - Não Queiras Saber de Mim





Não queiras saber de mim
Rui Veloso

Não queiras saber de mim
Esta noite não estou cá
Quando a tristeza bate
Pior do que eu não há
Fico fora de combate
Como se chegasse ao fim
Fico abaixo do tapete
Afundado no serrim
Não queiras saber de mim
Porque eu estou que não me entendo
Dança tu que eu fico assim
Hoje não me recomendo
Mas tu pões esse vestido
E voas até ao topo
E fumas do meu cigarro
E bebes do meu copo
Mas nem isso faz sentido
Só agrava o meu estado
Quanto mais brilha a tua luz
Mais eu fico apagado
Dança tu que eu fico assim
Porque eu estou que não me entendo
Não queiras saber de mim
Hoje não me recomendo
Amanhã eu sei já passa
Mas agora estou assim
Hoje perdi toda a graça
Não queiras saber de mim

*           *            *